Por LUCAS PAOLILLO*
Comentário sobre o filme de Eduardo Escorel
“Clareza o vento passando. Clareza um sopro de dúvida. Clareza a luz na janela. Clareza um pouco de música. Clareza a sombra da morte. Clareza dia tão lúcido. Clareza um resto de sorte. Clareza incômoda” (Rodrigo Campos).
1.
Quem foi ao Espaço Itaú de Cinema na Rua Augusta na data da estreia de Antonio Candido – Anotações Finais (2024) assistir ao tão aguardado filme do diretor Eduardo Escorel sobre o testemunho derradeiro de um dos grandes – senão o maior – crítico de literatura entranhado aos descaminhos da experiência brasileira, encontrou um público a um só tempo homogêneo e heterogêneo no hall da entrada.
No fundo, nada que fugisse ao esperado, uma vez que ele foi composto basicamente por gente de universidade e de cinema, embora marcado pela exuberância de várias gerações. Além disso, na paisagem, pairou no ar um arco de classes praticamente incontrastável – não por acaso relacionado aos rumos daquilo que outrora, noutro tempo histórico, poderia ser chamado pelo homenageado de “radicais de classe média”.
No entanto, caso a atenção se detivesse por um instante mais nas tendências de opinião do que propriamente naquela condição niveladora, no mesmo recinto seriam vistos polos antagônicos de uma entidade já gasta, porém teimosamente reconhecida até os nossos dias como esquerda (também identificada assim pelos seus inimigos que não ponderam nuances de estratégia ou de princípio e nem brincam em serviço). Se o leitor estiver de acordo com tais condições descritivas, podemos dizer que havia ali, ressaltando as diferenças, uma composição de convivência tão peculiar quanto rotinizada à vista de todos naquela modesta zona de espera.
Para se ter uma ideia, apelando a uma hipótese absurda, se as luzes do cinema se acendessem e, por algum motivo, os espectadores interessados em recolher as impressões finais do mestre fossem intimados a uma posição de assembleia, a confusão, sem sombra de dúvidas, seria geral. Ela poderia até se dar no registro manso próprio às ruínas da intelligentsia, mas, em que pese os equívocos de parte a parte, os ruídos todos confessariam, na baixa, a situação de um legado em disputa.
Digo isso pois seriam vistos lado a lado personagens que vão desde um ex-ministro de governo até jovens militantes da mais recente encarnação dos autonomistas na cena paulistana. Algo dessa geleia não tão geral assim deveria guardar assunto vivo a se entrever. Coisa que, aliás, ninguém pareceu dar muita bola por ali e acabou se dissipando como um chiste na medida em que a espera acabou e as pessoas se acomodaram aos seus assentos.
2.
Depois de um breve comentário de agradecimento inicial feito por Eduardo Escorel, com a apresentação de parte da equipe, as luzes do cinema se apagaram e o tão aguardado filme veio à lume. De início, a voz de um surpreendente narrador-personagem Antonio Candido convocada pelo gogó preciso de Matheus Nachtergaele, associada de pronto às imagens do apartamento em que morou o nosso observador literário de carne e osso.
Em off, a voz do, digamos, narrador nos encaminhou rumo ao conhecimento da data de sua morte e às considerações sobre as razões de ser daquela prática de anotação íntima – recurso de narrar que imprimiu ao documentário uma dose, aliás já observada,[i] de Brás Cubas. Com uma lembrança literária dessas, que jamais será invocada de maneira inocente diante dessa tradição, ficou posta uma ironia de fundo: na melhor das hipóteses, quase à maneira brechtiana, os espectadores mais atentos puderam se lembrar de que o narrador do documentário poderia não ser exatamente confiável. De todo modo, seria esse o mestre de cerimônias responsável por conduzir o público ao longo da leitura dos excertos provenientes dos cadernos que registraram os sentimentos finais de Antonio Candido nos anos de 2015, 2016 e 2017.
