A arrogância do Ocidente

Lyonel Charles Feininger (1871–1956), Villa on the Shore, xilogravura, 1921.
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Por GILBERTO LOPES*

“Os que lutam por sua casa não podem ser derrotados”

“O Ocidente não os compreende”, disse Owais Tohid, um “conhecido jornalista paquistanês” que em 1996 viajou pelo Afeganistão entrevistando os talibãs. A história é contada por Fatima Bhutto, escritora paquistanesa, num painel organizado pelo jornal inglês The Guardian.

Bhutto não é um sobrenome qualquer no Paquistão. Sua mãe era afegã. Fatima Bhutto é neta do ex-primeiro-ministro e presidente paquistanês Zulfiqar Ali Bhutto. Benazir Bhutto, sua tia, foi primeira-ministra em duas oportunidades nos anos 90 do século passado. Ela foi assassinada em dezembro de 2007, na tarde de um dia em que se reunira mais cedo com o presidente do Afeganistão, Hamid Karzai, que estava de visita ao Paquistão.

O comandante da Al Qaeda, Mustafa Abu al-Yazid, reivindicou a responsabilidade pelo ataque, dizendo que tinham liquidado uma importante colaboradora dos norte-americanos, que pretendia pôr fim à luta dos mujahedins, que os combatiam no Afeganistão. Seis anos antes, os norte-americanos tinham invadido o país e iniciado a guerra que terminou na semana passada.

“Não nos compreendem”, disseram repetidamente os talibãs a Tohid. Recordaram-lhe a bela frase repetida pelo Mulá Omar, líder talibã deposto em 2001: “Eles têm os relógios, mas nós temos o tempo”. Os Estados Unidos e seus parceiros da OTAN têm a tecnologia e as armas, mas os talibãs estão lutandoporseu lar. “A derrota era inevitável”, disse Fatima. “A arrogância do Ocidente não mudou muito, seja qual for o caso. Eles imaginam poder desembarcar com seusapetrechos militares num cenário político e transformá-lo para sempre”.

Mas a violência “nunca funcionou, nem uma única vez, em todas as aventuras fracassadas norte-americanas”. E citou os casos do Vietnã, Laos, Coreia, Iraque, Síria, Líbia e Afeganistão. Lembrou de Ho Chi Minh, o líder vietnamita que liderou a luta contra a invasão americana: “Vocês podem matar dez dos meus homens por cada um de vocês que matamos. Mas, mesmo assim, vocês perderão e nós ganharemos. Enquanto persistirmos, ganharemos!”

“Aqueles que lutam por seu lar não podem ser derrotados. Não lhes dão alternativas, têm quecombater; não têm para onde ir, não têm para onde recuar”, disse Fatima Bhutto. “Esta é uma lição que os febris colonizadores ocidentais nunca aprendem: com o conceito de lar, não com violência, é como as guerras são vencidas”. “A profunda incompreensãoocidental do Islã – e a recusa orgulhosa de aprender alguma coisa sobre ele, enquanto desencadearam suas guerras sobre o mundo muçulmano nas últimas duas décadas –, junto com essa ignorância, é o que tornou inevitável a derrota no Afeganistão”, na opinião de Fatima Bhutto.

Na quinta-feira passada, o apresentador da ABC News, George Stephanopoulos, perguntou ao presidente Joe Biden se acreditava que os talibãs tinham mudado, se um eventual governo deles seria diferente daquele que os Estados Unidos derrubaram em 2001. “Não”, respondeu Biden. Ele acrescentou: “Penso que eles estão atravessando uma crise existencial, pois querem ser reconhecidos pela comunidade internacional como um governo legítimo”.

Stephanopoulos não escapa à visão provinciana que caracteriza grande parte da imprensa norte-americana, incapaz de ver além do horizonte a partir do Capitol Hill em Washington. Como sugerido por Fatima Bhutto, talvez a pergunta deveria ter sido se os Estados Unidos tinham mudado, se tinham aprendido algo com o resultado desta nova guerra.

Traição aos afegãos?

“Eram pessoas impiedosas”. É como Scott Fitzgerald qualifica Tom e Daisy Buchanan, personagens de seu notável romance “O Grande Gatsby”, e que Andrew Bacevich, presidente do Quincy Institute for Responsible Statecraft, lembra em seu artigo sobre o fracasso norte-americano no Afeganistão. Bacevich volta ao Gatsby para ilustrar a ideia: “Despedaçavam coisas e pessoas e depois retiravam-se para sua riqueza e despreocupação, deixando que outros arrumassem a bagunça que tinham feito”.

