A Serra São José em chamas

Imagem: Anthony Cantin
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Por DIEGO EYMARD*

Enquanto o governo mineiro age como sócio do latifúndio e do crime organizado, a Serra arde e a população paga com sua saúde e recursos. A tragédia reiterada exige mais que brigadistas; exige um novo projeto de sociedade que rompa com a lógica predatória

Arde a Serra São José, relicário histórico e bioma da microrregião do Campo das Vertentes, em Minas Gerais. O fogo que se alastra entre São João Del-Rei e Tiradentes, com efeito, é o sintoma febril de uma política consciente de Estado. Longe de resultado fortuito de uma estação seca, de um acaso comum e compreensível do clima, tampouco obra cega da natureza – é, na verdade, um sacrifício ritualístico do patrimônio público e ecológico aos altares do capital extrativista e dos interesses do latifúndio mineiro.

O que se incinera anualmente na Área de Proteção Ambiental (APA São José) é a prova material de que o regime neoliberal mineiro converteu a máquina pública de protetora em cúmplice voraz da destruição. Assim o é que as tragédias ocorridas em Minas Gerais são, sem embargo, de recorrência previsível e de causa invariavelmente humana.

Não derivam da fatalidade, mas da negligência; não derivam meramente de condições climáticas desfavoráveis, mas de práticas irresponsáveis de manejo do solo, como a queima de pastagens, um método arcaico e violento que atende à pressa predatória do proprietário rural, que por vezes está desinformado ou escapa às leis ambientais cujas punições são cada vez menos rigorosas e ineficazes.

Com isso quero dizer que o desastre, ao invés de acidente de percursos, é o custo estrutural externalizado pelo setor produtivo, que opera sob a certeza da impunidade e da ineficácia operacional do Estado. O fogo na Serra São José é a forma com que o latifúndio impõe, ditatorialmente, o seu calendário ao ecossistema.

A presença do ausente e o enigma da extinção estatal

A dimensão da crise ambiental em Minas Gerais exige uma força-tarefa robusta. Em contrapartida, o combate é pouco profilático e muito mais remediador, estando sua efetividade perigosamente ancorada na mobilização civil e na exaustação dos voluntários.

O resgate da fauna é delegado a médicos veterinários que se deslocam de longe para resgatar o que o fogo deixa em seu caminho. Relatos de brigadistas em turnos de dias seguidos atestam o custo humano desta dependência, ao exporem a tragédia para além da ecologia, isto é, enquanto crise humanitária de responsabilidade do Estado.

Através de tal paradoxo, a lógica neoliberal de administração da coisa pública se revela em sua forma mais cínica: o governo, constitucionalmente responsável pela proteção ambiental, delega o trabalho mais perigoso e urgente sobre os ombros da população que ele deveria cuidar. O estado de Minas Gerais privatiza a segurança e a defesa civil no campo funcional. Remunera mal e entrava as recomposições salariais.

É nesse cenário que o governador Romeu Zema, decidido em se envolver em mais um empreendimento que mistura público e privado, desbravando uma campanha a Presidente da República que já nasceu morta, faz o que um bom sonhador costuma fazer: ele delega suas responsabilidades ao seu vice, Matheus Simões, que é tão ou até mais distante dos problemas vividos pelos mineiros, enquanto persiste em busca de uma posição mais relevante no vácuo de liderança da extrema direita hoje.

O governo de Romeu Zema, agora comandado por seu vice, se empenha ativamente na privatização dos ativos rentáveis, através do Programa de Concessão de Parques Estaduais (PARC), que visa unicamente entregar Unidades de Conservação aos deleites da iniciativa privada. Assim, a atual gestão terceiriza a reparação dos danos ambientais e exige que a sociedade subsidie sua própria ineficiência com tempo, saúde e recursos. Em suma: ao capital, o lucro potencial do ecoturismo; à sociedade, o ônus da chama e o risco das zoonoses.

A função classista da lei

Viemos insistindo que o incêndio na Serra São José está longe de poder ser classificado como uma falha operacional isolada. Não se pode classificá-lo menos que como uma consequência premeditada de uma política estadual que, desde 2019, atua como um desarmamento regulatório do Estado em favor do capital.

A principal peça desse desmonte é a adoção e expansão do Licenciamento Ambiental Simplificado (LAS Cadastro). Sob esta rubrica, empreendedores rurais obtêm certificados ambientais preenchendo documentos, substituindo a análise técnica detalhada por uma chancela burocrática. O Sindsema classifica essa flexibilização como um passo no desmonte ambiental, afirmando que ela foi “feita sob medida para latifundiários”. Não é um equívoco administrativo; é uma escolha política. A saber, o processo simplificado se aplica a grandes propriedades (até 1.000 hectares), não à agricultura familiar, revelando, sem meias palavras, a função classista da política ambiental.

