Golpistas, caudistas e soberanistas

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Por Fernando Sarti Ferreira*

Um fenômeno que passou a atormentar os mais diversos grupos da esquerda brasileira na última década foi o “caudismo”. Se num primeiro momento o caudismo surgiu espasmodicamente, como soluços isolados de pequenos grupos, após a derrota sofrida pelo golpe de 2016, esta tática parece ter sido universalizada.

O termo “caudismo” (da palavra cauda) foi cunhado por Lenin no bojo das cruentas disputas entre as diversas frações do movimento social-democrata russo para descrever o que ele considerava uma postura mais abjeta que a do oportunismo. Usado para descrever a atitude do grupo Rabótcheie Dielo – fração insignificante já no momento em que Lenin escreveu “O que fazer?”-, o termo descrevia a atitude errante dessa agrupação ao apoiar e rechaçar seguidamente as mais diversas deliberações táticas do movimento, agarrando-se a cauda daquele e deixando-se “arrastar pelo economicismo quando reina o economicismo, e pelo terrorismo quando reina o terrorismo”. Basta, neste sentido, ficar parado esperando o cavalo indomável que carrega a história passar e agarrar o seu rabo. Caso ele esteja rumando ao precipício, nada o impede de soltar o rabo e esperar que outro animal passe na sua frente.

 Mensalão, Impeachment de 2016, greve dos caminhoneiros de 2016, Operação Lava-jato, Primavera Árabe, os levantes na Ucrânia de 2014, Hong Kong e Bolívia em 2019… a lista é interminável, assim como o alcance geográfico desta tática preguiçosa. Se de um lado reina um reducionismo que atribui boa parte destes movimentos à uma visão rasteira do Imperialismo e suas formas sempre reinventadas de atuação, o “caudismo” peca por abraçar qualquer tipo de insatisfação popular ou de mobilizações em torno de qualquer pauta, seja quais forem os termos em que elas foram colocadas.

Os defensores da visão rasteira do imperialismo receberam até mesmo um sopro de renovação e sofisticação teórica apoiado nos estudo sobre as táticas da guerra híbrida, mecanismo de desestabilização de regimes amplamente difundidos após a ocupação do Iraque em 2003. Contudo, e como pode se depreender não só das colocações destes grupos de esquerda, mas também a partir da leitura do livro de Andrew Korybko, estas análises têm um grande problema, pois ignoram solenemente que a guerra híbrida atua sobre contradições já existentes e muito arraigadas. Tão fantasioso como o potencial revolucionário de organizações financiadas pelos EUA e a OTAN, como é o caso do Exército Livre da Síria ou do Conselho Nacional de Transição da Líbia, são os supostos paraísos “socialistas” e “anti-hegemônicos” de Bashar al-Assad e do falecido Muammar al-Gaddafi.

Há um oceano separando o peso contra-hegemônico que um regime exerce e a capacidade que ele tem de servir como modelo alternativo de organização. Nos casos acima citados, coisas tão complexas como as novas formas de atuação do Imperialismo, em um contexto de aprofundamento da crise sinalizadora (ou terminal?) da hegemonia estadunidense e os complexos processos históricos e nacionais das nações periféricas, são transformados em matéria para o exercício de diletantismo soberanista ou solipsismos revolucionários. Além disso, que um grupo político confunda o moralismo udenista e punitivista dos procuradores da Lava Jato com um golpe certeiro no coração do grande capital e da burguesia brasileira diz muito sobre as possibilidades e instrumentos teóricos que este grupo tem para analisar o quebra-cabeça político e étnico de um conflito com as dimensões da Guerra Civil na Síria.

O Putsch do Kapp e outras tantas experiências levaram Hitler a entender que a extrema-direita alemã não chegaria a nenhum lugar sem mobilização popular. Getúlio Vargas e seu entourage sabiam que a partir da década de 1920 nenhum projeto de poder poderia surgir sem qualquer apelo às massas. À mesma conclusão chegou a UDN, quando por fim se submeteu à candidatura de Jânio Quadros. O fato que uma agenda reacionária e conservadora tenha adesão e provoque o protagonismo popular não deveria gerar nenhum espanto na esquerda. A ausência de qualquer estratégia e diagnóstico mais profundo sobre o que estamos vivendo leva à prisão do “caudismo”.