Os primeiros minutos em tela também entregaram boa parte dos recursos de estilo imantados às estruturas da montagem: as imagens repertoriadas para acompanharem a voz obedeceram, na maior parte do tempo, a um ritmo vagaroso. Em sua maioria estáticas, elas surgiram às retinas do público como blocos sucessivos à espera de meditação, quase como slides. O que, de certa maneira, fez remeter a uma predominância da fotografia sobre o vídeo.[ii]
Daí o sentido da fixação momentânea: a duração de cada um desses blocos de imagem ilustrou motivos centrais na direção de aflorarem a percepção do rumo livre das anotações diárias, colaborando para a articulação das suas consequências. Assim, forneceram a impressão de imagens-síntese, sugerindo relações na tradução de conjunto entre os vários registros apresentados e suas marcas de temporalidade: em alguns dos melhores momentos do filme, as memórias apresentadas, coladas sobretudo a fotos antigas ou a filmes do século passado, se misturaram a chacoalhões provenientes do ABC de catástrofes daqueles anos inquietos, um verdadeiro buraco sem fundo assimilado pelo homenageado como uma franca derrocada das condições de vida no país e no mundo.
Curiosamente, e aqui pisamos um pouco para fora do documentário, um recurso semelhante, embora nada atento aos terremotos diários, pode ser conferido em chave mais precária, porém espontânea, nas produções caseiras de vídeos hospedados em plataformas abertas de streaming. Refiro-me às imagens de fundo mobilizadas de maneira vagamente sonâmbula para entreterem os olhos que buscam por áudios de discos antigos (mídias de som distantes em certa medida da mistura necessária ao ocular e que exigem improviso) digitalizados manualmente e nelas hospedados discreta e voluntariosamente[iii]. No entanto, caso o leitor se interesse por avaliar essa sugestão de convergência na tradução dos tempos, que não me entenda mal.
O filme de Eduardo Escorel, cineasta prata da casa, é composto por opções estratégicas que não são nada fortuitas. Ao contrário, a seleção de imagens obedece a um propósito inquietante. Para se ter uma ideia, se o conjunto do intervalo temporal vai dos registros de memória aos fatos de jornal, ele abrange um período robusto que, no limite, faz ecos do século XIX se encostarem às catástrofes do século XXI. Contudo, as cenas que fogem a tais deslocamentos sugerem, na sua maioria, as limitações espaciais nas quais ele vivenciou a escalada de restrições referentes ao estágio final da sua velhice.
Nessa esteira, os espectadores são acompanhados pelos lentos zigue-zagues proustianos que convidam à observação de espaços comezinhos próprios ao raio de vivências reais do crítico. Locais que vão desde, quando fora de casa, as calçadas nas quais ele exercitava suas caminhadas cada vez mais curtas nas proximidades de seu prédio (ou então banco, barbearia, farmácia etc.) até a apresentação discreta de espaços privados próprios à reprodução do dia a dia (quartos, cozinha, sala de estar etc.). Para além dos meandros dessa dinâmica entre lá e cá, é claro, há o verdadeiro filé prometido pelo filme: os momentos em que são mostrados ao público a caligrafia e os recortes de jornal das páginas pinçadas no interior dos cadernos. Trata-se, portanto, de todo um campo de visão a ser compreendido como proposta de forma.
Diante dele, caso seja convidativa a sugestão de alguma pista ao leitor na direção de uma caracterização geral do filme, talvez a observação dos limites tangidos pelo conjunto das perspectivas apresentadas possa despertar algo de valor: do início ao fim, os excertos mostrados sugerem a experiência de uma extrema velhice vivida de maneira reclusa na nervura de um contexto histórico em vertigem. Conjunção agônica que não é sinônimo, para usar as palavras do próprio crítico, de uma espécie de testemunho de clarividência. Pelo contrário, o acompanhamento das cenas sugere que o exame consciente da dúvida, exercitado no incerto, seria a verdadeira chave para a compreensão dos balanços finais do homenageado.
Eles podem ser situados quase que pendularmente, em seus resultados, entre a melancolia das revisões do passado e o espanto (sereno ou furioso) frente ao incalculado no momento. Tudo isso pode ser conferido (sem dualismos) de maneira entrelaçada às condições de possibilidade tanto do corpo do nosso observador literário quanto dos seus recursos para assimilação dos acontecimentos. Impasses da velhice que nos remetem ao memento mori de um campeão da tradição crítica brasileira. Daí, no lugar da clarividência, alguma sensação comovente de miopia consciente, confundida à pertinácia dos balanços tateantes nas alturas, do alto da escala do século: eis as condições nada confortáveis em que o colapso da modernização acoplado ao século de Antonio Candido tomou forma mediante aos anos de seus testemunhos finais – o que não quer dizer que a lucidez dele estivesse despojada, nessas condições, de intuições sagazes. É como se ele, digamos, buscasse a nitidez a partir da sua experiência fora de foco.
