Por LINCOLN SECCO*
O PT até pode se reconstituir como a principal expressão partidária do bloco popular. Mas a política, como a guerra, comporta o acaso e depende dos erros e acertos das lideranças.
Fora de situações revolucionárias podemos entender por esquerda os grupos que conferem centralidade estratégica à disputa eleitoral. A rigor são partidos que aceitam a Ordem vigente ou se declaram por uma Revolução dentro dela. Pequenos agrupamentos revolucionários e clandestinos e coletivos anarquistas prosseguem no campo da propaganda e educação política contra a Ordem e podem desempenhar papel relevante em crises políticas como em junho de 2013. Mas aquela oportunidade histórica foi perdida e o horizonte da esquerda se rebaixou.
O sistema partidário brasileiro, quando visto apenas formalmente, é instável e descontínuo. Mas quando lido do ângulo da História e das notáveis permanências surpreende. A comparação de PT, PMDB e PSDB com PTB, PSD e UDN é trivial por causa disso. Na esquerda ainda se podia agregar o PCB que agia indiretamente por outras legendas e mantinha notável trabalho de propaganda com cursos, atividades culturais, edição de livros e uma rede de jornais. Sua incidência no debate econômico jamais foi desprezível e o seu programa mobilizava a inteligência nacional.
A Ditadura de 1964 pretendeu sufocar aquela experiência semidemocrática, mas uma esquerda de massas emergiu novamente nos anos 1980. Sem entrar no mérito do que teria sobrado do PSDB e do PMDB, depois do golpe de 2016 os partidos oposicionistas com algum grau de coesão ideológica foram o PT, Psol e PC do B. Políticos da Rede, PDT, PMDB e PSB eventualmente se deslocaram para este campo constituindo um segundo agrupamento de forças oposicionistas com menor grau de organicidade.
No interior desse arco político há diferenças ideológicas. O PC do B guarda maior semelhança com um partido de quadros com alguma influência de massas, emulando o antigo PCB. O Psol se posta à esquerda, mas enquanto organização de tendências sua função (não seu programa) talvez se assemelhe à do antigo PSB que abrigava marxistas independentes, trotskistas e socialistas reformistas; e o PT é uma agremiação mais complexa por combinar um pouco de cada uma dessas agremiações.
Para uma história das ideias seria interessante cotejar resoluções, programas e propostas parlamentares dos partidos, mas isso diria pouco sobre estrutura e bases sociais. Para uma história social não importa muito se um partido se diz comunista e na prática desempenha um papel típico de uma organização eleitoral reformista. O caso do PT é exatamente esse: seus dirigentes rejeitaram (e alguns ainda o fazem) a chancela de “social democrata”. Já seus adversários à esquerda e à direita o acusaram de populista ou social liberal. Outros o definiram como um partido da ordem.
Essas caracterizações são um recurso legítimo de disputa política, mas não tem relevância teórica e nem base histórica. A Socialdemocracia remonta ao século XIX, mas sua experiência de governo decisiva (com algumas exceções) é posterior à Segunda Guerra Mundial e coincide com os trinta anos de crescimento econômico mundial.
Curiosamente, essa “experiência” em muitos casos foi mais indireta do que direta. Fora da Escandinávia solidamente social democrata o Welfare State foi erguido por conservadores acuados pelos sindicatos e partidos reformistas da esquerda. Em algum momento dos anos 1950 os políticos no poder dos principais países que representaram o pacto social democrata eram conservadores: Eisenhower (EUA), Harold MacMillan (Gran Bretanha), De Gaulle (França), Adenauer (Alemanha Ocidental), Diefenbaker (Canadá) e os primeiro ministros democrata-cristãos italianos. Nenhum ousou desmantelar políticas sociais [1].
Uma inversão aconteceu nos anos 1980 depois da crise fiscal do Estado e da queda da taxa de lucro média nos países desenvolvidos e quem implantou a política econômica liberal foi tanto a esquerda socialista de François Miterrand na França e Felipe González na Espanha, quanto a “nova” direita de Margareth Tatcher e Ronald Reagan na Grã Bretanha e Estados Unidos.
Não era costume chamar os partidos socialdemocratas e trabalhistas de sociais liberais, termo que tem um uso muito elástico e pode se referir tanto aos liberais de esquerda da resistência italiana como a líderes de centro atacados pela nova direita como é o caso do presidente francês Macron. Ora, a palavra “democrata” que forma o nome de alguns partidos europeus poderia ser substituída por “liberal”, já que a democracia com a qual eles se comprometeram historicamente foi a liberal.
Três vezes PT
O PT é a ponta do iceberg partidária de um vasto campo popular que se formou nos anos 1980 com setores da Igreja, a liderança de Lula, CUT, MST etc. O petismo, portanto, é mais que o PT e às vezes está em contradição com ele. É um fenômeno tão complicado quanto o peronismo porque se encontram políticos que se acreditam apenas gestores eficientes até militantes que se consideram marxistas.
