Por CARLOS ÁGUEDO PAIVA*
A preferência pela candidatura Lula entre a população de baixa renda no campo e na cidade parece inquestionável
Os riscos para o país de uma eventual reeleição de Bolsonaro
O segundo turno da eleição presidencial no Brasil em 2022 irá definir os rumos do país por longo tempo. Afinal, não vivemos um confronto entre duas candidaturas que – malgrado diferenças político-ideológicas – estão de acordo acerca dos princípios mais elementares de ordenamento cívico e social do país. Jair Bolsonaro e seus seguidores não têm qualquer compromisso com a ordem democrático-constitucional. E não apenas porque louvam a ditadura passada e clamam, repetidamente, por um novo golpe.
O governo de Jair Bolsonaro já opera contra a Constituição. O Orçamento Secreto é muito mais que um escândalo de corrupção. A transformação dos recursos públicos em instrumento eleitoral e de enriquecimento privado é um caso evidente de subversão da ordem jurídica e constitucional que se realiza com apoio (e, em grande parte, em benefício) da maioria de deputados e senadores e com a conivência do sistema Judiciário em geral e do STF em particular.
Não obstante, se o Brasil se encontra – desde o golpe-impeachment de Dilma Rousseff, até hoje – numa situação de anormalidade institucional, tal condição é reconhecida (mesmo que de forma subliminar e envergonhada) por todos os agentes que articularam os golpes[i] e que detém o poder no país. A começar, pelo próprio presidente e sua entourage. O fato é que a anormalidade institucional é reconhecida pelos agentes e poderes capazes de impor algum freio aos desmandos do presidente Jair Bolsonaro.
Estes poderes são, em primeiro lugar, o Judiciário (em particular, o STF). Em segundo lugar, a grande imprensa, que apoiou e sancionou a farsa da Lava-Jato, o golpe-impeachment contra Dilma Rousseff, a prisão inconstitucional de Lula e a cassação de sua candidatura em 2018. Em terceiro lugar é a elite financeira e industrial e as lideranças das principais organizações empresariais do país (FIESP, Febraban, CNI, etc.). Entender esta questão dos “freios” é fundamental.
Na medida em que Michel Temer e Jair Bolsonaro só foram guindados à presidência com o beneplácito do Judiciário, da imprensa e da elite econômica nacional, a liberdade de ação dos presidentes “eleitos” por esta minoria encontra-se sob monitoramento constante. Assim, as reformas Trabalhista e Previdenciária dos governos Temer e Bolsonaro só foram realizadas porque faziam parte do projeto dos agentes que articularam os golpes 2016 e 2018.
Jair Bolsonaro pretendia ir muito além; seu objetivo era passar a boiada em tudo. Mas não conseguiu levar à frente projetos que lhe são caros: da liberação total da posse de armas ao fim de todo o controle sobre o desmatamento da Amazônia, passando pela desestruturação do SUS e pela administração corrupta e patrimonialista de todas as aquisições, repasses e concessões púbicas. Se ainda temos Inpe, Ibama SUS, Universidades Públicas, Sistema CNPq-Capes, e TCU e STF com alguma independência, isto se deve ao fato de que a legitimidade do governo Bolsonaro é frágil. O “Mito” tem pés de barro e sabe que sua eleição em 2018 se assentou numa farsa. Mesmo assim, Sua Excrescência extrapolou do script produzido pelos golpistas. Mas tampouco alcançou implantar integralmente seu projeto protofascista. Até agora!
Este ponto é crucial para que se entenda o risco que corremos com uma eventual reeleição do atual presidente: o projeto de Bolsonaro não é o mesmo da elite golpista que o pôs onde está. As tensões na relação de Bolsonaro com o STF, com os expoentes do lava-jatismo (como Sergio Moro e o MBL), com parte da grande mídia (como a Globo) e com parcela expressiva de seus apoiadores originais (de Joice Hasselmann e Janaina Paschoal a Gustavo Bebiano e Carlos Alberto Santos Cruz) não são criações ficcionais. Não há só oposição, é claro. Mas tampouco há identidade. Os golpistas de 2016 e 2018 tinham dois objetivos: aniquilar com o PT e recolocar no poder gestores neoliberais e privatistas.
Mas queriam gestores que operassem dentro dos limites mínimos de “republicanismo, decência e hierarquia”. No fundo, o que se queria, era a volta do PSDB dos tempos de FHC, que operava o Estado como uma estrutura de poder voltada ao atendimento das demandas da “nata da sociedade”: a oligarquia industrial e financeira quatrocentona paulista. Jair Bolsonaro quer o Estado para si e para seus amigos. Ele trouxe o mais baixo clero para a gestão do país. E quer governar com estes e para estes. Seu projeto de gestão é simples: todo o apoio à chinelagem.