3.
Para termos apenas uma noção disso, no ano de 2008, e aqui nos remetemos a um exemplo exterior ao filme, Antonio Candido negou um convite de publicação proposto por uma revista acadêmica de alunos de graduação. Na carta em que ele fez comunicar a negativa, chegou a pontuar em tom confessional o sentido da postura mediante àquela quadra longeva da vida: “o tempo de falar não é indefinido. Tem limite, e o bom senso manda observá-lo. Eu já me sinto limitado e por isso prefiro o silêncio, a não ser quando ‘um poder mais alto se levanta’”.[iv] De tirar o fôlego, o testamento vale por toda uma geração e guarda algum ar de família com a trágica fase final do Mário de Andrade de Elegia de abril (1941), aliás publicado pela primeira vez na revista Clima, e O movimento modernista (1942).
Semelhança nítida em trechos como: “Diante do mundo e do Brasil como estão, fico perplexo e meio desnorteado, o que leva insensivelmente ao pessimismo. E eu, que sempre fui optimista como socialista militante, para o qual a crença no aperfeiçoamento possível da sociedade e do homem é pressuposto, não gostaria de manifestar aos mais jovens o meu estado meio negativo de espírito, bem como a confissão das minhas decepções. Os moços devem acreditar muito, para poderem pensar com retidão e lutar com desassombro”[v].
Pois é. O tempo histórico não poupa ninguém e, cedo ou tarde, nos deixa saudosos de alguma esperança perdida quando moços. Ainda mais em circunstâncias tão dramáticas quanto as nossas, chafurdadas em expectativas decrescentes. Até lá, é melhor agir. Não à toa, nas conferências mais recentes em que tomou o homenageado como assunto, Paulo Arantes fez remissão ao retrato do crítico cravado em tela por Arnaldo Pedroso d’Horta[vi] nos anos cinquenta, comentado em texto por Ana Luisa Escorel, esposa do diretor, décadas depois. Nele, as feições do homenageado são retratadas em tonalidades próximas ao amarelo pálido e ao cinza, com traços no rosto que remetem a olheiras e barbas por fazer, em ambiente no qual se alinham à figura as cores frias do suéter verde piscina, junto a uma gravata vermelha, e do melancólico azul de fundo.
Tomada mais ou menos nessa chave pelos três, a pintura sugere o retrato de um desânimo significativo. Dotada, digamos, de um recado próprio, o curioso é que ela ficou de fora do filme. Marcada por entrelinhas políticas e pessoais, ela indica o definhamento de algo nos caminhos da travessia dos tempos a se percorrer. Em entrevista ao Museu da Imagem e Som sobre Oswald de Andrade, ao ser perguntado sobre o temperamento dos chatoboys, nosso observador literário confessa: “nós [do grupo Clima] éramos relativamente estudiosos, mas apresentaram de nós em São Paulo uma imagem inteiramente falsa. Nós éramos, pelo contrário, um grupo extremamente amalucado e divertidíssimo. A senhora não pode imaginar como eu era engraçado quando era moço. Quando penso hoje, não acredito. Eu era capaz de fazer dez pessoas rirem a noite inteira. Até a Revolução de 1964, que me tirou a alegria… Até a Revolução de 1964, que me tirou a alegria, todas as noites eu fazia um espetáculo cômico para as minhas filhas. Minhas filhas diziam: papai, pare que não aguentamos mais. Fazia números cômicos. Exatamente o contrário do que se dizia do chatoboy. Nós éramos de uma gozação, de uma irreverência, extraordinárias[vii]”. Perspectiva central de se manter em mente quando, no torvelinho da agonia da carne e do país exposto pelo filme, o crítico sugere contrapontos a essa dimensão. Seja quando, com alguma satisfação, ele se mostra inclinado à serenidade e ao bom humor, seja quando sinaliza as transformações de valor nas condições de vida das camadas populares dadas no país através de movimentos políticos ambivalentes.[viii]
Pois então. Adentrando propriamente nos poucos excertos que vieram à luz a partir dos três volumes finais de um conjunto de setenta e quadro cadernos inéditos, a atenção é capaz de se deter brevemente nalgumas especificidades dignas de nota. Conforme mostrado no filme, os volumes obedecem à sucessão das páginas numeradas a punho pelo próprio Antonio Candido, além de identificados por datas. Neles, dois recursos expressivos parecem ser centrais: os comentários motivados por publicações de jornal e os fragmentos de pensamento.
