Por JOÃO SETTE WHITAKER FERREIRA*
Onde está a esquerda que deveria imaginar e pensar meios de marcar seu protesto de forma inovadora e alternativa?
Sou contra ir às ruas. Se uma pessoa morrer por isso, daqui a uns meses, já não me perdoaria. E muitas vão morrer por isso. Onde está a esquerda que deveria imaginar e pensar meios de marcar seu protesto de forma inovadora e alternativa? Eu não sei o que pode ser, mas temos que pensar.
Muitos dizem que cabe ir manifestar “porque há centenas de milhares que são forçados a usar ônibus e ir às ruas, de qualquer jeito”. Então, já que de qualquer jeito o país está uma merda (e está mesmo, o argumento do desespero é correto), podemos ajudar a aumentar a pressão sobre o sistema de saúde que está literalmente colapsando? Porque milhares se expõem e muitos vão morrer, podemos ajudar que morram mais ainda daqui a uns meses? Outros dizem que não foi provado que a última manifestação tenha gerado mais mortes. Não? Teve uma segunda onda, e entre as suas muitas causas, além dos milhares que acharam que podiam ir para restaurantes, ou para as praias, as manifestações com certeza não afetaram nada? Alguém tem esses dados?
Quem tem o privilégio de poder se isolar e não sair, tem o dever de fazê-lo. Pois não é uma questão individual, nem política. Não é uma questão de coragem, de “não ter medo”, como escreveram outros. É uma questão coletiva, social. Mas, no Brasil, é tão comum ignorarmos o que está além dos nossos olhos, o que não vemos, e fazermos o que nos deixa bem na fita mesmo que afete os outros, não é? Estamos ansiosos, cansados, exasperados com tanta loucura, mas o argumento de que “a essas alturas, tanto faz” nos remete ao mesmo nível que o Bozo fazendo atos por aí. Seremos heroicos, mas ferraremos com @s colegas médicos, enfermeiros e tantos outros que estão no limite da exaustão.
E muitos que podem se isolar, estão na praia ou na casa de campo dizendo que apoiam os que vão manifestar. Não é uma questão de justeza política, de bons argumentos. É de saúde pública, de mortes. O vírus é invisível, insidioso, e afeta os mais pobres, os que devem trabalhar porque seus patrões ricos e protegidos os obrigam. Ficar isolado para quem pode é uma postura social, de elos de transmissão que são rompidos, e os que podem devem fazê-lo. Na França, deixaram as escolas abertas por tempo demais, e agora estão assustados com os novos casos. Viram que para cada criança contaminada em ambiente escolar, decorreram 3 a 4 mortes na cadeia sequencial, nos meses seguintes. De quantas mortes cada um que vai ao ato achando que “não dá mais” vai ser causador? Será que se não for a avó ou o tio, não importa, porque não se vê e não se sente?
Ontem descobriram uma nova variante parecida com a Indiana em vinte cidades do interior de SP. A taxa de transmissão no Brasil, segundo o Imperial College, de Londres, está de novo acima de 1, o que significa que a transmissão está sem controle no país. Que cada 100 pessoas infectadas contaminam outras 102 .Está muito pior do que quando, há um ano, nos isolávamos desesperados e assustados. E ainda dizemos que “agora temos conhecimento da doença de como se transmite”? É sério isso? Vamos caminhar para 700 mil mortos, eventualmente chegaremos ao milhão. Há casos cada vez mais frequentes de pessoas vacinadas que não apresentam anticorpos. Nelson Sargento nos deixou depois de receber as duas doses. Um líder de esquerda disse “não queremos fazer, mas não tem jeito”. É tanta confiança de que colocar milhares nas ruas vai fazer a diferença pra tirar o Bozo de lá? O fantástico “ele não” que levou 4 milhões às ruas do Brasil não segurou a onda bolsonarista. Agora de repente seremos capazes disso, e “já que” temos 500 mil mortos, podemos sacrificar mais alguns por essa causa? Quantos? Dez, cem, cem mil?
As pessoas não estão entendendo. Nem as idiotas que estão vivendo a vida normalmente, nem, aqueles que, cansados, exaustos, querem ir às ruas com argumentos justos. Não entendem que assim nem sequer se conseguirá evitar que as mortes se descontrolem ainda mais. Os trabalhadores da saúde estão no limite. E nós, vamos às ruas jogar mais gasolina no fogo que eles tentam apagar, porque dizemos que está tudo uma merda (está mesmo) e que o Bozo é fascista (é mesmo), e depois gritamos com orgulho “viva o SUS” ao sermos vacinados? E vamos nos desesperar mais tarde porque as aulas não voltam, porque a situação não melhora?
Me desculpem, não consigo entender.
Estou vacinado, mas não vou. Não que não seja de esquerda, não que não queira o fim do Bozo, não vou por solidariedade e respeito, não vou para não criar mais um elo. E continuarei gritando o mais alto possível as mesmas palavras de ordem dos que vão, pois são todas justíssimas.
Mais de mil pessoas juntas, em pouco tempo todas as práticas e protocolos de cuidados já se tornam impossíveis. A não ser que fossemos capazes de uma disciplina que ainda bem que não é nosso estilo. Não é hora de sermos nem heroicos, nem festivos. A situação é grave, e também o é porque nem mesmo nos manifestar podemos. É assim. Temos que achar outros meios.
*João Sette Whitaker Ferreira é professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP (FAU-USP).