A título de mera analogia didática e histórica poder-se-ia dizer que o partido é como o antigo PSD na cúpula, onde as lideranças se articulam no mundo estabelecido dos acordos; é o velho PCB nos quadros intermediários onde sobrevivem as tendências de esquerda; e se parece ao velho PTB na base.
Não se trata apenas de três níveis estanques [2], mas de três díades marcadas por nuances, tensões, acordos provisórios, rupturas e às vezes conflito aberto. No primeiro andar é comum que haja ações pontuais de direita tomadas por algum mandatário executivo e uma tentativa da Direção Nacional de contê-las.
No segundo nível está a máquina burocrática interna. Ali a clientela do primeiro patamar ocupa majoritariamente os cargos, mas como é desprovida de um discurso articulado e coerente submete-se à direção intelectual e moral dos quadros de esquerda. Essa disputa é fundamental porque é a partir desta contradição interna que as lideranças e as bases se vinculam. O exemplo de São Paulo em 2020 com a escolha de uma candidatura sem vínculos nos meios culturais e intelectuais da cidade tem muito a ver com a formação de uma opinião interna que se filtra e se adensa na base.
Por fim o terceiro patamar diz respeito à capacidade que as lideranças e os quadros têm de fazer indivíduos e o partido serem (re) conhecidos pelo campo popular. Isso não está dado e a cada ritual eleitoral é preciso que haja uma cerimônia de batismo em que a presença de Lula tem sido fundamental [3].
As pessoas não vivenciam conscientemente a política no cotidiano e nem o partido tem espaços de sociabilidade permanente. Quando as eleições se aproximam é que o PT pode voltar a existir para além dos seus dois primeiros níveis. Não por outra razão é que a preferência partidária pelo PT em anos eleitorais é maior no segundo semestre. O partido não tem garantia de que representará sua base social. Pode ser punido. Entretanto, em todas as disputas presidenciais e também na cidade de São Paulo ocupou a primeira ou segunda colocação.
É por causa disso que todas as suas rupturas internas ainda não ensejaram uma alternativa à sua esquerda ou à sua direita. Houve desde o início algumas tentativas. Entre os trabalhadores rurais do Acre Osmarino Amâncio saiu do partido pela esquerda, mas deixou de ter o reconhecimento passado. Os agrupamentos que romperam pela esquerda formaram partidos revolucionários sem intenção eleitoral.
Mais comum foi a ruptura pela “direita”, mas nesse caso ela foi feita por depositários de mandatos relevantes: Luiza Erundina, José Fortunatti, Cristovam Buarque e Marina Silva buscaram partidos mais ao centro que o PT mas não lograram conquistar cargos mais importantes do que os que já possuíam. O mesmo se deu com Heloisa Helena e Luciana Genro que romperam à esquerda. Marina Silva teve um bom desempenho na campanha de 2014, conseguindo captar votos de um espectro político inorgânico que já teve outras representações como Mario Covas, Enéas, Heloisa Helena e depois Ciro Gomes. Não há aqui uma apreciação ideológica das candidaturas e sim da base eleitoral.
Decerto os demais partidos de esquerda têm experiências semelhantes. Há neles um deputado que procura se autonomizar da máquina interna mais programática; outro que rompe com algum agrupamento revolucionário; há uma base social que se preocupa com temas que podem ser negligenciados pela direção etc. Mas nada disso acontece na mesma amplitude do campo popular em que o PT se desenvolveu.
Faz parte do anedotário petista uma frase que David Capistrano Filho teria dito: “O PT é composto por soldados vietnamitas, capitães norte-americanos e generais paraguaios”. Os soldados continuarão lá, resta saber se haverá um Giap para liderá-los.
O PT até pode se reconstituir como a principal expressão partidária do bloco popular. Mas a política, como a guerra, comporta o acaso e depende dos erros e acertos das lideranças no campo de batalha. Já a superação do PT exigiria uma crise histórica combinada a uma nova direção capaz de aproveitá-la.
*Lincoln Secco é professor do Departamento de História da USP. Autor, entre outros livros, de História do PT (Ateliê).
Notas
[1] Levinson, Marc. An Extyraordinary Time. London: Penguin, 2017, p.24.
[2] Embora Gramsci tenha destacado os três elementos do partido enquanto moderno príncipe, a analogia só faria sentido se os partidos sociais democratas visassem uma revolução contra a ordem. Cf.: Magela, G. Gramsci e o moderno príncipe: a teoria do partido nos cadernos do cárcere. São Paulo: Cultura Acadêmica, 2012, p. 183.
[3] Se se fizesse uma análise mais profunda seria preciso ressaltar que se trataria de tipos ideais. O PTB, por exemplo, num grau menor que o PT teve intelectuais trabalhistas e sociais democratas e quadros sindicais importantes e na sua base também houve uma permanente tensão entre os mandatos eletivos e a imensa massa popular das margens inorgânicas do partido. O PT herdou poucos políticos trabalhistas quando surgiu, mas muitos quadros do antigo PSB e do PCB.