Aldeia global

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Por GABRIEL COHN*

McLuhan e o ecumenismo controlado

“As concepções antigas, tradicionais, de idéias e ações privadas, isoladas – os padrões de tecnologias mecânicas – são seriamente ameaçadas por novos métodos de gestão de informação elétrica instantânea, pelos bancos de dados de computadores. Já atingimos um ponto que exige controle corretivo, derivado de conhecimento dos meios de comunicação e do seu efeito total sobre todos nós. Como deverá ser programado o novo ambiente quando nos tornamos tão envolvidos uns com os outros, quando todos nós viramos tarefeiros inconscientes para a mudança social?”.

McLuhan escreveu isso no seu livro The Medium is the Massage, em 1968. Nessa obra de imenso sucesso de público, na qual se misturam as habituais sentenças oraculares de McLuhan e o desenho gráfico de Quentin Fiore, encontramos, em versão compacta, algumas das suas formulações mais peculiares. “O nosso é um mundo inteiramente novo de simultaneidade. O ‘tempo’ cessou, o ‘espaço’ sumiu. Vivemos agora numa aldeia global … um acontecer simultâneo. Estamos de volta no espaço acústico. Recomeçamos a estruturar o sentimento primordial, as emoções tribais das quais fomos separados por alguns séculos de comunicação escrita”, acrescenta ele.

Nessas formulações ele se encontra inteiro. Ênfase nos meios, acontecer simultâneo, aldeia global, controle, programação. Só falta a idéia-matriz, de que os meios de comunicação são “extensões do homem” (ideia que, por sinal, Walnice Galvão, em ensaio desconcertante no seu livro Saco de gatos, vai encontrar no quase homônimo escritor holandês Hendrick van Loon, para quem tais extensões são todas as invenções humanas). O resto encontra-se aí, principalmente a idéia de que os meios de comunicação eletrônicos têm efeito revolucionário. Eles modificam o mundo organizado no padrão linear e restrito da escritura ao imporem, no lugar da linha escrita consecutiva, o intrincado “mosaico” de eventos simultâneos que ligam tudo com tudo.

Mas já por aí se vê que, ao falar das “extensões do homem”, McLuhan tem em mente algo mais do que prolongamentos lineares dos olhos, dos ouvidos, do tato e, no limite (atingido pelos meios eletrônicos), do próprio sistema nervoso. A idéia é de projeções que constituem, mais do que meios de comunicação, o próprio meio ambiente tecnologicamente definido no qual os homens se acham inteiramente absorvidos. Boa parte do pensamento de McLuhan se nutre da ambiguidade entre meio como veículo e meio como ambiente. Ora é uma coisa, ora é outra, inseparavelmente. A solução que ele oferece é que o veículo, o meio técnico, define o ambiente.

Como todas em McLuhan, a fórmula “o meio é a mensagem” (ou “massagem”, imagem plástica para essa ação dos meios, de literalmente recobrir os envolvidos na comunicação) é forte, mas imprecisa. Ela sustenta que não há mais mensagens pontuais, o que há é a imersão na conjunção de eventos simultâneos própria aos meios eletrônicos. Não são mais os conteúdos transmitidos que importam, e sim o modo como as tecnologias da comunicação plasmam a percepção que os homens têm do mundo e nisso formam o seu ambiente, o seu modo de vida enfim.

Nessas condições, a expressão “aldeia global” não se refere simplesmente à extensão, para o mundo todo, de uma forma unificada de sociabilidade aldeã. Isso poderia soar como uma espécie de distopia, centrada na expansão pelo globo inteiro do lado sombrio da vida aldeã, de contínuo e minucioso controle da vida de todos por todos. Não se trata bem disso, todavia. A referência é mais propriamente ao alcance planetário de formas de percepção e sensação “míticas”, nas quais tudo se junta a tudo e as descontinuidades do mundo mecânico-linear da comunicação escrita são abolidas pela comunicação eletrônica, que não respeita tempo nem lugar.

Qual é o sentido dessa construção toda? Em primeiro lugar, ela encerra uma advertência. “Vivemos miticamente, mas continuamos a pensar fragmentariamente e em planos isolados”, escreve McLuhan em Understanding Media. Assinala-se, assim, um descompasso a ser corrigido. Uma leitura “linear” disso poderia levar-nos a uma conclusão perturbadora, mas insuficiente. A saber, que devemos abandonar o modo fragmentário de “ver” o mundo e passar a “ouvi-lo” miticamente, plenamente envolvidos na saturação do tempo e do espaço por estímulos, sensações e idéias. Isso seria insuficiente, pois não atinge a questão fundamental nisso tudo, que é a do controle.

