Reflexões sobre o socialismo

Banksy, Walled Off Hotel - Wall Sculpture (Dove), 2018
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Por MARCELO PHINTENER*

Comentário sobre o livro de Maurício Tragtenberg

O socialismo esteve entre as questões a ocupar o pensamento e as práticas anticapitalistas de Maurício Tragtenberg. Nos passos de seus ensinamentos, que inseriu a luta de classes no contexto do local de trabalho, e, com isso, propôs uma perspectiva diferente para analisar a administração enquanto expressão prática do poder empresarial, espaço onde “a política real se exerce plenamente, ele entendeu que este terreno, campo de tensão entre trabalhadores e capitalistas, abre possibilidades reais de luta contra o capitalismo.

Na obra de Maurício Tragtenberg as lutas sociais e os conflitos são objeto de análise e são discutidos em termos da luta entre exploradores e explorados. A propósito, nos remetemos a Reflexões sobre o socialismo, publicado pela primeira vez em 1986. Neste livro, o autor apresenta, numa perspectiva histórica, o movimento dos trabalhadores contra a exploração econômica e a opressão política, praticada pelos patrões privados ou estatais – seus avanços reais de par com suas derrotas –, acompanhado pela tentativa de criar novas relações de produção, novas relações sociais. Reflexões sobre o socialismo está entre os livros mais importantes no conjunto da obra de Maurício Tragtenberg, composta em dez volumes, ao lado de Burocracia e ideologia, Administração, poder e ideologia, e Revolução Russa.

Desde as primeiras páginas de Reflexões sobre o socialismo quando Maurício Tragtenberg (p. 13 e 14) expõe, de forma clara, a sua perspectiva de socialismo, o conflito é explicitado: “O problema do socialismo coloca-se ante a existência real da luta de classes entre exploradores e explorados, entre opressores e oprimidos. Socialismo implica auto-organização, associação, autogestão operária. A autogestão não é um objetivo da sociedade capitalista, seja na forma do capitalismo privado, seja na forma livre-concorrencial, monopolista ou estatal. Ela significa que o proletariado e os assalariados em geral gerem por si mesmos suas lutas, através das quais se conscientizam de que podem administrar a própria produção e criar novas formas de organização do trabalho. Em suma, que podem colocar em prática a ‘democracia operária’. O predomínio da autogestão nos campos econômicos, social e político manifesta-se sempre que os trabalhadores aparecem como sujeitos revolucionários. São os períodos de ascensão dos movimentos de massas que tomaram forma na Comuna de Paris de 1871, na Revolução Russa de 1917, na Guerra Civil Espanhola de 1936, nas rebeliões de 1918 na Hungria, e na criação do sindicato Solidariedade (1978) na Polônia. A causa motriz desses movimentos sociais foi a luta contra a exploração, fosse praticada pelo capital privado, fosse pelo capitalismo de Estado”.

Quando escreve Reflexões sobre o socialismo, nos anos de 1980, a força de trabalho global era de quase 2 bilhões de pessoas e, 30 anos depois, em 2010, passou a quase 3 bilhões de trabalhadores, segundo a The Economist de 16 de junho de 2012. Com base em informações da Organização Internacional do Trabalho – OIT de 2020, a última acessada, atualmente, está em 3,3 bilhões de trabalhadores.  As quinhentas maiores empresas do planeta, em termos de faturamento, inovação, produção em escala e número de empregados, juntas empregam quase 70 milhões de trabalhadores distribuídos em trinta e dois países. Entre as duas maiores empregadoras do ranking global, Walmart e Amazon, cada uma emprega, respectivamente, 2,300 milhões e 1,600 milhão de trabalhadores (Global Fortune, 2022).

O aumento mundial da força de trabalho, de um lado, ratifica a capacidade do capitalismo em administrar a vida dos trabalhadores e, de outro, que os conflitos sociais se concentram nas relações sociais de produção. E foi neste quadro global, agora atualizado, que Maurício Tragtenberg (2008, pp.25 e 27) indicou a necessidade urgente de resgate e/ou reafirmação do internacionalismo da massa trabalhadora e da solidariedade entre as suas lutas: “O mercado mundial, criado pelo capitalismo já em sua época monopolista, integra o trabalhador e sua família, subordinando-os a esse mercado. O homem existe para o mercado, seja como produtor direto seja como consumidor. Essa internacionalização das relações de produção capitalista produz, consequentemente, a necessidade da organização operária em âmbito internacional. Uma resposta operária à universalização do sistema capitalista foi a criação da Associação Internacional dos Trabalhadores (AIT) ou a Primeira Internacional, em 28 de setembro de 1864”.

