Autoritarismo e regressão colonial

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Por LUIZ BERNARDO PERICÁS*

Considerações sobre o Brasil depois do golpe de 2016

As causas imediatas da atual crise brasileira podem ser encontradas há pelo menos dez anos, com o fim do superciclo das commodities, entre 2005 e 2010, quando se verificou um breve crescimento da economia acompanhado de relativa redistribuição de renda e de projeção favorável da imagem do país no plano internacional.

Ainda que este tenha sido um momento importante dentro da onda progressista latino-americana, com a implementação de políticas sociais e culturais inclusivas que contemplaram e elevaram os níveis de educação e renda dos segmentos menos privilegiados da sociedade, foi possível, ao mesmo tempo, constatar os nítidos limites do lulismo, que nunca se propôs a rupturas radicais e decisivas com o capital, melhorando, sem dúvida, a qualidade de vida dos mais necessitados, mas garantindo e preservando, através de compromissos conciliatórios, enormes dividendos e lucros para os setores financeiros rentistas, bancários, empresariais e do agronegócio.

A recessão no período 2014-2016 (com estagnação inercial no triênio seguinte) teve como prenúncio e complemento a deterioração no campo político, simbolizada pelas Jornadas de junho de 2013, o rápido ascenso de setores conservadores em distintos grupos sociais e o golpe institucional contra a presidente Dilma Rousseff.

Uma disputa entre frações da classe dominante pelo aparato de Estado e a falta de um candidato competitivo para as eleições de 2018 levaram à escolha de Jair Bolsonaro como opção mais segura para frear um possível retorno do Partido dos Trabalhadores (PT) ao poder. Tudo isso, por certo, com o apoio de boa parte das camadas médias. Se, por um lado, durante o mandato de Michel Temer a política de acirramento contra a massa despossuída nas cidades e no campo se intensificou (com aumento do uso de força, coerção, repressão a manifestações e assassinatos sistemáticos nas zonas rural e urbana), a reforma trabalhista impulsionada por ele, por outro, criou mecanismos para retirar direitos históricos dos obreiros, garantindo, concomitantemente, a possibilidade de ampliação exponencial da taxa de lucros para empresas e bancos (inclusive estrangeiros).

Ao mesmo tempo em que tudo isso se desenrolava, a Operação Lava Jato ajudava a quebrar ou desidratar companhias nacionais (especialmente empreiteiras responsáveis pela construção civil, assim como empresas públicas como a Petrobras ou uma instituição do porte do BNDES) e a colocar na prisão diversos políticos conhecidos, entre os quais, o mais emblemático de todos, Luiz Inácio Lula da Silva (neste caso, num processo repleto de irregularidades), com o intuito de evitar que este se candidatasse e ganhasse o pleito eleitoral passado, o qual, aliás, foi dominado por táticas de “guerra suja” na internet, fake news e construção de milícias virtuais de extrema direita prontas para consolidar a posição de Bolsonaro (que concorria pelo PSL e que agora está sem partido) como favorito na ocasião.

Mais tarde, a divulgação (por parte do site The Intercept) da troca de mensagens e gravações dos procuradores do MP do Paraná com o ex-juiz Sérgio Moro, mostrou claramente o caráter tendencioso e o intuito político antipetista daquela “organização criminosa” fantasiada de grupo de combate à corrupção (dentro da lógica da chamada Lawfare). Moro seria recompensado com o cargo de ministro da Justiça da nova administração.

É claro que, se decidirmos analisar a situação com maior profundidade e dentro de um processo de “longa duração”, perceberemos que se trata de uma reprodução clássica do padrão histórico brasileiro, em que a burguesia interna cria todo tipo de mecanismos, acordos, alianças ou arranjos intraclassistas “pelo alto”, em uma dinâmica verticalizada e autoritária, para alijar a maior parte da população do processo decisório (cooptando lideranças ou reprimindo quaisquer tentativas de resistência dos meios populares) e manter seu status como grupo hegemônico (autores como Caio Prado Júnior, Nelson Werneck Sodré, Florestan Fernandes e Edmundo Moniz, entre outros, seriam alguns daqueles que estudariam com profundidade esse assunto), assim como preservar as “permanências” estruturais seculares que mantêm o país em sua posição subordinada, dependente e periférica em termos globais, ou seja, consolidando a sua inserção mundial como nação prioritariamente voltada para a exportação de produtos agrominerais e tirando, assim, qualquer ênfase no desenvolvimento do setor industrial e tecnológico, que tem perdido espaço ao longo das décadas (a indústria nacional acumulou uma queda de 1,7% em 2019 e de 15% de 2014 até o ano passado).