Diferentemente dos primeiros, parte significativa dos segundos são acompanhados por títulos precisos que remetem, no limite, a sugestões de enquadramento de gênero: Verificações, ABC de catástrofes, Pensée de jour, Feeling, Léxico cassiense, Tipologia, Ó tempora, Omen, Memorável, Classe e consciência de classe, Intermezzo, As intermitências do coração, Os vícios do sistema, Le cerveau auderci, O eu e o corpo, Schrecklich, Grave inovação, Mobilidade e imobilidade, Análise diferencial, Para as filhas, Ricordanze.[ix] Sentimentos, recordações e observações a partir de momentos-chave do cotidiano registrados em meio às agruras.
Nos excertos todos, é possível encontrar temas recorrentes que apontam para o gosto da atenção flutuante do crítico, mas, no caso, não é demais lembrar que o aparecimento deles se subordina aos propósitos de montagem do roteiro do filme: ao longo dos seus oitenta e sete minutos corridos, há comentários recorrentes sobre as condições da velhice e da proximidade da morte, comparações movediças entre corpo e mente, recordações do sul de Minas Gerais, zelo aos pequenos acontecimentos diários, atenção aos rumos do Partido dos Trabalhadores, balanços sobre a fermentação e os desafios perdidos próprios ao século passado, dizeres sobre os descaminhos do itinerário de conhecidos, notas sobre as calamidades do tempo presente, breves e raros comentários sobre literatura e comoventes reflexões a partir da viuvez frente à perda de Gilda.
Quanto a esse último ponto, algo prende a atenção para, em hipótese, sugerir ao leitor um sentido talvez protagonista (ao menos naqueles exemplares em cena) de interlocução nos diários: na maioria das passagens sobre a companheira de vida inteira, o homenageado se dirige diretamente às filhas e às identidades familiares. “Às vezes eu sinto a realidade de sua mãe de um jeito tão intenso que é como se ela estivesse viva, me animando com a sua graça e encanto incomparáveis. E eu penso, o que estou ainda fazendo por aqui?”.
No entanto, mantendo ainda à vista as especificidades da montagem, aos curiosos em busca de um aggiornamento quanto às posições finais de Antonio Candido, talvez as passagens mais interessantes estejam nas considerações feitas por ele referentes ao lugar social destinado aos negros. No fundo, para aqueles que o acompanham atentamente, não haverá novidade. Mas as proporções daquilo que é apresentado, acoplado ao tempo, permitem remodelar acomodações.
Houve ao menos dois momentos notáveis em que o filme foi conduzido a esse tema. Ainda assim, com a finalidade de serem evitadas confusões, não seria demais uma ressalva relativa à tradição crítica na qual o crítico se insere: as posições dele a seguir não devem de modo algum ser confundidas, fora de nuance e de lugar, ao novelo de lã das linhagens em transplante acelerado que culminaram numa queixa-crime contra ele de sequestro do barroco.[x]
O primeiro dos dois momentos partiu de um comentário sobre uma resenha de “Mulheres de cinzas” (2015), primeiro volume da trilogia As areias do imperador, de Mia Couto. A evocação de Ngungunhane, poderoso imperador de Gaza, levou o crítico a se lembrar de histórias relativas ao personagem contadas diretamente pelo seu jardineiro, um soldado daquela região fugido ao Brasil. O soldado-jardineiro e a sua esposa, também cozinheira da família do crítico, eram analfabetos e pediam ao observador literário ainda jovem ler para eles em Poços de Caldas Amor de perdição (1862) de Camilo Castelo Branco.
O episódio, um dramático encontro de proporções históricas entre a literatura portuguesa, a situação brasileira e o combatente moçambicano, permite entrever não apenas, a quem tem boa memória, ecos do notável ensaio/palestra “Direito à literatura” (1988), mas também as ambiguidades próprias ao transplante das luzes e das gentes referente às especificidades do tema da formação que demandam coordenação motora fina para, digamos, fazer com que os bebês não sejam jogados fora com a água do banho em meio a tantos imbricamentos que demandam determinados estalos de astúcia.