E é aí que mora o perigo: se Bolsonaro se reeleger sem que a mídia esteja reverberando “mensalões e petrolões”, sem uma Lava-Jato em curso, sem prisão ilegal de Lula, sem apoio da grande imprensa, sem a benção e o apoio silencioso e sorridente dos Ministros do STF, então, a vitória do capitão será plena. E ele a usará para fazer uma gestão sem freios.
O Centrão, a Bancada BBB (da Bala, do Boi e da Bíblia) e as diversas forças armadas (do Exército às milícias) esperam ansiosamente por esta vitória. Assim como Paulo Guedes e seus amigos da banca e da especulação, ansiosos por nova onda de privataria. Afinal, a Petrobrás, o Banco do Brasil, a Caixa Econômica, o BNDES e tantas outras joias da coroa podem enriquecer muitos amigos e permitir a aquisição de bem mais do que 107 imóveis com dinheiro vivo.
Em suma: mais até do que em 2018, é a sobrevivência do país que está em jogo nestas eleições. Até mesmo parte do PSDB já se deu conta de que a criatura Bolsonaro se autonomizou de seus criadores e é um risco para o Brasil. Ao assumir a candidatura à vice-presidência na chapa de Lula, Geraldo Alckmin reconheceu este fato evidente. O apoio à Lula no segundo turno por Simone Tebet, Ciro Gomes, FHC, Tasso Jereissati e de outras lideranças do “centro político” vai no memo sentido. Mas os riscos que corremos ainda são enormes. E não só para nosso país, mas para o mundo.
final o Brasil não é um “peão” no xadrez político mundial. Ele conta com metade da população e da área da América do Sul, é uma das maiores economias do mundo e um dos cinco pilares dos BRICS. Num momento em que o mundo luta contra o aquecimento global e a hegemonia dos EUA e da OTAN é questionada pelas potências emergentes da Eurásia (China, Rússia e Índia à frente), a direção tomada pelo Brasil pode definir os rumos do jogo político e energético-estratégico internacional.
A vitória de Jair Bolsonaro coloca em risco a Amazônia e o equilíbrio climático mundial, divide e enfraquece a América Latina e joga água no moinho dos EUA e do Ocidente Otanista contra as potências que lutam por um mundo multipolar. O desafio é enorme. Mas é fundamental vencê-lo. E, para tanto, precisamos, antes de mais nada, entender o que aconteceu no primeiro turno.
Por que as pesquisas de intenção de voto erraram tanto?
O primeiro a entender é que as pesquisas eleitorais não erraram tanto quanto se tem pretendido. E isto na medida em que as pesquisas avaliam e medem a intenção de voto, não sendo capazes de avaliar a abstenção futura. Mas a taxa abstenção no primeiro turno de 2022 foi a mais elevada desde as eleições de 1998, alcançando a cifra de 20,89%. De acordo com o TSE, mais de 32 milhões de eleitores não compareceram às urnas no dia 2 de outubro.
Ocorre que a abstenção não se distribui uniformemente entre os diversos estratos de eleitores. Ela tende a ser mais elevada entre os eleitores que arcam com custos mais elevados para exercer o direito a voto; sejam custos monetários, sejam custos de tempo de deslocamento. Tais custos tendem a ser maiores entre a população rural e aquela parcela da população trabalhadora urbana que habita a periferia das grandes cidades e que tem no domingo o seu único dia (quando tem!) de descanso e lazer. Igualmente bem, a abstenção tende a ser maior entre eleitores que, apesar de preferirem esta ou aquela candidatura, não estão seguros e convictos de sua opção. Vamos analisar abaixo como estas duas determinações podem ter contribuído para a discrepância entre a percentagem de votos efetivamente auferidos por Bolsonaro e as projeções dos principais institutos de pesquisa. Antes disso, porém, é importante demonstrar que algumas das propostas de “explicação” para este fenômeno que receberam ampla difusão nos em veículos de imprensa e nas redes sociais estão equivocadas.
A primeira destas “explicações” é de que a amostragem das pesquisas seria mal feita, seja porque a atraso na realização do Censo Demográfico impede a atualização dos critérios de estratificação dos entrevistados, seja porque as pesquisas só captavam a intenção de voto nos centros urbanos, sem descer aos “grotões” do território, onde o bolsonarismo estaria enraizado. Esta crítica está baseada num equívoco. A Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD-Contínua) fornece elementos suficientes, seguros e rigorosos para a realização da estratificação de amostras do eleitorado nacional. Evidentemente, os institutos de pesquisa podem estratificar mal a amostra. E podem fazê-lo por incompetência, por economia de recursos (ignorando os “grotões”), ou por interesse político em privilegiar a base eleitoral deste ou daquele candidato. Mas, se isto ocorreu, não foi por falta de dados estatísticos. E, com certeza, não se impôs a todas as pesquisas. Não obstante, a discrepância emergiu em todas elas. Logo, devemos buscar a explicação em outro lugar.