Essa dinâmica de “regressão colonial” tem se intensificado nesta administração. Está claro que não há qualquer projeto de “nação” na atualidade. Muito pelo contrário. Se historicamente diferentes pensadores se preocuparam em propor ideias para “construir” e desenvolver o país, Bolsonaro já explicitou publicamente que sua intenção é “destruir” e desmontar o que resta de organização do Estado. Ou seja, promover um suposto Estado “mínimo” e repressor, deixando o ambiente livre para a rapina desenfreada do capital privado nacional e forâneo, e defendendo a continuidade de uma ordem social injusta, que garanta os privilégios de uma minoria abastada que controla os meios de produção e os aparelhos ideológicos.

Além disso, não se pode esquecer as tendências autoritárias “estruturais” incrustradas na sociedade brasileira desde o período escravocrata, que nunca saíram de cena e que agora voltam com força. O cansaço e esgotamento do modelo da “Nova República” e mesmo do sistema político e seus principais partidos, o PT, o PSDB e o MDB, também são elementos apontados por alguns analistas para tentar explicar o atual cenário.

Nesse contexto, o presidente é um personagem dispensável, que tinha um papel muito definido a cumprir. Capitão reformado do exército, político inexpressivo e representante do “baixo clero” no Congresso por quase três décadas, ele canalizou o ódio de classe das elites por meios das mais abjetas expressões de racismo, homofobia, misoginia, “anticomunismo” tacanho e todo tipo de preconceito (especialmente ligados a costumes), além de sua exaltação explícita à tortura e à ditadura militar. Sua função, na prática, seria a de viabilizar o retorno da direita ao poder, ainda que se apresentasse com uma fachada “antipolítica”, “salvacionista” e “redentora”, além de levantar a bandeira da luta contra a corrupção, algo que costumeiramente tem sido feito em campanhas eleitorais no Brasil há décadas.

Sua visão extremista, radical e religiosa e seus vínculos pessoais com bandidos milicianos (especialmente do Rio de Janeiro) e ideológicos com indivíduos como Steve Bannon e Olavo de Carvalho, contudo, se mostram excessivos e prejudiciais não só para os interesses da direita “tradicional” e à imagem do Brasil no exterior como também para as transações comerciais correntes, especialmente para o agronegócio (ministros “antiglobalistas”, negacionistas do aquecimento global e pouco preparados intelectualmente, como Ernesto Araújo, Damares Alves, Abraham Weintraub e Ricardo Salles, mais prejudicam do que ajudam a posição do país nos foros internacionais e a imagem do governo no exterior).

Há, quem sabe, o perigo, ainda difuso, de um autogolpe, de um aparelhamento intenso dos órgãos públicos e de uma busca por se manter no poder a qualquer custo, a partir de um reforço nas áreas de inteligência, vigilância e repressão (os comentários recentes de um de seus filhos sobre a possibilidade de uma reedição do AI-5 mostram isso), ainda que existam balanços e contrapesos institucionais mínimos e setores variados da sociedade civil, imprensa, legislativo e judiciário que poderiam frear suas possíveis ambições autoritárias. Por outro lado, há um intento de se construir, mesmo que extraoficialmente, um “parlamentarismo branco”, em que o Congresso (e, especialmente, o presidente da Câmara, Rodrigo Maia) assume cada vez maior protagonismo, ao impedir arroubos e desmandos de Bolsonaro através de articulações com o chamado “Centrão”, que costumeiramente tem se oposto às deliberações do presidente.

Mais importante, nesse sentido, é a implementação da agenda econômica liberal agressiva e privatista do ministro e banqueiro Paulo Guedes (um egresso da “Escola de Chicago”), com alterações profundas na área previdenciária (que pretende retirar, no próximo decênio, R$ 800 milhões dos bolsos da maior parte da população e escancarar a superexploração do trabalho) e a garantia da lei e da ordem, sem mediações, passando por cima de qualquer oposição, nem que para isso se amplie a precarização laboral e mesmo o desemprego (ainda que, no discurso, isso não seja admitido).

Todos os setores da burguesia e da grande mídia corporativa apoiam a política econômica de Guedes e suas reformas (que têm como objetivo modificar drasticamente as relações trabalhistas, em geral, favoráveis ao patronato), divulgadas na imprensa como “modernizadoras”. Por outro lado, percebe-se um recrudescimento das ações policiais nas favelas, aumento na compra de armas pelas classes média e alta, prisões em massa, chacinas, assassinatos de trabalhadores em comunidades pobres e repressão a quaisquer protestos realizados por moradores da periferia.