Para arrematar a lembrança, e aí o comentário tem de fato o seu desfecho, a cena leva o homenageado a fazer menção a um ramo familiar de bisavôs enriquecidos graças ao tráfico de escravos, ainda que a fortuna assim conquistada não tenha prosperado genealogia adentro. Oportunidade que o fez mostrar, corajosamente, aquela sinistra teia de interesses que o penetra a partir de si. Não a partir, digamos, de uma autoimolação catártica, mas sim a partir de um faro de testemunho muito peculiar voltado quase que empiricamente à longa duração.
Caso reste paciência ao leitor para a abordagem de um segundo momento relacionado a esse assunto, valeria a menção de uma passagem relativa ao excerto de nome “Classe e consciência de classe”. Nele, o crítico pondera a respeito das armadilhas transcendentes relacionadas às pretensões de apreensão formal do problema de mesmo nome e que, digamos, media a todos até o pescoço. Mesmo que movidos pela boa fé (e o comentário escrito pelo crítico sugere o quanto ela pode enganar), ou seja, tanto pelos desejos de ciência quanto aos lugares no mundo quanto pelos resultados da intervenção impulsiva. “É preciso muita vivência, não apenas leitura e teoria, para sentir e compreender até que ponto somos condicionados pela classe social a que pertencemos”.
A modesta defesa pelo bom senso profilático contra os dutos subterrâneos que untam involuntariamente ideia e ideologia se desdobra, em momento subsequente, a uma reflexão curiosa, na qual ele tomou parte como registro histórico, sobre o caráter da oposição democrática dos intelectuais contra o Estado Novo. Tomados nesta perspectiva, as intenções afirmadas por eles em nome do povo, munidas de uma suposta Aufklärung superiorizada, serviriam, no fundo, para defender os próprios interesses desinteressados de classe.
A dolorosa revisão, que no atacado vai da Faculdade de Direito do Largo São Francisco, passa pela Esquerda Democrática até chegar à frente ampla do Primeiro Congresso Brasileiro de Escritores (Partido Comunista incluso), termina com a conclusão de um desencontro trágico: “nunca chegamos a avaliar corretamente que, no Brasil, o alvo de luta social é antes de mais nada o negro, o grande excluído ainda hoje”. Investindo força na atualidade do tema da não integração dos negros na sociedade de classes, esse Antonio Candido às voltas com o horizonte perdido da formação dá a impressão de que encontrou tarde demais a verdadeira chave para um socialismo ajustado à vida no país. “Nesse sentido, a verdade é que fracassamos. Não soubemos ver o que olhávamos e era o problema básico para uma política de tendência igualitária”.
Problema que, para ele, Cuba teria resolvido de uma vez por todas, em que pesem também os seus poréns. Condição que faz lembrar alguns dos versos pisados do saudoso poetinha, algo envelhecido pelo modo como se colocou diante desses e de outros problemas, quando fala que a vida é a arte do encontro, embora haja tanto desencontro na vida. Refrações.
4.
Por fim, para além dos méritos próprios à confecção do documentário, e que merecem ser louvados, vale a pena mencionar que as perspectivas derradeiras do observador literário provocam água na boca. Sede que, pelo sim ou pelo não, pode ser saciada mediante acesso ao conteúdo dos cadernos. Aí é que mora o angu do caroço. Coisa que se dará, se é que se dará, apenas quando e se as anotações se tornarem de algum modo públicas. Talvez seja esse o próximo passo de coragem a ser dado frente ao encaminhamento de todo aquele material que nos foi generosamente mostrado pelo filme.
Em que pese a disposição notável da família Mello e Souza em ter disponibilizado volumes significativos das peças de acervo com livros e documentos pessoais de Gilda e de Antonio Candido em bibliotecas Brasil afora (sendo que a parte do acervo concernente ao IEB da USP é transparente a ponto de oferecer para consulta pública até documentos relativos às finanças pessoais do casal), a palhinha que o filme mostrou ao redor daqueles monumentos de envergadura mais que proustiana colados ao acompanhamento do passar dos anos como um verdadeiro romance de formação periférico mutado em diário (aliás vale lembrar que Proust e Goethe foram autores da predileção do homenageado) guardam em seus mistérios de sabe-se lá quantas páginas não apenas notações de caráter íntimo (dados, aliás, bem trabalhados pelo filme e que poderiam ser também bem trabalhados em edições para publicação), mas testemunhos inestimáveis para a compreensão dos séculos XIX, XX e XXI no mundo a partir do Brasil sob a ótica de um dos nossos maiores mestres.