Uma segunda “explicação” que emergiu foi a de que parcela dos eleitores de Jair Bolsonaro ocultaria seu voto real por se envergonhar de sua opção em dar um segundo mandato a um gestor incompetente e corrupto. Esta “explicação” usualmente vem associada (de forma confusa) a avaliações de que faltaria consciência de classe ao eleitor brasileiro médio e que parcela expressiva dos trabalhadores e estratos sociais mais pobres privilegiaria a pauta conservadora de Jair Bolsonaro no plano da “moral e dos costumes” a seus interesses econômicos.
Ora, é fácil perceber que esta “explicação” não se sustenta em pé. Não se trata de negar a importância da pauta dos costumes ou o conservadorismo de parcela expressiva da população mais pobre (em especial, os evangélicos). Contudo o bolsonarista evangélico e/ou dos “bons costumes” não tem qualquer “vergonha” de sua opção por Jair Bolsonaro. E as pesquisas captavam muito bem o peso destes eleitores. Ele se expressava exatamente na ampla preferência por Jair Bolsonaro dos eleitores evangélicos de todos os estratos de renda. Por oposição Lula era (e é!) o candidato preferencial dos eleitores católicos, ateus ou seguidores de outras religiões.
Mas o problema ainda é maior. Esta explicação é autocontraditória. Ou parcela dos entrevistados tem vergonha de declarar sua intenção de votar em Bolsonaro, ou a população é desinformada politicamente, não tem consciência de classe e não alcança perceber quão corrupto é o governo Bolsonaro. Se há vergonha, há consciência. Mas, neste caso, porque votariam num candidato que lhes envergonha? Seria mais razoável pensar o contrário: que o temor da crítica de seus pares (na elite conservadora, na comunidade evangélica, etc.) lhes induzisse a declarar voto em Jair Bolsonaro, sem que, de fato, efetivassem este voto na urna.
Mas o maior problema desta “explicação” é que não parece faltar consciência de classe ao eleitor brasileiro. Na verdade, todas as pesquisas eleitorais mostravam com clareza meridiana a clivagem socioeconômica do típico eleitor de Bolsonaro e de Lula. Na pesquisa Datafolha disponibilizada em 29 de setembro, a intenção de voto total em Lula era de 48% e em Bolsonaro era de 34%. Mas a diferença entre os dois candidatos se ampliava quando tomávamos apenas os eleitores com rendimentos até 2 salários mínimos (SMs). Neste caso, a intenção de voto em Lula era de 57% e em Bolsonaro de apenas 26%. Por oposição nos estratos superiores – entre 5 e 10 SMs e acima de 10 SMs – a situação se invertia: a intenção de voto em Bolsonaro (de 49% e de 44%, respectivamente) era superior à intenção de voto em Lula (33% e 40%). A clivagem de classe não poderia ser mais clara, revelando elevada consciência das diferenças de projeto dos dois candidatos e da consistência de cada um deles com os interesses estratégicos dos eleitores.
Enfim, não parece possível explicar a discrepância entre os prognósticos das pesquisas e a votação efetiva nos candidatos a partir de problemas de amostragem, conservadorismo envergonhado ou falta de consciência de classe. Não se trata de negar qualquer pertinência a estes fatores. Eles podem ter contribuído de forma marginal. Mas eles não dão conta de explicar a distância entre os prognósticos e o percentual efetivamente obtido por Jair Bolsonaro. O que nos traz de volta à questão posta inicialmente: até que ponto esta discrepância pode ser explicada por uma distribuição anormal e viesada da abstenção às urnas, que teria ampliado a percentagem de Jair Bolsonaro?
Afirmamos acima que o “custo” de votar não é o mesmo para todos os eleitores. Desde logo, ele tende a ser maior para os domiciliados no meio rural. O que se desdobra numa questão importante: haveria alguma inflexão política no eleitor dos “grotões”? Em uma certa versão das “explicações” anteriores, sim, haveria. E esta inflexão seria pró-Bolsonaro. Para os defensores desta tese, as pesquisas de intenção de voto (por determinações de custo, ou por equívocos na estratificação) não teriam captado adequadamente o voto do interior. A hipótese é logicamente consistente, mas não se coaduna com os fatos e os dados disponíveis. Senão, vejamos.
Até a conclusão deste artigo, o TSE ainda não havia disponibilizado informações sobre a taxa de abstenção em nível municipal. Porém, em uma pesquisa que realizamos para avaliar os determinantes da votação em Jair Bolsonaro e em Fernando Haddad em 2018, e que teve por base informações do TSE para os 5570 municípios brasileiros, encontramos uma correlação positiva e significativa de 0,444 entre percentagem do voto em Haddad no segundo turno e a percentagem da população rural na população municipal. E uma correlação negativa e significativa de -0,288 entre a percentagem de voto em Bolsonaro no primeiro turno e percentagem da população rural no total municipal.