Atualmente estão tramitando na Câmara e Senado em torno de 70 projetos de lei (elaborados por diferentes partidos de direita) contra protestos de rua, os quais, em última instância, criminalizam as condutas de militantes e asseguram punições mais severas a eles. Entre as propostas, o monitoramento de indivíduos por mapeamento genético ou através das comunicações particulares em rede sociais, a infiltração de agentes nas organizações populares e a interceptação de chamadas telefônicas sem a necessidade de autorização judicial.

Além disso, alguns parlamentares sugerem também mudanças na Lei de Terrorismo (aprovada em 2016 durante o governo de Dilma Rousseff), flexibilizando o entendimento do que seria “terrorismo” para poder incluir nesta categoria os movimentos sociais (não custa lembrar que o artigo 5º da Constituição garante a proteção à liberdade de expressão, associação e reunião a todos os cidadãos). E ainda não se pode deixar de mencionar a defesa de Bolsonaro do projeto de excludente de ilicitude, isentando de punição agentes públicos acusados de crimes durante operações de Garantia de Lei e da Ordem.

Há, portanto, uma articulação entre uma agenda econômica ultraliberal com uma política de “segurança” dura, enquanto a retórica para as massas tem traços conservadores, evangélicos e moralistas. Bolsonaro, assim, incentiva a privatização de estatais (nos planos do governo estão pelo menos 133 empresas, o que traria “ganhos” estimados em 33 bilhões de euros), resultando numa redução expressiva da máquina pública (pesquisas indicam que a ampla maioria da população é contra essa medida); a criação de um ambiente estimulante para o grande capital privado; a grilagem de terras; o avanço do desmatamento na Amazônia e, consequentemente, do setor extrativista madeireiro ou das queimadas (em 2019, a Amazônia teve 89 mil focos de queimadas, 30% a mais que em 2018, enquanto dobrou a área devastada pelo fogo em todo o país, em torno de 318 mil quilômetros quadrados de florestas); o desmantelamento de órgãos fiscalizadores ligados ao meio ambiente; a apropriação desenfreada e agressiva dos bens da natureza pelo capital privado (petróleo, minérios, biodiversidade); estreitamento político e ideológico com o governo de Donald Trump; possibilidade de se implantar um regime de exceção para conter protestos populares; o sucateamento das universidades e a aposta nas instituições de ensino particulares; a aproximação com os neopentecostais; cortes de verbas na saúde pública (só o seu projeto de extinção do seguro obrigatório de veículos poderia retirar em torno de R$ 6 milhões do SUS); o desmonte do Programa Mais Médicos; se possível, o fim do programa de moradia popular; paralisação da reforma agrária (algo que, efetivamente, já vem ocorrendo há alguns anos); eliminação dos encargos sobre a folha de salários; ataques ao meio cultural (considerado esquerdista por ele); e uma ofensiva contra estudantes, militantes progressistas, movimentos sociais e sindicatos.

No primeiro semestre de 2019, por exemplo, houve um refluxo no número de greves no país. Vale lembrar que o Brasil perdeu 1,5 milhão de sindicalizados desde a reforma trabalhista que entrou em vigor em novembro de 2017, o equivalente a 11,9% de indivíduos no contingente total de filiados a sindicatos. Há aproximadamente 12 milhões de desempregados, enquanto se ampliam consideravelmente as camadas de trabalhadores precarizados, terceirizados, desalentados e na informalidade, que neste último caso, atinge 41,4% da população (a queda média do PIB per capita no último quinquênio, por sua vez, foi de 1,5%, com uma redução média de produtividade do trabalho de 1,1% anual no período).

A taxa de subutilização da mão de obra (ou seja, dos que laboram menos horas do que precisariam para ter uma renda compatível com suas necessidades) é de 30 milhões de pessoas. Mesmo os trabalhadores formais (aqueles contratados com carteira assinada), também sofrem com alta rotatividade, ou seja, mudam de atividades constantemente. A baixa qualificação técnica e profissional da maior parte da força laboral, de um modo geral, permanece inalterada.

Não custa lembrar que o crescimento econômico no primeiro ano do governo Bolsonaro foi pífio, em torno de 1%, o que significa que o país se encontra numa condição de semiestagnação, com pouco dinamismo no mercado de trabalho, ainda que este tenha sido excessivamente flexibilizado (e desorganizado) em anos recentes. O aumento da pobreza e desigualdade é nítido na atualidade (neste caso, 1% da população monopoliza quase 30% das riquezas, enquanto a “pobreza extrema” atinge 13,5 milhões de pessoas, que sobrevivem com menos de R$ 145 por mês).