Trabalhadores e setores subalternos podem ser induzidos ao erro. Achar que o mero acionar destes grupos, mesmo que levantando bandeiras reacionárias, deve necessariamente portar algo que sirva à emancipação ou a construção de qualquer horizonte mais progressista, mesmo que intangível para eles no momento da ação, é de um elitismo tremendo. Os caminhoneiros pediram o que eles pediram. Por que querer negar “suas vozes”, substituindo-as por um solipsismo completamente abstrato? Do outro lado, entre os mais reticentes, reina algo tão ou mais deletério: o conformismo, a covardia e a surdez que fazem com que muitos outros setores da esquerda sejam os primeiros na fila da missa em homenagem às vitrines quebradas

Soberanistas e caudistas tiveram um novo encontro no recente golpe de Estado na Bolívia. E novamente, nos parece inevitável voltar às comparações com outros processos históricos. A postura de alguns setores da esquerda de aplaudirem a queda de Evo Morales, e isso até mesmo dentro da própria Bolívia!, soa como sandice. Voltemos ao golpe do General Kornilov contra Kerenski em Agosto de 1917 na Rússia. Um mês antes, o governo Kerenski tinha desencadeado uma brutal perseguição aos bolcheviques, obrigando boa parte da direção do partido a voltar para a clandestinidade. Kerenski era uma figura popular, identificada com ideais socialistas, mas que protelava as transformações mais radicais exigidas pelos grupos de operários e camponeses organizados, continuava chafurdando a Rússia na guerra, ou seja, traía com T maiúsculo a sua base.

Contudo, frente ao golpe czarista do general Kornilov, Lenin soltou a palavra de ordem: “Contra o canalha Kornilov, pelo canalha Kerenski”.  Trotski cita como os marinheiros de Krondstadt – que ele mesmo viria a massacrar alguns anos depois, em um dos casos mais clássicos e escandalosos de traição – entendiam a situação: “Coloquemos o fuzil no ombro de Kerenski e atiremos em Kornilov. Depois resolvemos com Kerenski”. O que podemos aprender com todas essas crises que têm varrido os regimes progressistas da América Latina não é o já batido “limites e traições” de determinados grupos políticos, mas a outra face desse processo: a incapacidade histórica de outros movimentos construírem qualquer outra coisa.

Não teve a extrema esquerda seus momentos de glória, justamente quando colocou em cheque os governos progressistas? Não ganhou espaço na mídia, convites para os programas de televisão e páginas inteiras dos jornalões? Até que ponto estes movimentos foram autônomos mesmo? E pior: foram autônomos em relação ao que? Recorrendo à outra experiência histórica, não se repetiu de maneira trágica o erro da esquerda alemã? Na época de Weimar, qualquer um saberia dizer de cor os limites da social democracia. Milhares de autores faziam as mais diversas e brilhantes análises sobre a crise do capitalismo e como a social democracia era uma tragédia, que não resolveria nada. Sinto que ficamos gritando “social-fascismo” e no fim terminamos embarcando no mesmo trem.

Voltando ao Brasil do presente, ao abdicar de seu papel de organizador das massas, seja qual tenha sido o motivo para tanto, as tradicionais organizações políticas (sobretudo sindicatos e partidos) deixaram setores inteiros dos trabalhadores à mercê de novos e velhos aparelhos privados de ideologia. Por outro lado, nada que se apresentou como “o novo” ou com uma opção mais radical chegou perto da capilaridade que algum dia as antigas organizações já tiveram, ou conseguiu organizar-se de maneira estratégica, libertando-se da pecha de mero espelho invertido. As distâncias entre os dois grupos, que nunca chegaram a diminuir organicamente em termos de sua capilaridade, foram encurtadas do ponto vista político pelo acelerado processo de desagregação social iniciado por Temer e radicalizado por Bolsonaro. Neste terrível lusco-fusco, antes de agarrar a “cauda” de qualquer animal ou de pedir “calma”, precisamos decidir o que queremos.

*Fernando Sarti Ferreira é professor e doutorando em história econômica pela USP

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