Mas Bacevich não está fazendo literatura. Ele está falando da política norte-americana no Afeganistão. A referência à literatura é apenas um recurso. “Através do abuso do poder militar, os Estados Unidos fizeram uma terrível bagunçano Afeganistão”, é o título de seu artigo, publicado na semana passada no Boston Globe. “Há quase meio século”, lembra, “depois de esmagar coisas e pessoas no Vietnã do Sul, os Estados Unidos empreenderam uma retirada semelhante. E hoje está fazendo isso novamente no Afeganistão”.

Mas Stephanopoulos não está preocupado com isso. Tampouco Stephen Wertheim, um membro sênior do programa de administração do Carnegie Endowment for International Peace. “A queda de Cabul”, disse no mesmo debate organizado pelo The Guardian, “é um acontecimento aterrador, que augura novas tragédias”. “Os Estados Unidos traíram os afegãos que protegiam, especialmente mulheres e meninas, a quem prometeram um futuro livre dos talibãs, uma promessa que não puderam cumprir”.

Um “acontecimento aterrador”, uma “catástrofe”, como disse “em alto e bom som” ao Parlamento Europeu, Joseph Borrel, chefe da política externa da União Europeia. “Ele não fez mais do que expressar a consternação generalizada que sentem os políticos de todo o continente diante da inesperada ocupação de Cabul pelos talibãs”, na opinião do colunista do The Washington Post, Ishaan Tharoor.

A “guerra contra o terror”

Cinco anos após a queda de Saigon, o presidente Ronald Reagan considerou essa guerra uma “causa nobre”, que os Estados Unidos poderiam ter vencido. Durante algum tempo, a derrota fez os EUA pensaremmelhor antes de intervir militarmente no estrangeiro.

“Depois, com o fim da Guerra Fria, o colapso do mundo socialista do leste europeu e a dissolução da União Soviética, isso mudou: o ativismo militar tornou-se a norma da política externa norte-americana”, diz Bacevich. E faz uma lista: Panamá, Kuwait, Somália, Haiti, Bósnia, Kosovo, mais as nações que sofreram ataques aéreos.

Mesmo antes dos ataques às Torres Gêmeas, “a lista de lugares invadidos ou atacados pelos Estados Unidos era longa. E, uma vez iniciada a ‘guerra ao terror’, tornou-se ainda mais longa”, aponta. “Se não se aprende com os erros, é mais provável que voltemos a cometê-los. Mas os Estados Unidos não aprenderam quase nada com o Vietnã”, diz Bacevich. “Poderíamos fazer melhor da próxima vez?”, pergunta ele.

Bacevich sugere que chegou a hora de acertar as contas, de aprender lições, num artigo que poderia ser útil ao apresentador do ABC News, George Stephanopoulos. A primeira lição é que apostar na guerra global como resposta ao terrorismo é uma tolice. A segunda é que qualquer tentativa de reorganizar um país através de uma invasão militar tem enormes custos e raramente é bem sucedida. E a terceira – talvez a mais importante, segundo ele – é que as ameaças à segurança nacional dos EUA não estão na Ásia Central (poderíamos acrescentar que também não estão na América Latina, ou no Caribe), mas ali mesmo, no território onde vivem. São ameaças como as que resultam dasmudanças climáticas, a insegurança nas fronteiras ou a agitação interna que – na opinião dele – constituem a maior ameaça.

Indiferença e crueldade

O fórum do The Guardian sobre o Afeganistão oferece ainda outros parâmetros para a análise. Shadi Hamid, membro sênior da Brookings Institution, não se surpreende com a indiferença de Biden e de seus assessores em relação à tomada de Cabul pelos talibãs. “Não era sua luta”, diz ele.

A este traço de indiferença, Hamid acrescenta o da crueldade. “Crueldade é outra coisa”, diz ele. Refere-se ao discurso de Biden na segunda-feira, 16 de agosto, no qual defendeu suas decisões sobre o Afeganistão e reprovou a covardia de seus aliados no governo de Cabul, por entregarem o país aos talibãs sem lutar. “Nossa missão para reduzir a ameaça terrorista da Al Qaeda no Afeganistão e matar Osama bin Laden foi um sucesso”, disse Biden. “Nosso esforço de décadas para superar séculos de história, mudar permanentemente e refazer o Afeganistão não foi”.