Não há porque supor que esta correlação tenha se alterado significativamente. Muito menos, que ela tenha se invertido entre 2018 e 2022. Pelo contrário, os dados já disponíveis sobre o pleito de 2022 em nível municipal sinalizam para a persistência da correlação entre ruralidade e voto na candidatura do PT e urbanidade e voto em Bolsonaro. A figura abaixo – extraída do site G1 – aponta nessa direção.
Desde logo, a figura deixa claro que a principal determinação de voto em Bolsonaro ou em Lula é de ordem regional: Norte e Nordeste foram “lulistas”, enquanto o Sul, o Sudeste e o Centro-Oeste foram majoritariamente bolsonaristas. Porém, como se vê no Quadro 1, as regiões lulistas são justamente aquelas que apresentam taxa de ruralidade superior à média brasileira (13,78%). Como se pode ver no quadro abaixo, a percentagem da população rural no Nordeste é de 24,36% e no Norte é de 21,23%. Esta percentagem é muito inferior (em torno de 10%) nas regiões que deram vitória a Jair Bolsonaro.
Figura 1
Quadro 1
Mais: a preservação da correlação positiva entre ruralidade e voto em Lula não se manifesta apenas no plano macrorregional. Se observarmos os mapas de todas a Unidades da Federação disponibilizadas no site do g1 veremos que, mesmo nos Estados do Sul e do Sudeste onde Bolsonaro obteve a maioria dos votos, emergem “manchas vermelhas” representando microrregiões onde Lula foi o candidato mais votado. E estas manchas – com raras e honrosas exceções – correspondem às regiões onde a taxa de ruralidade é superior à média. No Rio Grande do Sul as “manchas” encontram-se na Metade Sul, no Alto Uruguai e nos Campos de Cima da Serra: as três são regiões rurais.
De outro lado, há uma enorme “mancha azul” no RS (onde Jair Bolsonaro obteve a maioria dos votos) que se inicia na Região Metropolitana de Porto Alegre e vai até a Fronteira Noroeste, passando por Canoas, Gravataí, Novo Hamburgo, Caxias do Sul, Passo Fundo, Ijuí e Santa Rosa; vale dizer, pela região mais industrializada e urbanizada do Estado.[ii] Em Santa Catarina, as manchas vermelhas são pequenas e esparsas, mas encontram-se a nas porções oeste e centro-oeste do Estado, territórios eminentemente rurais. No Paraná a grande mancha vermelha encontra-se no centro-sul do Estado: a região mais pobre e rural da UF.
São Paulo destoa discretamente das UFs anteriores na medida em que Lula foi o candidato mais votado na capital e em alguns municípios industriais do entorno. Porém, as demais (raras) manchas vermelhas em São Paulo encontram-se em territórios tipicamente rurais, como o Pontal do Paranapanema e o Vale do Paraíba. O mesmo quadro encontramos no Rio de Janeiro, onde Jair Bolsonaro foi vitorioso inclusive na capital e Lula (para além de Niteroi) só apresentou bom desempenho nos municípios pobres e rurais do Vale do Paraíba (ao sul) e ao norte, na divisa com o Espírito Santo.
Minas Gerais deu vitória a Lula, mas Jair Bolsonaro foi vitorioso em Belo Horizonte e nos municípios mais populosos e de maior renda per capita, como Uberlândia, Contagem e Uberaba. A grande mancha vermelha (lulista) encontra-se no norte do Estado, onde encontram-se os municípios menos urbanizados, menos industrializados e de menor renda per capita. O mesmo ocorre no Espírito Santo, que deu vitória a Jair Bolsonaro (inclusive na capital, Vitória), mas que apresenta uma mancha vermelha na sua porção norte, na divisa com a Bahia.[iii].
Em suma: o primeiro turno de 2022 parece ter reproduziu a relação positiva identificada estatisticamente de 2018 entre ruralidade e privilegiamento do PT. De sorte que, malgrado a alta taxa de participação das regiões Norte e Nordeste (puxadas pelas taxas de participação nas capitais), a chapa Lula-Alckmin parece ter sido prejudicada pela maior taxa de abstenção nos pequenos municípios rurais do país.
Ainda mais importante do que o viés político da abstenção do voto rural é o viés urbano. Afinal, mais de 86% da população brasileira está domiciliada nas cidades. Ora, tal como foi afirmado acima, os “custos do voto” também são mais elevados para a população urbana pobre. É muito importante entender que custo não é primariamente monetário: ele está referido ao tempo. A conquista do passe livre universal no domingo do primeiro turno foi, sem dúvida, uma grande vitória. Mas usualmente, o número de ônibus em circulação nos domingos é menor que durante a semana. Para muitos eleitores potenciais de Lula – em especial, para os moradores da periferia das grandes cidades – o tempo de espera pela condução “sem ônus” pode ser longo.
