O moralista virtual

George Grosz, O Eclipse do Sol, 1926.
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por FRANCISCO FERNANDES LADEIRA*

O “moralista virtual” se considera o guardião da ética, moral, bons costumes e tudo o que se possa esperar de um “cidadão de bem”

Antes do surgimento das redes sociais, se quiséssemos conhecer as personalidades mais obscuras, ou entender até que ponto pode chegar a incoerência humana, deveríamos fazer extensas pesquisas sobre diagnósticos relatados em obras acadêmicas de cunho psicanalítico. Já nos dias de hoje, para a mesma tarefa, basta acessarmos o Facebook, Instagram, Twitter ou WhatsApp.

Assim, numa época de crise política, e consequente radicalização ideológica, um peculiar tipo de internauta tem chamado bastante a atenção: trata-se do “moralista virtual”. Conforme o epíteto sugere, o “moralista virtual” se considera o guardião da ética, moral, bons costumes e tudo o que se possa esperar de um “cidadão de bem”. Seu principal mantra é verbalizar contra a corrupção.

Entretanto, embora aparentemente bem-intencionado, este discurso é extremamente seletivo, pois localiza práticas consideradas ilícitas somente na esfera estatal e, sobretudo, em um partido político específico: o PT.

O “moralista virtual” adora compartilhar frases de efeito, tipo “sou contra a corrupção, todos os políticos devem ser presos, doa a quem doer, independente do partido”, mas, curiosamente, suas críticas também só são destinadas a políticos petistas.

O “moralista virtual” foi para a rua e vestiu a camisa da seleção brasileira em junho de 2013, protestou contra o governo Dilma Rousseff na avenida Paulista, dois anos depois, soltou foguetes quando Lula foi preso e vibrou com a eleição de Jair Bolsonaro para a presidência da República. Mas se calou em relação a casos de corrupção ligados a legendas da direita política.

Ele também se orgulha de atrelar sua conduta exemplar a forte religiosidade cristã. Segue fielmente o mandamento que diz para amar ao próximo como a si mesmo, desde que o “próximo” não seja negro, pobre, comunista ou LGBTQIA+.

Para o “moralista virtual”, “bandido bom é bandido morto” (de preferência morador de comunidade carente), feminismo é coisa de “mulher mal-comida” (a “feminazi”), reforma agrária representa “dar terra para os vagabundos do MST” e cotas raciais constituem um preconceito às avessas.

Segundo o “moralista virtual”, o mundo hoje está muito chato. Cheio de mi-mi-mi. “Não posso nem mais expressar meus preconceitos e ódios em paz”, deve pensar sistematicamente o “moralista virtual”. Telespectador assíduo de programas policialescos, o “moralista virtual” considera que os direitos humanos foram feitos para “defender vagabundo e criminoso” (“os direitos dos manos”), mas, quando seus colegas foram presos em Brasília, por tentativa de golpe, em 8 de janeiro, ele pediu “tratamento digno”.

O “moralista virtual” demoniza o Estado e idolatra o mercado. O discurso da “meritocracia” é um de seus preferidos: “as oportunidades são iguais para todos, só não se dá bem na vida quem não quer ou não tem capacidade”. Contudo, as ideias liberais só valem para o âmbito econômico. Liberdades políticas, como legalização das drogas, permissão do aborto ou união homoafetiva estão fora de cogitação, pois colocam em risco a tradicional família brasileira.

Por outro lado, o moralismo aqui citado só se aplica às redes sociais.  Na realidade, as coisas são bem diferentes. O “moralista virtual”, em seu cotidiano, pratica “pequenas corrupções”, “fura” a fila do banco, estaciona seu carro em local destinado a pessoas com deficiência, sonega impostos e, não raro, obtém favores ilegais de autoridades públicas.

Enfim, o “moralista virtual” é o típico exemplo de “faça o que eu digo (na internet) e não o que eu faço (na vida real)”.

*Francisco Fernandes Ladeira é doutorando em Geografia na Unicamp. Autor, entre outros livros, de A ideologia dos noticiários internacionais (Editora CRV).


A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
Clique aqui e veja como

Veja neste link todos artigos de

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

__________________
  • Um estudo do caso Ailton Krenak1974__Identidade ignorada 21/07/2024 Por MARIA SILVIA CINTRA MARTINS: Prefiro sonhar com Krenak o parentesco com a natureza e com as pedras do que embarcar na naturalização do genocídio
  • Clarice Lispector no cinemacultura a paixão segundo g.h. 22/07/2024 Por LUCIANA MOLINA: Comentário sobre três adaptações cinematográficas da obra de Clarice Lispector
  • O princípio de autodestruiçãoLeonardo Boff 25/07/2024 Por LEONARDO BOFF: Qual ciência é boa para a transformação mundial?
  • Filosofia da práxis como poiésiscultura lenora de barros 24/07/2024 Por GENILDO FERREIRA DA SILVA & JOSÉ CRISÓSTOMO DE SOUZA: Fazer filosofia é, para o Poética, fazer filosofia contemporânea, crítica e temática
  • Que horas são no relógio de guerra da OTAN?José Luís Fiori 17/07/2024 Por JOSÉ LUÍS FIORI: Os ponteiros do “relógio da guerra mundial” estão se movendo de forma cada vez mais acelerada
  • Apagão digitalSergio Amadeu da Silveira 22/07/2024 Por SÉRGIO AMADEU DA SILVEIRA: A catástrofe algorítmica e a nuvem do “apagão”
  • A disputa de Taiwan e a inovação tecnológica na ChinaChina Flag 20/07/2024 Por JOSÉ LUÍS FIORI: A China já é hoje a líder mundial em 37 das 44 tecnologias consideradas mais importantes para o desenvolvimento econômico e militar do futuro
  • A produção ensaística de Ailton Krenakcultura gotas transp 11/07/2024 Por FILIPE DE FREITAS GONÇALVES: Ao radicalizar sua crítica ao capitalismo, Krenak esquece de que o que está levando o mundo a seu fim é o sistema econômico e social em que vivemos e não nossa separação da natureza
  • A radicalidade da vida estéticacultura 04 20/07/2024 Por AMANDA DE ALMEIDA ROMÃO: O sentido da vida para Contardo Calligaris
  • A questão agrária no Brasil — segundo Octávio IanniJose-Raimundo-Trindade2 19/07/2024 Por JOSÉ RAIMUNDO TRINDADE: As contribuições de Ianni podem auxiliar a reformular o debate agrário brasileiro, sendo que as obras do autor nos apontam os eixos para se repensar a estrutura fundiária brasileira

PESQUISAR

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES