Por EMILIANO JOSÉ*
Documentos do Instituto Hoover revelam como a Atlas Network, financiada por corporações como Pfizer e Koch, orquestrou a difusão neoliberal e eventos como os protestos de 2013, que pavimentaram o impeachment de Dilma e a eleição de Bolsonaro
1.
Bob Fernandes, já dito na primeira parte dessa série, faz uma introdução à primeira entrevista feita por ele, exposta no documentário sobre a atuação de agências internacionais na América Latina, voltada à disseminação do pensamento neoliberal no continente, à articulação política e desenvolvimento de golpes, inclusive no Brasil, documentário cuja íntegra pode ser vista no You Tube.
Na sequência dessa introdução, o jornalista acentua: “No momento em que são espalhadas escolas militarizadas pelo Brasil a começar por São Paulo, é importante entender com que estratégia avançou a neoliberalização”.
Detalha. Ainda nos anos 1990, tal articulação neoliberal ganhava forma com a série Notas, publicação periódica dedicada a articular interesses do capital, além de redigir e propor leis para o parlamento brasileiro, sustentada com pagamento em dólar.
O caminho do neoliberalismo para chegar ao poder passou e passa por organizações brasileiras autodenominadas liberais ou neoliberais. Podem ser lembradas Instituto Millenium, Instituto Mises, Forno da Liberdade, Estudantes pela Liberdade, entre tantos, alimentados pelo ideário neoliberal e financiados por fontes norte-americanas, pelo capital seria mais próprio dizer, como revelado na primeira parte dessa série.
Tais agências, institutos, enquanto propagavam o discurso neoliberal, demonizavam sindicatos, combatiam a legislação trabalhista, amaldiçoavam a CLT. Bob Fernandes, ironiza: dólar financiando? Pode. Mortadela? Não.
Tal articulação garantia a compra de espaço nas mídias, parlamentos e judiciário. Anuncia a primeira de três entrevistas, a apresentar documentos capazes de mapear como se construiu e se aprofundou a influência e a expansão neoliberal no Brasil, sem ignorar a concertação de interesses no interior das mídias, no mundo da política e na chamada sociedade.
Na primeira entrevista, Bob Fernandes ouviu Jahde de Almeida Lopez e Luan Correa Brum. Ouviu quer dizer ouviu mesmo. Na Universidade Federal de Santa Catarina. Para onde seguiu de gravador na mão.
Jahde Lopez é doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais da UFSC. Entre tantas atividades acadêmicas, integra o “Grupo de Pesquisa em Estudos Estratégicos e Política Internacional Contemporânea: O Poder das Ideias e a Formação de Institutos Liberais na América Latina”. Os interesses centrais de pesquisa dela são história da política externa norte-americana, neoliberalismo na América Latina e a influência dos EUA em relação aos países do continente.
Luan Brum é também doutorando do Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais da UFSC e integra o mesmo grupo de pesquisa de Jahde Lopes, voltado ao estudo do poder das ideias e a formação dos institutos liberais na América Latina. Os interesses centrais dele são a política externa estadunidense e a relação com a América Latina¸ além do estudo sobre a hegemonia dos EUA, neoliberalismo e atuação dos institutos liberais.
2.
Os dois estiveram três meses nos EUA, na Universidade Stanford, onde, no Instituto Hoover, encontraram 143 arquivos, caixas e documentos profundamente reveladores da estratégia de atuação das agências neoliberais, de como durante os últimos 40 anos foi construída a disseminação da doutrina neoliberal, especialmente no Brasil.
Na entrevista, os dois revelam: aqueles arquivos permitiram um grande achado, a articulação de uma batalha no campo das ideias. Tal achado desnuda um acontecimento brasileiro, dado como nascido da movimentação popular: os protestos de 2013.
Tais protestos, hoje está nítido, nasceram de articulação desencadeada pela Atlas Network, e seriam fogo alimentador do impeachment de Dilma Rousseff, chegada de Michel Temer à presidência, antessala da eleição de Bolsonaro à presidência da República em 2018. Não houve acaso. Não foram fruto de movimentações populares. Tudo devidamente articulado por agências internacionais, de modo especial, pela Atlas Network.