E de forma ainda mais acentuada para os moradores em terrenos não regularizados, que contam com um sistema de transporte muito precário e cujas seções eleitorais, normalmente, encontram-se a vários quilômetros de distância. Nestas condições, o exercício do voto pode ser trabalhoso e envolver o dispêndio de várias horas do único dia de descanso e lazer da semana. Este eleitor, necessariamente se vê diante da seguinte questão: será que o “benefício” do meu voto vale tamanho custo?
Mas qual é, mesmo, o benefício do voto? … Contribuir para a eleição do candidato e do projeto com o qual “eu” me identifico? Mas qual o peso do “meu” voto para a definição do resultado do pleito? Virtualmente zero. Se “eu” votar, ou não, o resultado da eleição não será alterado. Este é exatamente o “dilema da ação coletiva”, tão bem analisado na teoria dos jogos. Quando minha ação individual é incapaz de alterar um resultado final e, ainda por cima, esta ação implica um custo relativamente elevado, eu só a realizo se ela se impõe como um dever moral e/ou se tenho uma grande convicção do acerto e pertinência de minha decisão política.
E aqui encontra-se o busílis do problema. A preferência pela candidatura Lula entre a população de baixa renda no campo e na cidade parece-me inquestionável. Acredito que ela tenha sido apreendida de forma essencialmente correta nas pesquisas de intenção de voto. Na verdade, creio que, se houve algum desvio nas pesquisas, foi no sentido da subestimação da intenção de voto em Lula. Afinal, é mais razoável ter “vergonha” e “medo” de declarar voto no PT do que no atual presidente. No senso comum, Lula é o candidato ladrão, defensor dos gays e adversário das igrejas evangélicas. Além de ser o candidato que 9 entre 10 patrões renegam e “aconselham” a não votar “pelo bem da empresa e do seu emprego”.
Mas se o custo do exercício do voto é maior para o mais pobre (que, em sua maioria, é eleitor de Lula), este sujeito só o exercerá se ele também trouxer um benefício maior do que o esperado por eleitores de estrato de renda superior: é preciso ter muita confiança no projeto de Lula-Alckmin. Uma confiança que a Frente Brasil da Esperança não conseguiu consolidar com a intensidade que seria necessária. A verdade é que a campanha de Lula não conseguiu eliminar as dúvidas do “povão” sobre sua idoneidade. E esta “mancha-dúvida” operou como um depressor do benefício que parte da população mais carente atribuía ao exercício (custoso) do voto.
A confirmação desta hipótese não é trivial. Desde logo, o TSE não disponibiliza dados de abstenção por estrato de renda. Mas o TSE disponibiliza dados de abstenção por faixa etária e por nível educacional. E elas nos dão uma pista. Senão, vejamos.
A abstenção por faixa etária foi a seguinte: (1) 16 e 24 anos: 21,89%; (2) 25 e 34 anos: 23,03%; (3) 35 e 44 anos: 18,84%; (4) 45 e 60 anos: 14,88%; (5) acima de 60 anos: 35,75%. Ou seja: os adultos entre 35 e 60 anos, apresentaram uma taxa de abstenção significativamente inferior aos mais jovens (16 a 34 anos) e idoso (acima de 60). De outro lado, a abstenção por nível educacional foi: (1) eleitores analfabetos: 46,28%; (2) lê e escreve: 28,38%, (3) ensino fundamental incompleto: 23,39%; (4) fundamental completo: 24,75%; (5) ensino médio incompleto: 22,7%; (6) médio completo: 18,88%; (7) superior incompleto: 22,08%; (8) superior completo, 19,44%; (9) não informado, 54,76%.
Ora, todos os institutos de pesquisa mostravam que havia uma correlação inversa entre o grau de instrução e a faixa etária intermediária e a intenção de voto em Lula. O que não pode surpreender a ninguém: há uma correlação positiva, expressiva e significativa entre renda e grau de instrução e uma correlação positiva e significativa (ainda que menos expressiva) entre renda e faixa etária. Na verdade, o que os dados do TSE sinalizam é que os eleitores que apresentaram maior grau de abstenção foram os eleitores de menor renda (e vice-versa). Justamente entre aqueles eleitores que privilegiavam o voto em Lula nas pesquisas de intenção de voto.
Os desdobramentos do viés político da abstenção
No Quadro 2 abaixo, apresentamos um exercício numérico muito simples, de caráter meramente hipotético, que, acreditamos, ajudar o leitor a entender o impacto da distância entre “intenção” e “voto efetivo” na distribuição percentual do voto em Lula e Bolsonaro.