Na sequência, faz a síntese dos princípios da Primeira Internacional: “A AIT serviu para conscientizar os trabalhadores de que eles pertenciam a uma comunidade internacional e deviam associar-se para levar adiante suas lutas econômicas e, no plano das relações internacionais entre Estados, lutar por uma política de paz e liberdade. Acima de tudo, foram méritos da AIT a afirmação do internacionalismo proletário como um valor positivo e a vinculação da luta pela libertação da classe trabalhadora da exploração econômica, e da opressão política como sintoma da libertação da humanidade” (Tragtenberg, 2008, p. 33).

Se por um lado o capitalismo adota o despotismo administrativo, porque é na empresa capitalista que se encontra o poder real, decisivo, como domínio social, econômico sobre o trabalhador e dali se estende a todo tecido social para se constituir nos fundamentos da ordem capitalista; por outro, abre espaço para se desenvolver relações sociais antagônicas à sociedade capitalista, as quais podem ir além dos limites do local de trabalho dando impulso a um movimento internacionalista dos trabalhadores (Bernardo, 2018; Tragtenberg, 2008).

“Assim, internacionalização do capitalismo”, escreveu Maurício Tragtenberg (2008, p.101), “permite que surjam formas de luta proletários que, ao se desenvolver, criam as condições mínimas para o comunismo.  E o proletariado, definindo-se como classe internacional na Polônia, no Brasil, em Portugal ou na Bolívia, tende a desenvolver formas idênticas de luta”. Deste modo, afirmava ele que, se os capitalistas estavam se transnacionalizando, os trabalhadores não poderiam ficar para trás.  Por isso, sempre defendeu a auto-organização como oposição global às formas de enquadramento capitalista, estejam os meios de produção nas mãos de um Estado ou nas mãos de capitalistas privados.

Reflexões sobre o socialismo fornece-nos uma chave para pensar o porquê de os conflitos sociais ainda não terem derrubado o capitalismo. Para o autor, ou porque as lutas são domesticadas ou porque são destruídas se materializando em uma profunda derrota; isto confirma a existência dos vários mecanismos que o capitalismo se utiliza para reclamar a defesa das suas relações sociais, pois, na medida em que os trabalhadores expressam na prática que são capazes de se auto-organizarem, eles enfrentam o patronato, a burocracia sindical e partidária.

Um deles diz respeito à repressão direta, como, por exemplo, o esmagamento da Comuna de Paris pelas forças do capital; ou quando, em sociedades de capitalismo em desenvolvimento – caso do Brasil -, as greves viram caso de polícia. Um segundo é quando a luta do ponto de vista autonomista, por meio da qual são criadas relações sociais que possibilitam a união dos trabalhadores, se burocratizam e perdem suas finalidades inicias.

A respeito deste acontecimento, Tragtenberg (2008, p.46) se refere ao momento em que “Lênin introduz o taylorismo na URSS, significando, portanto, a volta à hierarquia nas fábricas, ao planejamento restrito a um corpo de especialistas e à mão-de-obra realizando o que a cúpula técnica define como sendo os objetivos das empresas. Embora considerasse o taylorismo uma forma de organização do trabalho tipicamente capitalista, Lenin argumentava que o poder estava com o Partido e isso garantiria a supremacia da classe operária no país. Assim, a técnica taylorista poderia ser colocada a serviço do proletariado. Isso significou o fim dos comitês de fábrica e da autogestão nas empresas. A nova palavra de ordem de Trotsky era: trabalho, ordem e disciplina. Assim, já em 1920, das 2.051 empresas importantes, 1.783 estavam sob a direção de um administrador nomeado pelo Estado. Logicamente, a primeira conquista da Revolução Russa, isto é, o controle dos meios e do ritmo de produção pelos próprios trabalhadores, tinha sido usurpada pelo Estado e pelo Partido que o dirigia”. A isto, Tragtenberg (2008, 101) acrescenta a degenerescência repressiva da revolução aquando da “destruição da Oposição na URSS, a repressão à rebelião de Kronstad e a revolução camponesa de Makno e a substituição da direção coletiva da fábrica pela direção universal mostram como a Revolução Russa foi destruída por forças internas e não pela invasão estrangeira”.

Outro mecanismo a que os capitalistas recorrem refere-se à assimilação e/ou recuperação dos conflitos sociais e depois devolvidos em forma de aumento de produtividade, como originalmente analisou o historiador João Bernardo em Economia dos Conflitos Sociais. Neste passo de argumentação, Maurício Tragtenberg (2008, p.40) sintetiza com nitidez e precisão a questão: “Em países de capitalismo desenvolvido – Alemanha Ocidental, França, Suécia – a alta burguesia não pode recorrer a formas abertas de repressão; a solução “social-democrática” aparece, então, como a de menor custo social e político, permitindo manter um discurso de esquerda e uma prática conservadora, encoberta por uma linguagem anticapitalista, antiautoritária”.