Os dois doutorandos avaliam a manipulação dos ideais de liberdade, hoje na boca de todos, ideais sujeitos a toda espécie de manipulação, tal e qual revelados pelos documentos encontrados por eles no Instituto Hoover.
Por trás do barulho na defesa da liberdade, está uma instrumentalização profunda, a esconder a manutenção e ampliação da intervenção norte-americana no Brasil e na América Latina.
Hoje, a prática dos EUA alterna a ostentação militar, é só olhar os acontecimentos em torno da Venezuela, e a luta político-cultural, ideológica, a batalha no campo das ideias, por meio do financiamento de indivíduos que chegam ao poder tentando iludir a população sobre uma movimentação natural, espontânea.
Os documentos encontrados pelos dois no Instituto Hoover desmentem essa espontaneidade, e deixam nítida uma estratégia de manutenção de poder por parte dos EUA na região. Estratégia muito bem organizada, articulada, e abastecida com polpudos recursos. Bob Fernandes pergunta aos dois por que a Atlas Network foi fundada, qual é o caso dela.
3.
Nome completo dela: Atlas Economic Research Foundation, responsável por fazer “essa grande rede de ligações de institutos liberais”. São 500 institutos, presentes em mais de 100 países. Na América Latina, 121. Criada por um britânico, Anthony Fischer, em 1981. Ex-combatente da Aeronáutica, percebe a ascensão do Partido Trabalhista como uma ameaça, o comunismo podendo chegar à Grã-Bretanha.
Fora tomado pelas ideias de Friedrich Hayek presentes na revista Reader’s Digest, particularmente pelo livro O caminho da servidão, espécie de bíblia do liberalismo, de crítica ao socialismo, à chamada tirania representada pela presença do Estado. Friedrich Hayek, um dos mais destacados intelectuais do campo conservador, teve o livro traduzido para aproximadamente 20 idiomas e se constitui, insista-se, numa publicação em defesa do capitalismo, da livre iniciativa, da liberdade absoluta do mercado, contra a presença do Estado, mesmo aquela mitigada, não propriamente socialista.
Anthony Fischer procurou Friedrich Hayek, queria montar um partido. O economista argumenta: não se aventurasse, teria apenas o próprio voto. Ele se torna um próspero empresário no ramo de frango, e aqui falamos dos anos 1950, conforme os dois pesquisadores explicam a Bob Fernandes. Tem à mão, então, os fundos financeiros para fundar o Institute of Economic Affairs (IEA), voltado à propagação do liberalismo.
Conta-se: em 1979, primeira reunião do gabinete, Margaret Thatcher joga na mesa cópia do livro Os fundamentos da liberdade, de Friedrich Hayek, editado pelo IEA, e disse, enfaticamente: “É nisso que acredito!”. A partir daí, Anthony Fischer funda a Atlas Network.
Manteve relações com Margaret Thatcher. Os dois pesquisadores encontraram troca de correspondência entre a primeira-ministra britânica e Anthony Fischer, nos documentos do Instituto Hoover. Além de Anthony Fischer, há Milton Friedman, talvez, depois de Friedrich Hayek, o mais importante economista na difusão e aplicação do neoliberalismo. Teve papel essencial no desenvolvimento do neoliberalismo no Chile e por formar a geração dos chamados “Chicagos Boys”, entre os quais, Paulo Guedes, ministro da economia de Jair Bolsonaro.
Anthony Fischer não deixará de ressaltar a dívida dele com Friedrich Hayek. Foi pela convivência e conselhos dele a militância na batalha das ideias em favor do futuro liberal e neoliberal da sociedade. Os dois pesquisadores mapearam tudo isso. Nos documentos do Instituto Hoover, os pesquisadores localizaram a correspondência entre Margaret Tatcher, Friedrich Hayek, Anthony Fischer e Milton Friedman.
