O desafio do bolsonarismo

Clara Figueiredo, série_ Brasília_ fungos e simulacros, super quadra, 2018
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por DAVID MACIEL*

Não basta vencer Bolsonaro, é preciso também reconquistar a iniciativa política

Os resultados do 1º turno das eleições presidenciais, realizado no dia 2 de outubro, revelam processos que estão em curso na sociedade brasileira há algum tempo e indicam tendências políticas e ideológicas extremamente preocupantes para as classes trabalhadoras, os movimentos sociais e as organizações de esquerda, particularmente aquelas da esquerda socialista.

O maior realce vem da votação maciça dos candidatos de extrema direita em todas as esferas de disputa, conquistando espaço político e institucional maior do que nas eleições anteriores, com grande peso na disputa para o segundo turno e na luta política futura. Apesar do descalabro econômico, político e moral do governo de Jair Bolsonaro, este conquistou uma votação surpreendente na disputa presidencial, particularmente junto aos setores proletarizados, enquanto o bolsonarismo e seus aliados avançaram de maneira expressiva nos governos estaduais, na Câmara dos Deputados e no Senado.

Tais resultados mostram a grande inserção da perspectiva político-ideológica conservadora e mesmo fascista em largas parcelas da população, revelando um enraizamento que coloca em xeque a tática e a estratégia de luta da esquerda da ordem e da própria candidatura Lula. Enquanto a campanha bolsonarista partiu para o enfrentamento, fazendo uso e abuso das vantagens que lhe foram concedidas pelo “estado de emergência” para mobilizar sua base e intimidar a oposição – ameaça golpista, violência política, assistencialismo eleitoreiro, fake news, “voto de cabresto” miliciano, evangélico e/ou empresarial –, a candidatura de Lula se limitou a operar nos marcos da ordem, apresentando-se como fiador do “sistema”, das “instituições”, como se estas, completamente esgarçadas, ainda gozassem de alguma legitimidade junto à massa da população.

Diante do desafio apresentado pelo bolsonarismo, a campanha lulista optou pelo “quietismo”, não pela mobilização de massas e pela organização de base; costurou alianças “pelo alto” com as forças e lideranças de centro-direita, em acelerado processo de derretimento eleitoral, tratando os movimentos sociais e organizações de esquerda como meros apêndices da “grande aliança”; prometeu a restauração de um passado idealizado e historicamente superado, ao invés de apresentar um programa tanto de reversão das medidas autoritárias, das contrarreformas e do neoliberalismo extremado, quanto de ampliação dos direitos políticos, sociais e trabalhistas dos trabalhadores.

Nas semanas finais da campanha para o 1º turno, Lula apelou para o discurso monocórdio do “voto útil” pela defesa do “Estado democrático de direito”, tema completamente abstrato para a maioria da população e que não condiz em absoluto com a realidade política e institucional do país desde o golpe de 2016.

Essa tática eleitoral se insere numa estratégia política de acomodação com as mudanças políticas, institucionais e econômicas adotadas desde o golpe de 2016, e mais ainda com o próprio bolsonarismo, à medida que aposta na conciliação de classes e na conquista do governo por dentro da própria institucionalidade autoritária atualmente vigente. Para tanto, foi preciso frear a mobilização popular pelo impeachment de Jair Bolsonaro e contra a escalada fascistizante e neoliberal dirigida pelo governo e pelo Centrão ao longo deste ano, permitindo assim a presença de Lula na disputa eleitoral como “adversário ideal” para fazer contraponto a Jair Bolsonaro.

Além de impotente para confrontar o avanço do bolsonarismo e a escalada fascistizante/neoliberal em curso, esta estratégia remete para as calendas gregas a necessária superação política, institucional e econômica do golpe de 2016, fortalecendo sua legitimação política pela via eleitoral e permitindo apenas “correções” pontuais aqui e acolá. Correções que não alteram a correlação de forças em favor dos trabalhadores, nem modificam o atual modelo econômico de ultraprecarização e superexploração do trabalho, primarização econômica, acirramento da dependência e pilhagem dos bens e recursos públicos e naturais sob o garrote do capital financeiro.

No entanto, apesar das contradições entre as frações burguesas bolsonaristas e não bolsonaristas, para o conjunto do bloco no poder esta situação é extremamente confortável, pois nestas circunstâncias a possibilidade de legitimação política e de aprofundamento das medidas autoritárias, das contrarreformas e da política econômica neoliberal se fortalece, independentemente do resultado do segundo turno.

Na estratégia burguesa, combinam-se tanto a licença dada a Jair Bolsonaro pelo “estado de emergência” para que cometa crimes eleitorais, mobilize sua base para a violência política e vitamine sua candidatura, quanto a pressão sobre a candidatura Lula para que mantenha o ajuste fiscal, o teto de gastos, as contrarreformas neoliberais, o tripé da politica econômica (superávit primário, regime de metas de inflação e câmbio flutuante) e outras medidas que favorecem a exploração dos trabalhadores, a acumulação capitalista e a privatização de bens, recursos e direitos em nome da manutenção do “Estado democrático de direito”! Ou seja, para o bloco no poder, o curso histórico iniciado em 2016 não tem volta, deve ser legitimado, mantido e aprofundado.

Diante deste quadro e dos resultados do primeiro turno, torna-se evidente que não é possível combater a guerra total movida pelo bolsonarismo, nem a perspectiva burguesa de legitimação do atual status quo, com acordos de gabinete, adesão de artistas e celebridades ou reminiscências do passado. É preciso que os trabalhadores, movimentos sociais e organizações de esquerda transformem a campanha eleitoral num amplo movimento pelo Fora Bolsonaro e contra a legitimação do golpe de 2016 por meio da eleição de Lula e da criação de comitês populares permanentes, que não se desarticulem após as eleições.

Portanto, não se trata apenas de eleger Lula e assim evitar a vitória de Jair Bolsonaro e impedir a continuidade de um governo desastroso e absolutamente hostil aos mais comezinhos interesses dos trabalhadores. Trata-se também de reconquistar a iniciativa política, retomar a mobilização de massas e avançar na organização de base, para que a crise capitalista e o golpe de 2016 sejam superados pela ampliação das liberdades democráticas e direitos sociais e pelo controle dos bens e recursos públicos pelos trabalhadores. As forças da esquerda socialista e os movimentos sociais estão chamados a cumprir esta tarefa histórica sem demora nem tergiversação.

*David Maciel é professor de história. Autor de História, política e revolução em Marx e Engels (edições Gárgula).

O site A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores. Ajude-nos a manter esta ideia.
Clique aqui e veja como

Veja neste link todos artigos de

AUTORES

TEMAS

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
Gerson Almeida Salem Nasser Jean Pierre Chauvin Maria Rita Kehl Marilia Pacheco Fiorillo Tarso Genro Luís Fernando Vitagliano Annateresa Fabris Ari Marcelo Solon Luis Felipe Miguel Marcelo Guimarães Lima Luiz Werneck Vianna José Costa Júnior Paulo Capel Narvai Remy José Fontana Carlos Tautz Leonardo Sacramento Julian Rodrigues Dennis Oliveira Flávio Aguiar Slavoj Žižek Fernando Nogueira da Costa Lorenzo Vitral Ronald Rocha Jorge Branco Lucas Fiaschetti Estevez José Machado Moita Neto Sergio Amadeu da Silveira Renato Dagnino Érico Andrade Flávio R. Kothe André Márcio Neves Soares Antonio Martins Paulo Sérgio Pinheiro Atilio A. Boron João Carlos Salles Marcelo Módolo Gilberto Maringoni Celso Frederico Leonardo Avritzer Gabriel Cohn João Paulo Ayub Fonseca Marcos Aurélio da Silva Daniel Costa Vanderlei Tenório Francisco de Oliveira Barros Júnior João Sette Whitaker Ferreira Fábio Konder Comparato Rubens Pinto Lyra Priscila Figueiredo Leda Maria Paulani Luiz Carlos Bresser-Pereira Rodrigo de Faria Ricardo Antunes Eleutério F. S. Prado Claudio Katz Paulo Fernandes Silveira Everaldo de Oliveira Andrade Eliziário Andrade Marjorie C. Marona Luiz Renato Martins Alexandre de Oliveira Torres Carrasco Francisco Fernandes Ladeira Juarez Guimarães Eleonora Albano Henry Burnett Liszt Vieira Manchetômetro Ladislau Dowbor Vinício Carrilho Martinez Caio Bugiato José Luís Fiori Luiz Marques Alexandre Aragão de Albuquerque Samuel Kilsztajn Valerio Arcary Manuel Domingos Neto Leonardo Boff João Lanari Bo Jorge Luiz Souto Maior Andrés del Río João Carlos Loebens Otaviano Helene Luiz Eduardo Soares Plínio de Arruda Sampaio Jr. Berenice Bento Alexandre de Freitas Barbosa Osvaldo Coggiola Gilberto Lopes Paulo Nogueira Batista Jr Ricardo Fabbrini Paulo Martins Alysson Leandro Mascaro Boaventura de Sousa Santos Bernardo Ricupero Elias Jabbour Bruno Machado Luiz Bernardo Pericás Lincoln Secco Benicio Viero Schmidt Luiz Roberto Alves Chico Alencar Afrânio Catani José Raimundo Trindade Marcus Ianoni Sandra Bitencourt Kátia Gerab Baggio Dênis de Moraes Eugênio Trivinho Michael Roberts Chico Whitaker Tales Ab'Sáber Thomas Piketty Michael Löwy Eduardo Borges Antonino Infranca Anselm Jappe Ricardo Abramovay Vladimir Safatle João Feres Júnior Ronaldo Tadeu de Souza Michel Goulart da Silva Fernão Pessoa Ramos Marilena Chauí Alexandre de Lima Castro Tranjan Denilson Cordeiro Antônio Sales Rios Neto João Adolfo Hansen Tadeu Valadares Igor Felippe Santos Matheus Silveira de Souza Jean Marc Von Der Weid Armando Boito Luciano Nascimento Milton Pinheiro Rafael R. Ioris Ronald León Núñez Marcos Silva Airton Paschoa Bruno Fabricio Alcebino da Silva Daniel Afonso da Silva Daniel Brazil Eugênio Bucci Valerio Arcary Mário Maestri Ricardo Musse Walnice Nogueira Galvão José Micaelson Lacerda Morais Yuri Martins-Fontes Carla Teixeira Bento Prado Jr. Celso Favaretto Francisco Pereira de Farias José Geraldo Couto Heraldo Campos André Singer Andrew Korybko Henri Acselrad José Dirceu Mariarosaria Fabris

NOVAS PUBLICAÇÕES