Quadro 2
O modelo está construído sobre as seguintes hipóteses. Imaginemos que o número total de eleitores no Brasil fosse de apenas 100 e que distribuição da intenção de votos fosse tal que metade destes votos (50%) fosse para Lula, 35% para Bolsonaro e 15% para os demais candidatos. Imaginemos, agora, que 21 eleitores não tenham comparecido às urnas (a abstenção efetiva no Brasil foi de 20,89%). Se a abstenção tivesse uma distribuição normal, Lula perderia 10,5 votos, Bolsonar perderia 7,35 e a “Terceira via” perderia 3,15. Mas se a abstenção for politicamente orientada (como supomos) a percentagem do voto efetivo seria distinta da percentagem da intenção de voto.
Suponhamos que, dentre os 21 ausentes, 13 intencionava votar em Lula, apenas 2 pretendiam votar em Bolsonaro e os demais 6 privilegiavam as demais candidaturas. Neste caso, Lula teria deixado de receber o voto de 26% de seus eleitores potenciais, Bolsonaro perderia 6%, enquanto os demais perderiam 40% de seus votos potenciais. O resultado deste exercício é quea percentagem dos votos efetivamente recebido pelos candidatos com relação aos votos efetivos seria de 46,8% para Lula, 41,8% para Bolsonaro e 11,4% para os demais candidatos. Importante notar que, nesta simulação, a percentagem de votos efetivos em Jair Bolsonaro não cresceu porque ele conquistou mais eleitores, mas porque seus eleitores apresentaram a menor taxa de abstenção.
Importante entender que não estamos negando a possibilidade de Bolsonaro ter conquistado eleitores de última hora com base em fake news ou no voto-útil anti-Lula. É possível e provável que isto tenha acontecido. Estamos apenas tentando demonstrar que este movimento não é condição sine qua non para o crescimento do percentual de votos em Bolsonaro. O viés político nas taxas de abstenção parece ser o principal determinante desta “estranha” performance.
Por fim, observem que, caso Lula tivesse perdido uma percentagem de eleitores discretamente superior (26%) à taxa média de abstenção (20,89%), e se a intenção de votos em Lula fosse de apenas 50%, sua percentagem no cômputo final teria sido de apenas 46,8%. Mas a percentagem efetiva superou os 48%. O que sinaliza para a hipótese de que a percentagem da intenção de voto já era superior a 50% no dia 2 de outubro. Se a abstenção fosse menor e/ou se a distribuição das abstenções fosse normal, Lula poderia ter sido eleito no primeiro turno.
As diferenças nas taxas de abstenção das distintas candidaturas não estão baseadas apenas em diferenças nos “custos” do voto: também há diferenças na percepção do “benefício” do voto. Os benefícios esperados do voto nos candidatos da “Terceira Via” eram mínimos. Se um voto a mais ou a menos em Lula ou Bolsonaro já é percebido por seus eleitores como incapaz de alterar o resultado final, ainda mais inconsequente é voto em candidaturas que não têm a menor possibilidade de passar para o segundo turno. O que alavanca a abstenção de seus eleitores potenciais de Tebet, Ciro ou Soraya.
A resiliência dos eleitores de Bolsonaro também é de fácil compreensão: nos estratos superiores de renda e grau de instrução e nos estratos intermediários de idade, os custos da participação eleitoral tendem a ser muito baixos. Usualmente, suas seções eleitorais encontram-se próximas do domicílio. Ou os eleitores contam com meio de transporte próprio. De outro lado, o bolsonarista pobre e de grau de instrução mais baixo tende a apresentar um elevado grau de convicção e comprometimento “moral” com o voto em Bolsonaro. Na verdade, a convicção caracteriza, simultaneamente, fanáticos religiosos, psicopatas, idiotas e fascistas. E se nem todos os eleitores de Bolsonaro cabem nestas categorias, uma parcela expressiva se enquadra nas mesmas. E o restante é border line.
Por fim, para que se entenda a grande abstenção nos votos lulistas, é preciso ir um pouco além dos argumentos socioeconômicos esgrimidos acima e atentar para a evolução da rejeição dos candidatos. Segundo o IPEC, a rejeição a Lula teria passado de 33% para 38% entre o início de agosto e final de setembro. Enquanto isso, a taxa de rejeição a Bolsonaro caiu de 51% para 46%.
Sabemos todos que a queda na rejeição a Bolsonaro está associada aos “pacotes de bondades eleitoreiros”, do Auxílio Brasil à queda do preço dos combustíveis, passando por todos os (des)caminhos do Orçamento Secreto. E a elevação da rejeição à Lula parece ter sido catapultada pela elevação dos disparos de fake news pelas redes bolsonaristas. Mas esta é apenas a ponta do iceberg. Há dois outros elementos que, do meu ponto de vista, ainda não foram bem compreendidos.