Anthony Fischer entendeu a necessidade de transnacionalizar a experiência britânica, espalhar pelo mundo o que havia conseguido no Reino Unido, a partir de uma conversa com Friedrich Hayek. Em 1º de janeiro de 1980, consulta Friedrich Hayek sobre a ideia de estender, ampliar mundo afora uma rede de institutos liberais. O mestre se entusiasma, concorda inteiramente, diz ser desejável e quase um dever estender a rede.
Friedrich Hayek dialoga com o discípulo. Lembra meu argumento de 30 anos atrás? Só era possível vencer a tendência do avanço do socialismo se houvesse um trabalho consistente para persuadir os intelectuais, os formadores de opinião. E aquela ideia está plenamente confirmada, afirmava o mestre neoliberal. Diz gostar muito do trabalho do instituto fundado por Anthony Fischer, o IEA. A experiência desenvolvida por ele devia, na opinião de Friedrich Hayek, ser reproduzida. Encontrasse caminhos para fundar institutos semelhantes em todo o mundo.
Uma espécie de palavra de ordem.
4.
A Atlas Network não nasce no Reino Unido, mas nos EUA, a partir dos escritórios de Anthony Fischer em São Francisco, na Califórnia. Jahde Lopez e Luan Brum vão detalhando, inclusive revelando acasos. Anthony Fischer e a segunda esposa, Dorian, moravam no mesmo edifício de Milton Friedman. Se comparada com a dimensão posterior, a entidade nasce pequena, com poucos funcionários. Em caixa, apenas coisa de 300 mil dólares, nada se o número for cotejado com o valor de 2023, a alcançar o montante de mais de 20 milhões de dólares. Crescera de importância.
O ano da fundação, 1981. O objetivo, crescer. Coordenar os institutos liberais, ou neoliberais, existentes, e fundar outros tantos, mundo afora. Então, não passavam de dez, 15 institutos. Vai superar a casa de 500 institutos, surgidos em decorrência de generosos financiamentos.
O capital não estava para brincadeira. A batalha das ideias, voltada ao combate ao socialismo e ao próprio Estado de Bem-Estar e, também, a qualquer experiência com alguma natureza reformista, era enxergada como prioritária. Qualquer cochilo, e o comunismo poderia chegar ao poder – esta, a ameaça permanente, não importa seja quimera, não interessa estivesse a experiência do socialismo real vivendo enormes dificuldades, a redundar, menos de uma década depois, num monumental debacle, a partir da queda do Muro de Berlim.
Sempre usar o comunismo como argumento, como um espectro. Lembrar a abertura do Manifesto Comunista: um espectro ronda a Europa, o espectro do comunismo.
A partir da indagação de Bob Fernandes sobre os financiadores, os dois pesquisadores revelam: as doações provinham de indivíduos, como se filantrópicas, uma estranha filantropia, voltada a ajudar modelos de governo voltados à exploração e superexploração dos mais pobres, empenhados na concentração de renda, dar suporte à perversa caminhada do capitalismo na fase neoliberal.
Doadores muito conhecidos, os irmãos Koch, cuja trajetória milionária foi conseguida tentando e tendo sucesso em evitar obstáculo legais, contribuindo na ajuda ao neoliberalismo, onde pudessem, inclusive ajudando a Network.
Sim, mas não apenas doações individuais. O mundo do grande capital, das grandes empresas, também se movimentou no sentido de alavancar a Atlas Network e tantos outros institutos. Afinal, estava em jogo o modo de produção capitalista na fase atual do neoliberalismo. Não podiam vacilar.
5.
Como a indústria farmacêutica iria ficar de fora desse esforço? A Pfizer figura na lista de doadores da Atlas Network. A indústria do tabaco, de modo especial a Philip Morris, também chegou junto, assim como a do petróleo, ExxonMobil. A Coca Cola, que não é besta, também parte do jogo, das doações.
Essa movimentação do grande mundo capitalista, com a Atlas Network aparecendo de modo cristalino no comando, como revelado pelos documentos do Instituto Hoover.
