Alguma coisa dentro mexe!

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Por MARKUS SOKOL*

Considerações sobre o comício internacional contra a guerra em Paris

1.

Impossível conter a emoção e não captar a energia quando, no mesmo sábado e domingo em que grandes manifestações ganham as ruas em todo o mundo, uma Conferência de delegados (dias 4 e 5 de outubro) desemboca em um comício que reúne quatro mil pessoas no Dôme de Paris (dia 5 à tarde).

Na abertura, pegou o “Siamo tutti antifasciti!“, puxado pela delegação italiana, orgulhosa da manifestação na véspera de 1 milhão em Roma. Foi saudada por diferentes versões do “Free, free, free Palestine!“, unificadas pelos anglo-parlantes, somadas aos estrondosos brados de “Macron, Demission!“, cujo 5º primeiro-ministro estava caindo naquela tarde. A entrada concluiu quando as delegações subiram ao palco, pelo hino L’Internationale, cantado no original francês da maioria da sala. O resumo algo detalhado da atitude dos milhares, captou e anunciou o que aconteceria ali.

A primeira oradora, Mehassem Ned El Hadi, sindicalista palestina, da associação árabe-judaica Standing Together, levantou a sala. Ela rejeitou o Plano Trump que “quer substituir o extermínio pelas bombas por um extermínio pelo isolamento e a fragmentação”, saudou “a resistência judaica ao genocídio no mundo e mesmo dentro de Israel”, afirmou que “a saída é um único estado democrático”. Mehaseem Ned El Hadi terminou convocando as organizações presentes a ampliar a luta nos seus países, com a confiança de que “o povo palestino vencerá”.

Ela foi seguida pela intervenção de fraternização entre os povos e contra o genocídio, da judia Orly Noi, dirigente executiva de B’Tselem, importante organização de direitos humanos em Israel.

2.

A partir daí, o andar do comício mostrou que há muito o que refletir sobre o desastroso curso da vida em sociedade no mundo, puxado pela decadência do sistema capitalista que se aprofundou no ninho do imperialismo estadunidense dominante, depois da crise financeira de 2008. Sim, há o crescimento do fascismo às expensas da direita e dos partidos tradicionais de base operária na Europa. Mas também há o surgimento de novas formações políticas de ruptura, inclusive nos EUA, onde houve um ressurgimento do movimento sindical.

É incontornável avaliar o efeito que finalmente está tendo a crescente luta contra o genocídio sionista. A Itália é a ponta avançada deste processo.

O delegado italiano tocou profundamente os presentes. Maurizio Coppola, coordenador nacional do partido Potere Al Popolo, primeiro, questionou a acomodação da geração jovem: “Prefiro falar da geração Z pelo que estamos vendo”. Maurizio Coppola explicou como os bloqueios de embarques militares à Israel no porto de Gênova, pela USB (Unidade Sindical de Base) local onde o partido tem grande presença, influenciaram no movimento de bloqueio dos portos italianos da onde saiu o chamado que “trouxe a classe operária de volta à cena nacional. Duas greves gerais em 10 dias é algo que não víamos há décadas, e mesmo na Europa”.

Maurizio Coppola contou que após o chamado à greve para 10 de setembro pela USB, a maior central sindical italiana, a tradicional CGIL, tentou boicotar chamando uma greve para 19 de setembro, e que foi um fracasso. Daí a CGIL, já com muitos problemas internos, entrou na greve que foi ainda maior em 3 de outubro, convocada pela USB. “A USB é sindicatos de base, então fazemos por baixo, e pressionamos as grandes centrais.” Todo mundo entendeu e Maurizio Coppola foi ovacionado.

Também tiveram especial audiência nessa tarde, os dois oradores da rede “A Paz Por Baixo”, uma russa e um ucraniano em oposição a Volodymyr Zelenski. A russa Lisa Smirnova, exilada há um ano, reportou que no início da guerra há mais de três anos, os protestos eram vistos como coisa de “intelectuais pro-Ocidente de Moscou”, mas que depois, com dezenas ou centenas de milhares de mortos, o descontentamento se espraiou entre o povo pobre.

Lisa Smirnova homenageou um jovem desertor presente no palco, muito aplaudido. “Por que não há manifestações?”, perguntou Lisa Smirnova. “O Estado aperfeiçoou o neoliberalismo. Há um contrato em que, quando um soldado morre, a família recebe mais do que pode somar o salário de um pobre em toda a vida! E para o resto, tem a polícia.” Lisa Smirnova avalia que Putin não tem medo de ataques militares por causa da guerra na Ucrânia, tem as bombas atômicas, e que “as ameaças da Inglaterra, da França, da Itália e outros, na verdade, reforçam Vladimir Putin.

O que estamos fazendo”, avalia Lisa Smirnova, “é mais perigoso. Não é a vitória, é a paz, a autodeterminação!”. Finalizando, ela confia que “são as forças de esquerda e anti-imperialistas que podem derrotar o neoliberalismo”.

3.

Vindo do ventre da fera, do outro lado do Atlântico, tomou a palavra Andrew Basta, dos Socialistas Democráticos da América.