No campo, como informa o dirigente do MST João Pedro Stedile no recente artigo “Um balanço do governo Bolsonaro”, nenhuma área indígena ou quilombola foi demarcada ou legalizada; ocorreu a edição da MP 910, que normatiza a legalização das terras públicas griladas na Amazônia legal por grandes proprietários; foram paralisados o programa de compra antecipada de alimento (PPA), o Pronera, programas de assistência técnica e fomento para agricultura familiar e assentamentos e o programa de habitação rural; o Programa Nacional de Redução de Uso de Agrotóxicos foi interrompido; o governo liberou para venda 502 novos rótulos de agrotóxicos (muitos dos quais proibidos em vários países); houve uma maior flexibilização das regras para registro de novas plantas transgênicas; suspensão da proibição do plantio de cana de açúcar no Pantanal e região amazônica; impunidade em relação às empresas mineradoras que cometeram crimes ambientais; desmonte do programa de construção de cisternas no semiárido do Nordeste; desmantelamento e aparelhamento do que restou do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra); uma política de abandono da agricultura familiar; e um projeto para eliminar centenas de pequenos municípios, entre outros. Além disso, segundo a Comissão Pastoral da Terra (CPT), aumentou a violência nas áreas rurais, com o assassinato de 29 lideranças de movimentos sociais, indígenas e quilombolas em 2019.

Para completar, Bolsonaro encaminhou ao Congresso um Projeto de Lei que permite a mineração, agricultura, pecuária, hidrelétricas, prospecção de petróleo e gás, extrativismo e turismo em terras dos índios da Amazônia, sem que os povos originários tenham poder de veto, cabendo ao Executivo definir as áreas que serão concedidas para atividades predatórias de grandes empresas e abrindo o caminho, assim, para a exploração legalizada daquelas reservas.

A esquerda, por sua vez, não tem demonstrado capacidade de resistência ou de “ofensiva” efetiva. Sem um projeto ou programa claro, ousado e que mobilize a população, ainda desorganizada e fragmentada, ela se apresenta, principalmente, como elemento dissonante e crítico em ambientes parlamentares (estaduais e nacional), buscando, no momento, alianças circunstanciais e conjunturais para as próximas eleições municipais de 2020, não transcendendo, portanto, uma atuação convencional na política institucional cotidiana.

Os partidos mais radicais, por sua vez, são pequenos e não têm capilaridade ou maior penetração nas massas. E os movimentos sociais, que vão para as ruas intermitentemente, não são fortes o suficiente e têm muitas vezes como foco prioritário uma agenda identitarista, ambiental ou de costumes, além de promover manifestações específicas ligadas a situações pontuais, como eventuais deliberações desfavoráveis de algum órgão do governo (o caso do Ministério da Educação é um exemplo disso) ou o aumento de tarifas do transporte público. Todas elas, sem dúvida, formas de atuação importantes, mas que, por enquanto, não parecem conseguir ir além da conjuntura imediata.

Há um forte componente “pós-moderno” nestas lutas, com a presença de militantes autoproclamados “autonomistas” e “anticapitalistas” (em geral, jovens desempregados e estudantes oriundos das camadas médias urbanas), mas que, grosso modo, não utilizam nem gostam do termo “socialismo”. Esses ativistas, mesmo sem admitirem, acabam servindo, em grande medida, para “aperfeiçoar” o sistema existente (e não, “destruí-lo”), ao propor prioritariamente políticas públicas inclusivas, mecanismos compensatórios para as minorias e medidas jurídicas e legislativas “progressistas”. A ideia de revolução, por outro lado, ainda está muito distante para eles, assim como um projeto de construção do “socialismo”.

A situação, portanto, se mostra bastante complicada e só se definirá com maior nitidez nos próximos meses. Afinal, o quadro político no Brasil, muitas vezes, muda rapidamente e os acontecimentos se aceleram. Novos fatos poderão alterar a dinâmica política imediata e provocar greves e protestos, espontâneos ou organizados, como aqueles que se verificaram em outros países do continente em tempos recentes. O governo sabe disso e está se preparando para quaisquer eventualidades. Uma resposta violenta tem o potencial de levar a uma maior radicalização do ambiente. Mas também poderá ser uma oportunidade para as esquerdas darem um salto de qualidade em termos de organização e programas, e mudar os rumos das lutas populares. É questão, portanto, de aguardar o andamento do processo.

*Luiz Bernardo Pericás é professor no Departamento de História da USP. Autor, entre outros livros, de Caio Prado Júnior: uma biografia política (Boitempo).

Publicado originalmente na Revista Casa de las Américas, no. 298, Havana, janeiro-março de 2020, págs. 46 a 52.

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