Biden tinha atacado anteriormente seus antigos aliados, os responsáveis do regime que Washington tinha colocado no poder. “Nossas tropas não podem continuar lutando e morrendo numa guerra em que as forças afegãs não estão dispostas a lutar por si mesmas. Gastamos um trilhão de dólares, treinamos uma força militar de cerca de 300.000 homens, incrivelmente bem equipados. Uma força maior do que muitos de nossos aliados da OTAN”, disse Biden, repetindo o que, agora se sabe, não era mais do que uma fantasia que escondia, entre outras coisas, a enorme corrupção entre afegãos e contratantes norte-americanos. “Nós demos a eles todas as oportunidades para determinarem seu futuro. O que não conseguimos foi dar-lhes a vontade de lutar por esse futuro”, acrescentou ele.

A frase revela uma incompreensão do que estava em jogo. Talvez aquilo que Bacevich sugeriaem seu artigo quando falava que “tinha chegado a hora de acertar as contas”. “Em seu discurso, Biden mostrou sua teimosia característica, recusando-se a admitir qualquer erro ou responsabilidade”, diz Hamid, diante de uma decisão que até os aliados europeus consideram “um erro de magnitude histórica”.

“Por que não conseguimos criar um governo afegão à altura dos desafios?”, perguntou Michael McKinley, ex-embaixador norte-americano no Afeganistão, num artigo publicado naForeign Affairs. Durante duas décadas tentaram impor uma democracia ocidental ao Afeganistão. Em 2014, durante a administração Obama, o secretário de estado John Kerry negociou a formação de um governo de unidade nacional no Afeganistão, que nunca funcionou. O resultado foi que, nas eleições seguintes, em 2019, menos de dois milhões de eleitores votaram, muito menos do que os mais de oito milhões que tinham votado apenas cinco anos antes, lembrou Mckinley.

Os falsos positivos

Haroun Dada, um consultor empresarial de origem afegã baseado em Chicago, introduz outro elemento ao debate do The Guardian. “Quando analisamos os erros dos Estados Unidos e da administração afegã e o sucesso dos talibãs, é fundamental compreender a situação das vítimas camponesas nas mãos dos norte-americanos e das forças da OTAN. Essas forças mutilaram, torturaram e mataram camponeses afegãos”. “Recolhiam os pedaços por esporte”, diz Dada. Definiram os adolescentes como “combatentes inimigos para justificar seus crimes e falsificar estatísticas” (o mesmo que faziam os militares colombianos, treinados pelos norte-americanos durante o governo de Álvaro Uribe, os chamados “falsos positivos”. Jovens recrutados pelo exército e depois assassinados pelos mesmos militares, apresentados à imprensa como guerrilheiros mortos em combate. Mais de seis mil entre 2002 e 2008. Estatísticas falsas que lhes permitiam várias recompensas, desde promoções a dinheiro, ou férias).

“Os Estados Unidos deveriam prestar contas”, disse Mansoor Adayfi, um desses jovens capturados no Afeganistão, torturados e detidos durante 20 anos na base de Guantánamo, sem nunca terem sido submetidos a um tribunal. Iemenita de 18 anos, de uma área tribal do Iêmen sem eletricidade ou água corrente, realizava uma pesquisa acadêmica no Afeganistão quando foi capturado pelos senhores da guerra, acusado de ser um líder da Al Qaeda e entregue à CIA.

Sua história foi publicada no The Guardianem 16 de agosto. “86% dos detidos de Guantánamo foram capturados depois que osEstados Unidos distribuíram folhetos no Paquistão e no Afeganistão, oferecendo grandes recompensas para ‘pessoas suspeitas’”. “Os abusos em Guantánamo”, diz ele, “serviram de modelo para os regimes do Oriente Médio e no resto do mundo”.

Adayfi era considerado um dos prisioneiros mais perigosos, especialmente por sua resistência aos seus captores, por suas greves de fome. Ele contou isso num livro. “Se esse livro deve servir de algo, é para que os Estados Unidos prestem contas pelas vidas desses homens, pelo que lhes fizeram”.

*Gilberto Lopes é jornalista, doutor em Estudos da Sociedade e da Cultura pela Universidad de Costa Rica (UCR). Autor de Crisis política del mundo moderno (Uruk).

Tradução: Fernando Lima das Neves.

 

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