Por AFRÂNIO CATANI*
A literatura surge como um ato de vingança social, uma ferramenta para traduzir a memória indelével de uma classe e escrever, na língua do dominante, a história dos dominados
1.
Em A vergonha Annie Ernaux (1940), ganhadora do Prêmio Nobel de Literatura (2022), utiliza como epígrafe trecho extraído de A invenção da solidão, de Paul Auster (1947-2024): “A linguagem não é a verdade. Ela é a nossa forma de existir no universo”. Entendo que tal afirmação se constitui em um dos pilares básicos no qual se arrima a produção literária de Annie Ernaux.
Em “Vingar a minha raça”, conferência realizada por ocasião do recebimento do Nobel, a autora escreve que ela é originária de Yvetot, cidadezinha normanda situada no planalto do Pays de Caux e atravessada pela rodovia nacional que vai de Rouen ao Havre (p. 230).
Desde a adolescência ela decidiu que iria escrever, registrando em seu diário, há cerca de sete décadas, o seguinte: “vou escrever para vingar a minha raça” (p. 13), ecoando o grito de Rimbaud: “sou de raça inferior por toda a eternidade” (p. 13).
Annie Ernaux estudou letras em uma faculdade do interior, “…entre moças e rapazes, em sua maioria oriundos da burguesia local. Eu pensava, orgulhosa e ingenuamente, que escrever livros, tornar-se escritora, ao fim de uma linhagem de camponeses sem terra, operários e pequenos comerciantes, de gente desprezada por suas maneiras, seu sotaque, sua falta de cultura, seria suficiente para reparar a injustiça social de nascença. Que uma vitória individual apagaria séculos de dominação e pobreza, numa ilusão que a escola já tinha alimentado em mim com meu êxito acadêmico. De que todo o meu êxito pessoal poderia redimir quaisquer humilhações ou ofensas sofridas. Eu não me fazia essa pergunta. Tinha algumas desculpas” (p. 13-14).
Aos poucos, vai percebendo que nenhuma escolha de escrita é óbvia, mas aqueles que, como imigrantes, “não falam mais a língua dos pais, aqueles que, como trânsfugas de classe, não compartilham mais a mesma língua, pensam sobre si e se expressam com outras palavras, todos deparam com obstáculos a mais. Um dilema” (p. 15-16).
Torna-se quase possível utilizar a “língua adquirida, dominante, que aprenderam e adquiriram em obras literárias, para escrever o que tem relação com seu mundo de origem, seu primeiro mundo, feito de sensações, palavras que descrevem o cotidiano, o trabalho, o lugar ocupado na sociedade” (p. 16).
Fala que seu êxito escolar acaba sendo visto não como uma vitória, mas como uma espécie de anomalia, pois de todo modo, “você está em um mundo ao qual não pertence”. Cedo ela teve uma experiência precoce e permanente da realidade das lutas de classe. “em algum lugar Pierre Bourdieu (1930-2002) cita ‘o excesso de memória daqueles que são estigmatizados’, uma memória indelével. Vou ter isso para sempre” (p. 72).
2.
Annie Ernaux tornou-se professora de francês do 6o. ano do colegial técnico, depois trabalhou no colégio Bonneville e, de 1977 a 2000, lecionou no Centro Nacional de Ensino à Distância, encarregada da redação das aulas e da correção de provas de literatura dos estudantes que obteriam certificações para serem docentes no ensino médio, semelhante a uma licenciatura.
Em 1964 defendeu sua dissertação de mestrado, tratando da mulher no surrealismo e escolhendo, para serem analisados, textos de Maupassant (Uma vida) e de Virginia Woolf (As ondas). (p. 97).
Borrando as fronteiras entre literatura e sociologia, declara a Frédéric-Yves Jeannet que muitos livros têm para ela “valor de literatura”, ainda que não se encontrem classificados nesta rubrica – cita como exemplo textos de Michel Foucault (1926-1984) e Pierre Bourdieu, acrescentando: “é a perturbação, a sensação de abertura, de ampliação, que faz algo ser literatura para mim” (p. 111-112).
Em outro momento, ao resumir o que entende ser a passagem do mundo dominado ao mundo dominante, refere-se a um livro que a estimulava, “como nenhum texto dito literário havia feito, a ter a ousadia de encarar essa ‘história’: esse livro era Os herdeiros, de Bourdieu e Passeron” (p. 84).
Entretanto, Annie Ernaux expõe de forma bem mais elaborada a influência de Bourdieu em sua trajetória literária em um anexo contido em A escrita como faca e outros textos, com o despretensioso título “Conversa com o público” (p. 224-228) : “Descobri Pierre Bourdieu em 1971-1972 ao ler Os herdeiros e A reprodução, e essa leitura foi uma revelação, tudo se esclareceu: eu tinha sido estudante de letras bolsista, não saída da burguesia como a maioria das moças e dos rapazes da faculdade em rouen, isto é, os ‘herdeiros’ culturais e econômicos. Eu nem sequer tinha a mesma relação com os estudos que eles, não tinha essa relação de familiaridade com a cultura, e vem daí uma forma de instabilidade interior. Meu êxito supunha uma ruptura com a cultura de origem e uma adesão à cultura dominante. Na verdade, graças a Bourdieu eu sabia quem eu era: alguém que foi rebaixada para cima, uma ‘trânsfuga de classe’ (…) E foi ler Bourdieu que me fez passar ao ato de escrever, que de certa forma me intimou a escrever, Desde a morte de seu pai e minha entrada no magistério eu tinha o desejo de escrever sobre o que havia me distanciado dos meus pais, mas, para resumir, Bourdieu me obrigou a ousar fazê-lo” (p. 227; grifado no original).
Annie Ernaux tem dúvidas se conseguiu vingar a sua raça. Revela que em 1982, durante cerca de seis meses refletiu acerca da sua situação de narradora oriunda do mundo popular e que escreve, como dizia Jean Genet (1910-1986), na “língua do inimigo”, que se vale do conhecimento da escrita “roubado” dos dominados (p. 45).
Bem, de qualquer maneira, Annie Ernaux acha que, vingativa ou não, talvez possa dizer, como Albert Camus, “que não aumentei a injustiça do mundo” (p. 227).
*Afrânio Catani é professor titular sênior aposentado da Faculdade de Educação da USP e um dos organizadores e editor do Vocabulário Bourdieu(Editora Autêntica). [https://amzn.to/3ITCrbN]
Referências

ERNAUX, Annie. A vergonha (trad. Marília Garcia). São Paulo: Fósforo, 2022. [ed. original:1997] [https://amzn.to/48WVAUI]

ERNAUX, Annie. A escrita como faca e outros textos. São Paulo: Fósforo, 2023. [https://amzn.to/4oj5ZP8]
A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
C O N T R I B U A





