Se é verdade, acompanhando Homero Santiago em seu memorial, que um professor da envergadura de Paulo Arantes ensinava em sala de aula que Antonio Candido e Roberto Schwarz podem ser tomados como “pensadores mais inventivos que um Habermas ou um Derrida”,[xi] correr o risco de restringir o acesso de tais relíquias à crítica roedora dos ratos pode ser, com o perdão tanto da blague quanto do anacronismo, um crime de lesa-tradição crítica brasileira. Quer dizer, há algum volume sobre 1945? 1951? 1964? E sobre 1968? 1970? 1988? 2013? O que eles dizem? Indagações para os próximos capítulos.
*Lucas Paolillo é doutorando em Ciências Sociais na UNESP-Araraquara.
Referência
Antonio Candido – anotações finais
Brasil, 2024, documentário, 83 minutos.
Direção: Eduardo Escorel.
Notas
[i] Ver a resenha de Luiz Zanin em https://www.estadao.com.br/cultura/luiz-zanin/etv-2024-2-em-antonio-candido-anotacoes-finais-a-vida-reduzida-a-palavras
[ii] Com exceção do epílogo retirado de uma entrevista para a Universidade Federal de Pernambuco no ano de 1995, em todo o filme se vê apenas uma imagem em movimento de Antonio Candido. Trata-se de um breve flagrante de caminhada próxima a uma caçamba. No mais, o crítico se mostra representado apenas por fotografias. Considero que isso dá o que pensar sobre modos de registro no tempo.
[iii] Reparar, por exemplo, na relação entre imagem e som no seguinte vídeo que, aliás, está presente nas anotações e compõe a trilha do filme: https://youtu.be/XKGuarq8OII?si=7mTcWlch6x-6HRV7
[iv] Ver “Carta de Antonio Candido” (2019) no nono volume da revista Humanidades em diálogo: https://www.revistas.usp.br/humanidades/article/view/154259
[v] Id., ibidem.
[vi] Ver a conferência de encerramento proferida pelo professor Paulo Arantes em https://www.youtube.com/live/xlwl4J47EVU?si=TSt05sMyQp5suPV6
[vii] Trecho de entrevista de Antonio Candido sobre a influência de Oswald de Andrade no movimento modernista gravada para o Museu da Imagem e Som em 11.04.1990 com a equipe técnica composta por Sônia Maria de Freitas, Marco Antônio Felix, Daisy Perelmutter, Adilson Ruize e Maria Augusta Fonseca Abramo (número de registro: 274; A.1163A274; A.1163A).
[viii] Para explorar de maneira mais lastreada esse tema de caráter político misturado aos puxa-puxas partidários, tema sensível à montagem do filme e à sua recepção, nada como a leitura do ensaio “Teresina e seus amigos” publicado em Teresina etc. (1980). Ou então os comentários a respeito do socialismo pobre em “Providências de um crítico literário na periferia do capitalismo” de Paulo Arantes, publicado em Sentido da formação: três estudos sobre Antonio Candido, Gilda de Mello e Souza e Lúcio Costa (1997), livro escrito em parceria com Otília Beatriz Fiori Arantes.
[ix] Tais foram os títulos que a vista do autor pôde captar à quente com um bloco de notas no escurinho do cinema da segunda sessão de apresentação na Cinemateca. Idem às tentativas de transcrições que se seguirão. Nenhuma delas pode ter, é evidente, pretensão absoluta de exatidão. No mais, vale mencionar que o uso de aspas sem indicação em notas se referirá, daqui por diante, sempre ao filme.
[x] Para uma leitura adequada dos comentários a seguir, seria interessante ao leitor manter à mente o campo de problemas presente em Sentimento da dialética na experiência intelectual brasileira: dialética e dualidade segundo Antonio Candido e Roberto Schwarz (1992) ou “Ideologia francesa, opinião brasileira: um esquema”, reunido no volume Formação e desconstrução: uma visita ao museu da ideologia francesa (2021), de Paulo Arantes ou então em “Nacional por subtração” de Roberto Schwarz, ensaio reunido em Que horas são? (1987).
[xi] Ver: Memorial (apresentado para o concurso de professor junto à disciplina de História da Filosofia Moderna I no Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo) (2004) de Homero Santiago, citação extraída da página de número vinte e dois.
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