O primeiro elemento é que a queda da rejeição de Bolsonaro deprime o “benefício percebido do voto em Lula”. A questão que se coloca para o potencial eleitor de Lula da periferia é: se o atual presidente não é tão ruim quanto parecia há algum tempo atrás, porque vou arcar com os (elevados) custos de efetivar minha intenção de voto em Lula?
O segundo ponto é ainda mais importante. Não me parece que o crescimento da taxa de rejeição de Lula advenha, nem exclusivamente, nem principalmente dos movimentos do “gabinete do ódio” bolsonarista. Creio que a determinação de fundo é que a Campanha de Lula não conseguiu vencer o embate com o lava-jatismo. Na verdade, ao longo da campanha voltou a crescer – mesmo dentre eleitores potencial de Lula – a crença na corrupção endêmica dos governos do PT e na consistência jurídica do Mensalão e do Petrolão. Muitos eleitores potenciais da chapa Lula-Alckmin passaram a ver estes candidatos apenas como os “menos-piores”. Para os mesmos, o voto em Lula não é um voto confiante, engajado, militante. É apenas um voto para se contrapor a Bolsonaro. Mas se este já não parece tão mau ….
A derrota da campanha de Lula no embate com o lava-jatismo não foi determinada primordialmente por problemas internos. A principal determinação desta derrota é exógena e tem nome e sobrenome: chama-se Ciro Gomes. O candidato do PDT estruturou toda a sua campanha em torno da crítica aos governos Lula e Dilma. Uma crítica que começava pelas acusações de corrupção e avançava para a crítica de todas as políticas econômicas e sociais dos governos populares. Na construção ideológica de Ciro Gomes, os governos do PT não teriam enfrentado os principais problemas econômicos do país – da especulação financeira à desindustrialização – por um misto de opção política conservadora (compromisso com os banqueiros) e incompetência. Na ficção deslumbrada e cesarista de Ciro Gomes, o Presidente da República deteria os poderes necessários e suficientes para mudar o que bem entendesse; não existiria necessidade de negociar com o Congresso, de respeitar a opinião pública (amplamente manipulada pela mídia conservadora), nem de se submeter às decisões de um Judiciário politizado.
Se Ciro Gomes fosse um neófito na Política e desconhecesse a (perversa) estrutura de poder no Brasil, até se poderia justificar seu discurso mirabolante como expressão de uma “ignorância inocente”. Mas não é o caso. Ciro Gomes não tem nada de ignorante. Muito menos, de inocente. Ciro Gomes sabe que mente. Mas seus eleitores não sabem disso. Estes, acreditam que Ciro Gomes seja uma liderança de esquerda, douto em todos os assuntos e um gestor capaz de articular e executar as mudanças que o país precisa.
O que importa entender é que Ciro Gomes emprestou um novo selo de “idoneidade” ao discurso lava-jatista e golpista. Se as críticas feitas por Ciro fossem manifestas apenas por Bolsonaro, Padre Kelson, Felipe D’Ávila ou Soraya Thronicke o impacto sobre a credibilidade de Lula. Mas elas reconquistaram audiência na medida em que foram sustentadas por um “candidato de esquerda” que já foi ministro de Lula.
Ciro Gomes e o PDT pagaram um preço enorme pela postura arrogante, divisionista e retrógrada do candidato. Este partido perdeu seus os dois únicos governos estaduais da sigla (Amapá e Ceará), não alcançou eleger um único Senador e teve a bancada na Câmara Federal reduzida de 19 para 17 deputados. Mas a nação pagou um preço muito maior que o PDT. Ciro Gomes não impediu a vitória de Lula no primeiro turno apenas por insistir com sua candidatura inviável. Ciro Gomes deu fôlego novo ao lava-jatismo e é corresponsável pela elevada votação de Bolsonaro e pela inflexão à direita do Congresso Nacional. A questão que se coloca agora é: o que fazer diante desse quadro?
O que fazer?
É fundamental trazer os eleitores de Simone Tebet e Ciro Gomes para o nosso campo. E este movimento já está em curso. Mas ainda mais importante é fazer com que os eleitores que têm intenção de votar em Lula compareçam às urnas: é preciso deprimir sua propensão à abstenção.
Para tanto, a campanha do segundo turno deve ter como um de seus focos articuladores a recuperação da confiança popular em Lula enquanto adversário da corrupção. É preciso virar o dedo acusador na direção de quem o merece. É preciso demonstrar que corruptos, de fato, são os Bolsonaros com seus 107 imóveis adquiridos com base em rachadinhas e lavagem de dinheiro em lojas de chocolate. É preciso demonstrar que corrupto é este governo, com seu vergonhoso Orçamento Secreto, licitação de cartas marcadas (até para vacinas) e distribuição discricionária, seletiva, politicamente orientada e privatista das verbas da Educação.