Se tornando mero “cartório”, o estado sinaliza ao agronegócio e ao latifúndio que a biodiversidade crítica do Cerrado será minimizada em nome da exportação de commodities. O resultado prático não pode ser outro: aumenta a pressão sobre áreas sensíveis, como a Serra São José, onde o uso inadequado do fogo e a impunidade se retroalimentam.

O ápice da política de desmonte se encontra na esfera da criminalidade organizada. A Operação Rejeito, deflagrada pela Polícia Federal, além de expor um esquema bilionário de corrupção no licenciamento de mineração, estabeleceu o elo direto entre a máquina estatal e o crime.

A investigação revelou que uma alteração em decreto, assinada pelo próprio governador Romeu Zema, teria favorecido diretamente o grupo criminoso, abrindo brechas para licenciamentos fraudulentos e, em alguns casos, permitindo que empreendimentos avançassem sem o pagamento de multas ambientais.

Essa cumplicidade desfaz a crítica de “incompetência” e a substitui por uma denúncia ainda mais grave: o estado mineiro, em vez de ser um regulador, torna-se veículo para o crime organizado na mineração, favorecendo a infraestrutura legal para a impunidade. Um estado que usa assédio contra servidores técnicos da SEMAD e do IEF para silenciar a resistência e favorecer o grande capital consolida a captura regulatória. Pior ainda, cria um ambiente em que todos os crimes ambientais, incluindo as queimadas ilegais, florescem.

O dinheiro da tragédia subsidia a falência

Não menos importante, a política de precarização foi habilmente dissimulada pelo fluxo financeiro extraordinário. O acordo judicial com a Vale, após a tragédia de Brumadinho, injetou R$ 11,06 bilhões em projetos estaduais. O volume colossal – que o governador chegou a glorificar como “110 anos de investimentos” – teve um poderoso efeito mascarador fiscal.

Este capital de reparação, sendo uma receita não-ordinária, distorceu a percepção da real capacidade de investimento, permitido que o governo desviasse a atenção do orçamento ordinário da máquina pública, cronicamente precarizado. Em vez de garantir uma dotação robusta e permanente para o IEF e o CBMMG, a gestão capitalizou politicamente a tragédia com o objetivo de cobrir os déficits crônicos de infraestrutura.

O Acordo de Brumadinho, ironicamente, não fortaleceu a proteção ambiental em áreas como a Serra São José. Ao contrário: fez perpetuar sua vulnerabilidade. O fato de a região depender criticamente da exaustão de voluntários e de brigadas reduzidas é a prova cabal de que o dinheiro da Vale nem de longe sanou a falência estrutural.

O governo Zema utiliza os recursos de reparação para subisidiar seu próprio déficit fiscal e político, assim camuflando a necessidade que se impera aos mineiros de uma discussão séria sobre a dotação orçamentária. Dessa forma, o ciclo de desastres recorrentes é garantido, e a sociedade, a classe trabalhadora e o ecossistema pagam o preço do ajuste fiscal neoliberal.

O incêndio na Serra São José é a metáfora trágica do esgotamento da lógica do capital sobre a natureza. O desastre é a consequência de um modelo de governança que subordina a conservação ao acúmulo. Nem mesmo posso chamar a gestão de Romeu Zema de ineficiente, já que ela se faz mais que funcional ao capital predatório, atendendo ao objetivo de seus cabeças e filantropos.

Para romper com essa trajetória, não basta a reparação, é necessário um programa mineiro de soberania ecológica: (i) Revogar o LAS Cadastro e todos os decretos de flexibilização, restaurando a autonomia e o rigor técnico dos órgãos fiscalizadores; (ii) exigir uma dotação orçamentária robusta e permanente para o IEF e o CBMMG, desvinculada de recursos extraordinários de tragédias, garantindo brigadas e bases operacionais permanentes; (iii) transferir a gestão das Unidades de conservação da lógica de rentabilidade privada (Programa PARC) para uma gestão popular e comunitária. O exemplo da resistência popular contra a mercantilização da área do Mangue prova que a única força capaz de proteger o patrimônio mineiro reside na organização da classe trabalhadora.

O fogo na Serra São José deve ser um chamado à organização de nossa classe, contra a gestão neoliberal de nossos bens públicos. Somente a soberania ecológica, construída pela base e rompendo com a subserviência do Estado ao capital, poderá apagar a chama bárbara do neoliberalismo na microrregião das Vertentes.

*Diego Eymard é professor de economia do Instituto Soyuz. Autor do livro Memórias da vó Dirinha. [https://amzn.to/47hFtjd]


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