A organização fez uma reunião no Panamá com integrantes da Coca Cola e com a Câmara de Comércio, certamente não apenas uma troca elegante de ideias, mas, sobretudo, um acerto de interesses: a natureza essencial do trabalho da Atlas Network visando abrir caminhos vastos para a afirmação dos negócios da Coca Cola e a importância de carrear recursos para a manutenção e expansão do trabalho da entidade.
A Atlas Network cuidou sempre de favorecer o surgimento de outros institutos. Nos documentos do Instituto Hoover, localiza-se uma reunião na Pfizer para tratar da criação do The Center for New Latin America, ideia a agradar a gigante de medicamentos. Os dois pesquisadores demonstram, também, os artifícios de entidades supostamente privadas servindo de dutos de financiamento de institutos liberais – e diz-se supostamente privadas porque incluídas no orçamento do Estado.
Citam, como exemplo, a National Endowment for Democracy (NED), fundada logo após a Atlas Network, em 1983, com o objetivo explícito de combater o comunismo, a contar com recursos anuais do orçamento norte-americano. A NED assumiu diversas atividades antes confiadas apenas à CIA, só para se ter ideia da importância dela para os interesses dos EUA e de como não se trata simplesmente de uma entidade privada – no mínimo, bifronte.
A NED nasce sob o governo de Ronald Reagan, assim como o Center for International Private Enterprise, duas agências com a mesma natureza, e a mesma ligação umbilical com o establishment norte-americano. Esclarecimento importante dos dois pesquisadores, se ainda não estiver claro: tais agências a serviço dos EUA, braços de financiamento dos institutos liberais, não são democratas ou republicanas: servem aos dois partidos, cuja essência, do ponto de vista dos interesses do império, é a mesma. As divergências, a rigor, são de superfície.
Os pesquisadores lembram o Fórum da Liberdade, de 2010, realizado em Porto Alegre, para demonstrar a existência, desde lá, no caso brasileiro, de um projeto de tomada do poder, ascensão do neoliberalismo, toda uma visão a anteceder as mobilizações de 2013, devidamente orquestrada pelos institutos neoliberais, o impeachment de Dilma Rousseff e a chegada de Jair Bolsonaro ao poder, como dito anteriormente.
Uma estratégia político-ideológica vitoriosa, só paralisada com a vitória de Lula, em 2022. Toda essa movimentação teve a Atlas Network como uma espécie de centro, secundada por institutos fundados e dirigido por brasileiros, já referidos, como Instituto Millenium ou Mises, para citar dois entre muitos.
Não quiséssemos ir ao conjunto do texto sobre o Fórum da Liberdade 2010, realizado em Porto Alegre, nos dias 12 e 13 de abril daquele ano, escrito por Tania Jamardo Faillace, publicado pelo jornal Já, em 19 de abril de 2010, bastaria nos determos no título: “Reabilitação do individualismo e da ganância como valores morais”.
Escancara a perspectiva do neoliberalismo quase que de modo obsceno, sem quaisquer limites, ancorado, no caso, em valores morais, opostos a quaisquer perspectivas de construção de uma sociedade fundada na igualdade, mínima que seja. Mais do que nunca, naquele fórum, enuncia-se, do ponto de vista filosófico, a ideia hobbesiana de o homem ser o lobo do homem, e não fosse, deveria ser estimulado a sê-lo. O documento, e não por acaso, chega a elogiar abertamente Augusto Pinochet, onde o neoliberalismo fez sua primeira aparição.
O Fórum da Liberdade teria sido a gênese de um processo, oriundo de forças internacionais dirigidas desde o centro capitalista, mais especificamente dos EUA, a orientar uma virada de mesa, com golpe e tudo, e com a eleição de um representante da extrema direita em 2018, recheada pelo fortalecimento nunca antes visto de forças conservadoras no Congresso Nacional, cujas consequências, sentidas até hoje.
*Emiliano Joséé jornalista, escritor, membro da Academia de Letras da Bahia. Autor, entre outros livros, de O cão morde a noite (EDUFBA) [https://amzn.to/46i5Oxb]
Para acessar a primeira parte dessa série, clique em https://aterraeredonda.com.br/agencias-norte-americanas-e-a-difusao-do-neoliberalismo/
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