Remover a confusão entre socialismo e capitalismo de Estado foi preocupação a orientar o pensamento de Maurício Tragtenberg (2008, p.19) no entendimento de que “a auto-organização operária no local de trabalho e a democratização das relações de trabalho constituem a base de qualquer democracia no plano da sociedade global, pois a existência do despotismo fabril com democracia formal, além dos muros da fábrica, é uma profunda contradição”. Este quadro levara Maurício Tragtenberg a situar o socialismo como a prática da ação direta e espontânea dos trabalhadores, ou seja, sem a tutela de partidos autodenominados esquerdista ou de organização sindical, muito menos de intelectuais – pois ninguém pode libertá-los a não ser eles próprios –, no impulso às mudanças sociais estruturais, fundadas na autogestão da economia e da vida social.

Neste contexto, a sociedade autogerida pelos trabalhadores deve ser precedida pela autogestão das lutas. Ao passo que aquilo se designou chamar de socialismo, tanto por parte de certa esquerda quanto pelo campo conservador-liberal, consiste, em termos práticos, numa “economia de Estado nas mãos de uma burocracia dominante que exerce o poder em nome do trabalhador.  Que há um Estado vertical e um exército burocrático e hierárquico, acima da população é dirigido contra ela nas épocas de crise. Por isso, nenhuma ditadura é revolucionária, pois ela tende a ser exercida por um quadro burocrático e defender o status quo. A isso chamam “socialismo realmente” seus defensores profissionais. Na realidade, trata-se de um capitalismo de Estado monopolista, no qual a burocracia coletivamente detém nas mãos os meios de produção e o trabalhador permanece escravo assalariado, domesticado por meio do partido e do Estado” (Tragtenberg, 2009, p336).

Nesse plano e à margem da ótica oficial dominante, à esquerda e à direita, o autor revelou que “a repressão à Oposição Operária, a revolta de Kronstadt e à revolução na Ucrânia mostra a profunda incompatibilidade entre proposta socialista fundada na autonomia da ação da classe, na sua auto-organização, e a proposta bolchevista que, por meio da hegemonia do Partido, constrói o capitalismo de Estado. A burocracia estatal soviética cumpriu o mesmo papel industrializante que a burguesia clássica cumpria no Ocidente. A URSS tornou-se uma grande potência e sua política corresponde a isso.

Comparativamente, o nível de vida médio soviético [era] superior ao período czarista. Porém a burocracia soviética administra o Estado como uma propriedade privada. A adoção do taylorismo nas fábricas, o papel disciplinador conferido aos sindicatos – o que levou à formação de uma oposição sindical, dirigida pelo metalúrgico Klebanov – e a manutenção do salariado conferiam ao Estado russo o caráter de um capitalismo de Estado integral. Nesse sentido, Stalin foi um perfeito continuador da obra de Lenin, e Trotsky, este de início profeta armado, criador do Exército Vermelho e, depois, expulso da URSS (1929), converteu-se em profeta desarmado. Somente após perder o poder é que Trotsky retoma o tema da democracia operária” (Tragtenberg, 2008, pp. 61 e 62).

A obra de Maurício Tragtenberg, em particular Reflexões sobre o socialismo, permite uma reconsideração crítica a respeito das ambiguidades das forças de trabalho em movimento, sobretudo da sua tentativa em ultrapassar o capitalismo. Nela está evidenciado que os partidos, as organizações e/ou movimentos nascidos na luta de classe e que se propõem a promover transformações sociais, em razão da pressão capitalista, reproduzem em suas organizações as mesmas estruturas (relações hierárquicas, relações de exploração e dominação) da sociedade que pretendem transformar e acabam convertidas em instituições de valorização do capital.

Em outras palavras, em vez se opor globalmente a qualquer forma de capitalismo (empresas e governos), e tecer novas relações sociais, reproduzem-no com outras roupagens (Bernardo, 2018; Tragtenberg, 2008, 2009).

*Marcelo Phintener é doutorando em filosofia política na PUC-SP.

Referência


Maurício Tragtenberg. Reflexões sobre o socialismo. São Paulo, Unesp, 2008, 136 págs.

Bibliografia


BERNARDO, J. Labirintos do fascismo: na encruzilhada da ordem e da revolta. terceira versão, revista e aumentada ed. [S.l: s.n.], 2018

TRAGTENBERG, M. Reflexões sobre o socialismo. São Paulo: Editora UNESP, 2008.

TRAGTENBERG, M. A falência da política. São Paulo: Editora UNESP, 2009

TRAGTENBERG, M. Teoria e ação libertárias. São Paulo: Editora UNESP, 2011.

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