Não se trata – evidentemente – de ignorar as questões programáticas e nossos compromissos com a saúde, a educação, o emprego e a distribuição de renda. Trata-se apenas de reconhecer que o “elo fraco da nossa corrente eleitoral” se encontra na convicção, na vontade, no entusiasmo de nossos eleitores potenciais. E se este é o elo fraco, não adianta reforçar os demais elos da corrente: sob tensão, ela rebentará no mesmo lugar.
A campanha Lula tem que esgrimir a decisão da ONU contra a Lava-Jato, tem que explorar o fato de que Lula foi vítima de uma grande injustiça e tem que ter coragem de acusar o governo Bolsonaro e seus aliados chamando-os do que são: ladrões, corruptos, retrógrados, grileiros, destruidores da Amazônia, genocidas, maus gestores, destruidores da educação, privateiros e antinacionalistas.
Além disso, é preciso ampliar o “benefício percebido” no ato de votar. Mesmo que, logicamente, o voto de um indivíduo seja incapaz de mudar qualquer resultado, há um benefício simbólico aurido pela “contribuição para a eleição do vencedor”. Para que o eleitor potencial perceba que pode participar desta “festa da democracia” como um agente da vitória, ele deve ser convencido da vitória antes mesmo da eleição. E a melhor maneira de fazer isto é “carnavalizar” a campanha. É preciso embandeirar o país com a propaganda da chama Lula-Alckmin, generalizar os decalques nos carros, estimular as toalhas e bandeiras nas janelas, sair da toca e mostrar que já somos maioria. A visibilidade de uma campanha tem um poder mobilizatório enorme. Mas, hoje, a despeito da intenção de voto em Bolsonar ser minoritária, em inúmeras regiões do Brasil (com ênfase nas UFs do Sul, do Sudeste e do Centro-Oeste) há mais bandeiras do Brasil nos carros do que adesivos da Frente Brasil da Esperança. E isto tende a aprofundar o gap entre intenção de voto e efetivação do voto.
Acredito que, com estes três movimentos – a crítica da lava-jato, a demonstração de que o bolsonarismo é corrupto, e com a demonstração da nossa força e garra militante mesmo antes do pleito – poderemos inverter o viés da abstenção no segundo turno: são os eleitores de Jair Bolsonaro que devem se perguntar se o benefício de seu voto vale o custo da participação. Os nossos eleitores é que devem estar convictos do valor de seu voto. É preciso, urgentemente, recuperar a confiança na chapa Lula-Alckmin e o orgulho, a coragem e a alegria de participar e de estar do lado da civilização contra a barbárie. Se não fizermos isto, corremos o risco de ver Bolsonaro transformar o Brasil numa sarjeta a céu aberto.
*Carlos Águedo Paiva é doutor em economia e professor do mestrado em desenvolvimento da Faccat.
Notas
[i] Mesmo os mentores do processo de impeachment e Ministros do STF reconhecem que não houve pedaladas fiscais ou crime de responsabilidade: o impeachment foi um golpe político realizado à margem da (e em contradição com a) Constituição. E até as pedras da Serra do Mar sabem que o resultado das eleições de 2018 é indissociável da prisão ilegal e injusta de Lula e de seu silenciamento pelo STF. Uma prisão classificada como lawfare pela ONU e cujo processo, levado à frente por Sergio Moro, o Juiz-Promotor, foi anulado pelo STF. Mas com a “devida tardeza”, após quase dois anos de prisão injusta.
[ii] A capital, Porto Alegre, é uma das raríssimas exceções nesta grande “mancha azul”.
[iii] Alguém poderia esgrimir, contra a tese acima, o argumento de que as duas macrorregiões que apresentaram a menor taxa de abstenção foram, justamente, as duas regiões “lulistas” e de maior taxa de ruralidade: Norte e Nordeste. Não obstante, esta crítica é apressada e se assenta numa extrapolação indevida. Não se pode inferir a taxa de abstenção dos municípios a partir da taxa de abstenção da região no qual ele está inserido. É possível – e, insistimos, provável – que a taxa de abstenção dos municípios rurais e, em especial, da população domiciliada no campo nestes municípios, supere significativamente a média da região. E isto porque, como qualquer média, a taxa de abstenção de uma região é fortemente influenciada pelos valores extremos, vale dizer, pela taxa de abstenção nos municípios mais populosos. Se, nestes últimos, a abstenção for significativamente inferior à média nacional, a taxa de abstenção da região como um todo será inferior à taxa nacional. Mesmo que esta taxa seja elevada nos municípios rurais de população menos significativa.
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