Num depoimento fundamental para compor o quadro mundial da luta contra a guerra e pela emancipação humana, Andrew Basta explicou: “estamos construindo um partido socialista enraizado na classe operária”. Lembrou que a classe avança nas ruas contra a guerra, e que hoje “a maioria nas pesquisas já não apoia Israel”.

Por fim, levantou a galera historiando o processo que fez Zhoran Mumdani ganhar as primárias democratas para a prefeitura de Nova York: “50 mil voluntários bateram em 10 milhões de portas”! Essa força única deve eleger o militante socialista do DSA, claramente contra a guerra, para prefeito da principal cidade dos EUA.

Jerôme Legrave, organizador do ato e um dos deputados da França Insubmissa (LFI) que falaram, é militante do Partido Operário Independente (POI). Em sua intervenção disse que tanto “os governos precisam da guerra” quanto “na Itália o povo mostra que não aceita. Nós, aqui, contribuimos para agrupar as forças que vençam”. Vimos como “Donald Trump reuniu 800 generais para combater o ‘inimigo interno'”. Mas “aqui nesta mesma sala há pouco tempo, um ministro gritou ‘abaixo o véu’, incitando ao ódio”.

Jerôme Legrave questionou o “comportamento vergonhoso do PS, cujos parlamentares, digam o que digam, no fim das contas votaram o Orçamento de guerra para Israel, votaram as armas para a Ucrânia”. E arrematou “Nenhuma concessão! Nem Putin, nem Zelenski, nem Macron, nem Le Pen”. Por fim, Legrave Legrave anunciou a moção de censura da LFI ao primeiro-ministro, que cairia em poucas horas, e lembrou que “Mathilde Pannot (líder da bancada), esta semana, lançou o Fora Macron”.

Co-organizador da Conferência e do Comício, Jonh Rees, do Stop The War britânico, foi o orador de encerramento. Destacou que 71% dos ingleses hoje estão com a Palestina e 12% com Israel, na esteira de um trabalho persistente desde a guerra do Iraque. “Milhões já participaram de marchas, mas não basta, muitos milhões mais precisam marchar”. De fato, a Grã-Bretanha é o país ocidental onde aconteceram as maiores manifestações contra o genocídio, da ordem de 500 mil e mais.

Jonh Rees considera que “o fascismo internacional traz uma oportunidade, mas também é um grande perigo. O companheiro da Itália tem razão em dizer que a classe operária é que resolve a situação. Eu só tenho um país, é a classe operária onde quer que esteja”.

Ao final, John retomou a proposta feita momentos antes pela deputada Zarah Sultana, que rompeu com o Labour Party em 2024 e lançou este ano um novo partido de esquerda, o Yourparty, junto com o veterano ex-secretário excluído do Labour, Jeremy Corbyn (que convocou o comício numa coletiva no começo da semana, em Londres). John Rees fez então um “convite a todos vocês, e muitos mais, para virem a um segundo encontro, em junho de 2026, em Londres. Já vimos uma sala, será em frente ao Big Ben e a Westminster!” (sede do Parlamento).

4.

Serão necessários alguns dias para assentar e avaliar em toda sua extensão e profundidade, a conferência e o comício europeu “Nenhum centavo para a guerra, nenhuma arma e nenhuma vida para a guerra”. Mas como disse o poeta, “alguma coisa dentro mexe”. Se pode ver a clarificação da crise sem saída do capitalismo que o fascismo não conseguiu frear, nem derrotar realmente as classes trabalhadoras. E começou a se operar um reagrupamento de forças políticas e sindicais de esquerda dispostas a, “sem concessões”, ir à ruptura com o imperialismo, de modo a ajudar a classe operária a “resolver a situação”.

Entre outras palavras de ordem, surgiu no comício que “somos todos crianças de Gaza”. É uma tragédia humana o que o sionismo perpetrou em Gaza por dois longos anos, com apoio ativo das potências imperialistas ou a cumplicidade de outras potências, como a Rússia interessada na sua própria guerra. 70 mil mortos na Palestina, centenas de milhares na fronteira russo-ucraniana, no sentido histórico, não devem ser em vão.

Nós, no Brasil, também “somos crianças de Gaza”. Há a inequívoca solidariedade à causa palestina (e à resistência judaica ao genocídio). Mas há também a guerra de Trump “ao inimigo interno” que tem um foco nos migrantes, onde temos ameaçados centenas de milhares de compatriotas, 40 mil deles estudantes. Há “guerra comercial” das tarifas de Donald Trump, que ganhou no país a forma de uma ingerência imperialista direta em favor da extrema-direita, contra o povo e o governo Lula.

Assim, quando a deputada Zarah Sultana clamou por “sanções efetivas à Israel até o fim do genocídio, à expulsar os seus embaixadores e à ocupar as suas embaixadas na Europa”, nós, no Brasil, em outra situação, todavia, devemos nos perguntar sobre o porquê da complacência do Itamaraty, na verdade, a moleza de Lula em romper as relações comerciais e diplomáticas com o Israel. Elas simbolizam uma convivência malsã com o “império”, que está bem representado na trava que representa o Congresso reacionário, antioperário e antipopular. Nós temos que ajustar nosso relógio com a hora mundial.

*Markus Sokol foi membro da Comissão Executiva do PT. É membro do Comitê Nacional do Diálogo e Ação Petista.


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