Nísia Trindade é mulher e competente líder da reconstrução do SUS, que por suas qualidades vem sofrendo constantes ataques à frente do Ministério da Saúde
A tentativa de fritura de Nísia Trindade não surpreende. Embora a maioria da força de trabalho na saúde seja feminina, ela é a primeira mulher a ocupar o cargo de Ministra da Saúde no País. Tem um currículo sólido de pesquisa na área da Saúde Pública e a experiência de uma gestão técnica bem-sucedida na Fiocruz. Tanta qualificação profissional numa mulher provoca chiliques em muita gente.
Essa gente a que me refiro habituou-se a aceitar mulheres apenas como subordinadas para executarem os cuidados de saúde, seja na enfermagem e nas outras profissões, seja como cuidadoras domésticas de acamados e idosos. É uma turma que fica desde um pouco desconfortável até descontrolada quando mulheres assumem posições de comando. Diz que “mulher trocar fraldas e dar banho, tudo bem. Chefiar já é ousadia demais”.
Essa mesma gente insiste nas indicações políticas para cargos de chefia e direção, e não somente na saúde. Recusa-se terminantemente a mudar o paradigma para nomeações e promoções de carreira com base em critérios técnicos. Nem que sobrem exemplos dramáticos e recentes de adoecimento, sequelas permanentes ou mortes por COVID-19, dengue, meningite, febre maculosa e desnutrição. Fato: política de QI, o velho e malfeito Quem Indica, também mata ou incapacita.
Mas não só. Nísia Trindade foi nomeada por um Presidente da República odiado por grande parte das nossas classes média e alta – brancas e urbanas. Um Presidente atacado por qualquer motivo ou sem motivo nenhum, diuturnamente e sem pudor, por veículos de imprensa poderosos, membros de grupos religiosos, empresários, influenciadores digitais, negacionistas da ciência e militantes do whatsapp. Esse ódio tem uma capilaridade incrível e respinga em tudo e todos que se relacionem ao Presidente.
Apesar do subfinanciamento da Saúde, assunto escamoteado pelos críticos do Presidente junto com a CPMF e o teto de gastos do governo, o orçamento da Pasta comandada por Nísia Trindade ainda é um dos maiores. Em ano de eleições municipais, costuma aumentar o apetite por um bocadinho dessa verba nos 5568 cantinhos eleitorais do país. Essa pode ser uma das razões da intensificação súbita da campanha para desgaste da Ministra. A baixaria pode estar apenas começando.
Por que os moralistas de plantão em todo o território nacional não se empenham com a mesma energia para corrigir as distorções e eliminar as brechas para corrupção em todas as esferas administrativas do SUS? Afinal, não se exige dos profissionais do SUS dedicação exclusiva ao serviço público, nem quarentena após a exoneração para assumir cargos de direção em clínicas, hospitais e empresas – próprias, de parentes ou de laranjas – muitas dos quais têm contratos com… o SUS.
Assim, o setor público e o privado se entrelaçam. Às vezes, os nós cegos da saúde envolvem até o crime organizado, e viram caso de polícia e Ministério Público. Basta refrescar a memória coletiva sobre as suspeitas de enriquecimento ilícito envolvendo gestores de alguns hospitais filantrópicos brasileiros e de Organizações Sociais de Saúde (OSS) na última década.
A falta de transparência na prestação de contas e as denúncias de irregularidades foram tão sérias que, pela Lei Estadual no. 8.986 de 25 de agosto de 2020, as OSS não poderão mais assumir a gestão de unidades de saúde no Estado do Rio de Janeiro sem processo de qualificação público, objetivo e impessoal. Também serão obrigadas à publicação anual da síntese do relatório de gestão e do balanço no Diário Oficial do Estado.
Há indícios fortes de que a Ministra Nísia Trindade é alvo de ataques rasteiros porque incomoda os preconceituosos, os negacionistas e os que estão envolvidos em conflitos de interesses com raízes profundas no setor da saúde.
Mas a Ministra não está sozinha. Ela é a comandante-em-chefe de milhões de médicas, enfermeiras, técnicas e auxiliares de enfermagem, fisioterapeutas, terapeutas ocupacionais, fonoaudiólogas, gerontólogas, nutricionistas, biólogas, biomédicas, educadoras físicas, físicas especializadas em física médica, tecnólogas de sistemas biomédicos, farmacêuticas, psicólogas, odontologistas, médicas veterinárias, técnicas de radiologia e de imobilização ortopédica, agentes comunitárias de saúde, assistentes sociais e motoristas de ambulância que cuidam das vidas sob responsabilidade do SUS. Também estão nessa retaguarda: funcionárias administrativas, de tecnologia da informação, hotelaria hospitalar (recepção, limpeza, lavanderia, cozinha) e manutenção predial para o SUS.
Várias dessas profissionais receberam aplausos pela atuação ininterrupta e corajosa durante a pandemia de COVID-19. Depois, voltaram a ser tratadas com a indiferença ou o desprezo de sempre por muitos gestores do SUS. Outras permaneceram invisíveis para os políticos e gestores mesmo durante a pandemia. Agora, tem-se a oportunidade histórica de reparação dessas e de outras injustiças com a ministra Nísia Trindade como líder competente da reconstrução do SUS.
Falta saber se o País está à altura dessa liderança.
*Aracy P. S. Balbani é médica otorrinolaringologista. Atua como especialista exclusivamente na área assistencial do SUS no interior paulista.
Referências
Agência Brasil EBC. TCE proíbe estado do Rio de contratar OSs para hospitais de campanha. Publicado em 09/06/2020.
CREMERJ. CREMERJ entra com representação no MPT-RJ contra OS ISG por atraso de salário dos médicos. Publicado em 02/06/2023.
https://www.cremerj.org.br/informes/exibe/5732
Lei Estadual no. 8.986 de 25 de agosto de 2020. Dispõe sobre a qualificação de entidades sem fins lucrativos como organizações sociais, no âmbito da saúde, medicante contrato de gestão, e dá outras providências.
http://alerjln1.alerj.rj.gov.br/CONTLEI.NSF/c8aa0900025feef6032564ec0060dfff/c8d2df9a2566fd0e83257911005f4c7a?OpenDocument
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