Devemos, diz McLuhan na citação que abre o presente texto, conhecer os meios para exercer “controle corretivo”, mediante a “programação” do ambiente constituído por eles. Tarefa difícil, para quem está imerso nesse ambiente; salvo se houver, apesar de tudo, possíveis controladores. Atingimos, aqui, o ponto mais controverso, mas ao mesmo tempo mais fascinante, nesse pensamento. (…)

Para chegar ao núcleo duro das idéias de McLuhan é preciso lembrar a sua distinção entre meios “quentes” e “frios”. Nesse ponto entra a pirueta analítica de McLuhan: meios quentes “aquecem” os usuários, enquanto os “frios” os esfriam. É como se a participação “fria” (no nível dos mecanismos de percepção, não da ação deliberada) consumisse energia que a percepção “quente” deixa disponível. Isso se traduz na possibilidade de técnicas de controle de populações inteiras, mediante o recurso próprio aos meios, que é a programação. Estamos nos aproximando, sustenta McLuhan, de um “mundo automaticamente controlado”, no qual a programação (mais TV aqui, menos radio ali, e assim por diante), permitiria que “culturas inteiras poderiam programar-se para manter estável o clima emocional, do mesmo modo como estamos conhecendo algo sobre a manutenção das economias”.

Resta a questão: quem programará, quem deterá o poder de controle sobre os meios e, por conseguinte, sobre o ambiente mediaticamente criado? Uma resposta possível é sugerida por McLuhan, implicitamente: ninguém. Não haveria controladores, o mundo seria “automaticamente controlado”, nessa estranha ecologia dos meios de comunicação (aliás, vale a pena uma leitura “ecológica” de McLuhan).

O outro lado dessa resposta também está dado, mais enfaticamente: internamente não há nada a opor a um meio. Só outro meio pode mudar o panorama. Portanto, quem pensa em resistência aos meios que aí estão, que crie outros. É verdade que isso levará a outros automatismos, mas, na utopia (ou distopia) tecnológica concebida por McLuhan, isso não é problema. O mundo vislumbrado por McLuhan pode parecer a realização plena do ecumenismo, mas funciona como a realização plena da sociedade “programada” de controle

Adendo

As décadas seguintes aos escritos de McLuhan acabaram trazendo à tona mais os componentes involuntariamente distópicos do que a suposta visão radiosa neles encerrada. A ideia da aldeia global sempre esteve à beira de remeter mais ao aspecto sombrio da vida aldeã do que à imagem de um mundo unificado por laços que unissem todos a todos na imersão no ambiente cálido dos contatos virtuais instantâneos. Esse aspecto sombrio consiste no prolongamento em nova escala daquilo que é a marca daquele modo de vida, o controle contínuo de todos sobre todos.

A diferença, claro, consiste em que na aldeia global o controle estaria concentrado nas mãos de alguns poucos, detentores dos recursos tecnológicos para intervir com rapidez e eficiência quando e onde fosse necessário para manter a homeostase, o equilíbrio sistêmico-ambiental, ou então este se estabeleceria automaticamente, dispensando e, no limite, tornando impossível qualquer intervenção. Como todo visionário que se preze, McLuhan vai ao limite.

Nem Baudrillard conseguiria imaginar mundo mais radicalmente “virtualizado” do que esse, no qual tudo é levado ao extremo, desde o caráter etéreo do ambiente elétrico, como se dizia na sua época (“McLuhan é o oráculo da era elétrica”, proclamava a extinta revista Life) ou digital, como se diria agora, até a mais crua materialidade dos meios. Se ainda fosse protestante McLuhan talvez fosse mais sensível à tensão entre os dilemas paradoxos que ia construindo (controle intencional e automático e assim por diante). Como católico convertido, porém, tenta conciliar tudo, e o resultado é o inferno.

O que na época não se poderia perceber com clareza é a infausta conjugação de fatores que esse admirável mundo novo propiciaria. Pois a conexão universal, sem fronteiras e sem limites é intimamente afim à indiferença universal, com a agravante de que a universalização da indiferença avança mais rápido do que aquela da conexão. Num mundo em que qualquer comunicação vale, nenhuma vale. Um mundo como esse é de fato um ambiente que tudo permeia, um éter no interior do qual não há mais propriamente relações diferenciadas e duráveis, substituídas que são por conexões instantâneas.

A única defesa contra a onipotência das “redes”, como se passaria a dizer mais adiante, acaba consistindo em multiplicar ao infinito a aldeia global, gerando múltiplas aldeias locais, não tanto pelo alcance quanto pelos conteúdos compartilhados (usuários do Facebook conhecem bem o termo). À globalização virtual responde o particularismo virtual e a imagem socialmente superada da aldeia permanece, com tudo o que tem de restrito, de envolvimento e de controle. No caminho, arrisca-se a perder uma grande conquista histórica do mundo pós-aldeão, um precioso legado das revoluções burguesas nos pontos do planeta em que deram certo. Trata-se do inestimável direito à privacidade, atropelado por todos os lados. McLuhan, feitas todas as contas, não é bem o nome do profeta da era digital, é mais a advertência distópica, nome de um poderoso vírus que nela se instala e ameaça corroer as resistências à construção real de um mundo novo.

*Gabriel Cohn é Professor Emérito da FFLCH- USP. Autor, entre outros livros, de Weber, Frankfurt (Azougue).

 

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