Por ANA LUIZA SARAMAGO STERN*
A brutalidade do desaparecimento de Rubens Paiva é a mensagem de que qualquer um pode ser um Rubens Paiva em um regime de violência
A vitória de Fernanda Torres ao Globo de Ouro é certamente o coroamento do que o cinema brasileiro tem de melhor, da arte que quebra barreiras, transcende fronteiras, ecoa pelo planeta. É a vitória de uma atriz, um diretor, uma equipe, e um filme que contam uma história, como bons filmes costumam fazer.
Mas não só uma história, contam uma vida, uma personagem, uma mãe, uma esposa, uma mulher que de dona de casa é dilacerada por abjetas e obscuras forças. E ainda, da violência brutal e extrema, do desaparecimento de seu marido e pai de seus filhos, da preeminência do dia seguinte, da urgência da fome dos filhos, Eunice Paiva se refaz, ou se constrói mais mulher, mais forte, continua ali.
E é na simplicidade da inequívoca força da história de Eunice Paiva que as críticas aparentemente mais pertinentes às escolhas de roteiristas e diretor perdem seu sentido. O filme não descreve em detalhes a realidade política brasileira daqueles dias, não se alonga na história e feitos de Rubens Paiva, não se aprofunda em características pertinentes especificamente àqueles personagens. Mas não se trata de um esquecimento, ou desinteresse por estas especificidades, não é porque diminua tal história que o filme passa em sobrevoo tais idiossincrasias, mas pelo contrário, porque a faz (a história de Eunice) maior que suas próprias características, maior do que seus personagens, maior do que a sua própria história, pois sendo qualquer história é a história que pode acontecer a qualquer um.
Não quis Ainda estou aqui, a meu ver, propositadamente, deter-se em detalhes de um regime específico, de um momento histórico determinado, de personagens bem definidos, porque tem o mérito de tratar de um modus operandi característico de qualquer regime autoritário. O silêncio sobre certos detalhes de sua história é a transcendência da história de Eunice Paiva para a possibilidade de repetir-se a mesma história a qualquer Eunice, em qualquer ditadura. A brutalidade do desaparecimento de Rubens Paiva, no silêncio sobre os detalhes de seu personagem, é a mensagem de que qualquer um pode ser um Rubens Paiva em um regime de violência.
Em tempos sombrios como hoje, em um cenário de ascensão de ideologias autoritárias, de extremos, de políticos que relativizam as conquistas da democracia, a importância do filme Ainda estou aqui e sua visibilidade não se aprisionam um uma história específica. Conta a vida de Eunice Paiva mas nela conta a realidade do que são regimes autoritários, em quaisquer de suas roupagens. Em um cenário em que o casamento (de conveniência) entre democracia e capitalismo parece estar sendo posto em dúvida, em que bandeiras neoliberais parecem dispostas a abandonar as próprias premissas liberais construídas em séculos e séculos de lutas, o filme transcende os nomes de seus personagens para ser um lembrete do que pode acontecer a qualquer um quando certos limites são transpostos, quando a lógica schimittiana do amigo-inimigo se torna política de estado, quando a democracia ( por mais falha que seja) é relativizada, e a liberdade dá lugar à intransigência.
Enquanto pudermos discordar, discutir, ouvir e sermos ouvidos, coexistir em um cenário democrático, certas garantias, certas seguranças, certos limites permanecem bem resguardados. Quando, no entanto, as linhas da democracia forem esgarçadas, quando o poder se arvorar em violência, quando a guerra (seja na força ou psicológica) se tornar política de estado, os resultados, nefastos e inexoráveis serão os porões, os desaparecimentos, os filhos sem pais, as esposas e mães torturadas, o silêncio e o medo.
Esse é o maior mérito de Ainda estou aqui, ensinar aos mais novos, lembrar aos mais velhos, provar na veracidade de sua história, e ao mesmo tempo ampliar no que silencia dessa história, o que acontece em regimes autoritários. O filme é incontornável nos dias de hoje por evidenciar, em toda a sua violência e tragédia, a necessidade de resguardarmos e lutarmos pela defesa das balizas democráticas, porque se nós ainda estamos aqui, eles (os que detestam a democracia) também estão.
*Ana Luiza Saramago Stern é professora do Departamento de Direito da PUC-Rio.
Referência
Ainda estou aqui
Brasil, 2024, 135 minutos.
Direção: Walter Salles.
Roteiro: Murilo Hauser e Heitor Lorega.
Direção de Fotografia: Adrian Teijido.
Montagem: Affonso Gonçalves.
Direção de Arte: Carlos Conti
Música: Warren Ellis
Elenco: Fernanda Torres; Fernanda Montenegro; Selton Mello; Valentina Herszage, Luiza Kosovski, Bárbara Luz, Guilherme Silveira e Cora Ramalho, Olivia Torres, Antonio Saboia, Marjorie Estiano, Maria Manoella e Gabriela Carneiro da Cunha.
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