Por SERGIO AMADEU DA SILVEIRA*
As corporações de tecnologia exploram a experiência humana como matéria-prima gratuita. Tratam os dados comportamentais como sua propriedade, numa dinâmica de usurpação.
No dia 27 de maio de 2020, o Ministro da Ciência, Tecnologia e Inovações, MCTIC, assinou um acordo com a empresa norte-americana Cisco com o objetivo alegado de acelerar a chamada transformação digital no Brasil. Sem consultar universidades, institutos de pesquisa, nem especialistas na área, o atual governo divulgou que “a Cisco vai trabalhar junto com o MCTIC no desenvolvimento de uma plataforma digital inteligente para dar suporte ao monitoramento, gestão e definição de políticas públicas no país”. Desconsiderando o conhecimento acumulado em políticas públicas e em tecnologias digitais nas instituições brasileiras, o governo Bolsonaro preferiu acelerar nossa transformação em uma colônia digital.
É possível observar, durante a pandemia, a ampliação da presença das corporações e plataformas digitais que lucram extraindo e manipulando dados pessoais obtidos na coleta dos rastros digitais e de informações sobre o comportamento de usuários de seus serviços e produtos. As autoridades brasileiras agiram como se não existisse outro caminho exceto entregar os dados de nossa população às empresas que buscam converter os fluxos de nossas vidas em uma torrente de dados a ser tratados. Essas corporações também chamadas de Big Techs, ou plataformas digitais, exercem seu poder planetário extraindo, armazenando e manipulando dados pessoais.
Enquanto a atividade econômica medida pelo PIB dos 37 países que integram a OCDE caiu 0,8% no primeiro trimestre de 2020 em relação a 2019 e o PIB brasileiro caiu 0,3% em relação ao mesmo período do ano anterior, as grandes corporações de tecnologia que vivem principalmente da coleta, armazenamento e processamento de dados pessoais, aumentaram suas vendas. Elas converteram a pandemia em um momento de ampliação dos negócios. A crise humanitária e sanitária ampliou o cenário para a obtenção de mais informações das populações do planeta.
Os lucros do Facebook no primeiro trimestre de 2020 aumentaram 102% em relação ao mesmo período do ano anterior. O faturamento da empresa de Zuckerberg foi de US$ 17,7 bilhões nos primeiros três meses desse ano, sendo 18% superior ao mesmo período de 2019. O Facebook é dono da maior rede de relacionamento online do planeta, também do Instagram e do WhatsApp. Na pandemia os três produtos ultrapassaram três bilhões de usuários.
O Google Meet divulgou que obteve três milhões de usuários novos por dia, enquanto a pandemia avançava pelos continentes. O Grupo Alphabet – controlador do Google, Youtube e outras empresas de tecnologia – faturou US$ 42,1 bilhões nos primeiros três meses de 2020, sendo 13% superior ao período similar do ano anterior. O Google Cloud e seu G Suite avançou no mercado corporativo. Só o faturamento da nuvem do grupo Alphabet teve aumento de 52% atingindo US$ 2,8 bilhões.
Já a Microsoft aumentou seu faturamento no período em 13,6% em relação ao primeiro trimestre do ano anterior atingindo US$ 33 bilhões. Os serviços de computação em nuvem da Microsoft faturaram US$ 10,9 bilhões puxados pela plataforma Azure que aumentou sua receita em 59%. Para disputar o mercado de ferramentas de comunicação a Microsoft apresentou o Teams que avançou na pandemia e superou 75 milhões de usuários.
A empresa Amazon faturou no primeiro trimestre de 2020 a quantia de US$ 75 bilhões, crescendo 26% em comparação com o mesmo período do ano passado. Apesar a elevação dos custos de logística e segurança durante a pandemia, a empresa de Jeff Bezos, ainda sim, obteve o lucro líquido de US$ 2,5 bilhões. Seus serviços de nuvem chamados Amazon Web Services (AWS) lidera o mercado de computação em nuvem.
Note que as grandes corporações de tecnologia atuam como novos colonizadores. Utilizam sua capacidade tecnológica para oferecer dispositivos e interfaces gratuitas ou a baixíssimo custo para fidelizar populações inteiras às suas infraestruturas de extração de dados. Nas plataformas digitais, mais do que “melhorar nossa experiência”, um excedente comportamental é consolidado em dados que são extraídos como se fossem recursos naturais. Todavia, dados dependem de projetos criados para converter determinada ação em algo que possa ser quantificado. Uma vez inventados, os dispositivos de coleta de certa métrica – tal como o número dos meus amigos em uma rede de relacionamento, meus “likes”, o tempo exato que observo uma página da web ou um perfil na rede social – geram dados que são capturados e armazenados pelas corporações.
A pesquisadora Shoshana Zuboff afirmou que as corporações de tecnologia passaram a reivindicar o direito de explorar a experiência humana como matéria-prima gratuita, pleitear o direito de traduzir nossas ações em dados comportamentais, de reclamar a possibilidade de armazenar os dados sobre as pessoas, muitas vezes sem que elas saibam, e de exercer a propriedade sobre os dados coletados e sobre os resultados de seu processamento e análise, bem como, sobre o conhecimento futuro derivado dessa dinâmica de usurpação. Zuboff denominou esse processo de “capitalismo de vigilância”. Considero que ele seria mais bem caracterizado como um processo de extração e concentração de riqueza em gigantescas corporações tecnológicas sediadas em poucos países capitalistas em uma fase de neoliberalismo profundo que se tornou neocolonial. Uma nova colonização da vida a partir de seu controle pelos dados.
Inspirados nas teorias decoloniais e pós-coloniais, principalmente da América Latina, os pesquisadores Nick Couldry e Ulises Mejias trabalharam o conceito de colonialismo de dados para definir um ordenamento emergente que visa a apropriação da vida humana a partir da extração contínua de informações quantificadas de cada pessoa para obtenção de lucro. Já Paola Ricaurte denuncia que as epistemologias centradas em dados são expressões da colonialidade do poder que vai submetendo os modos de saber às epistemologias voltadas ao mercado. O Big Data vai se tornando a base do conhecimento considerado indispensável e o machine learning o modo irrecusável de extrair padrões e formular predições.
Paola Ricaurte nos alerta de que a epistemologia dessa imensa dataficação é uma evolução do paradigma positivista que se baseia em três suposições. A primeira é a de que os dados refletem a realidade, portanto, são expressões da verdade. A segunda é a suposição de que a análise desses dados pode gerar um conhecimento extremamente valioso e completamente preciso. Contra dados, não há argumentos. A terceira suposição indica que a análise dos dados permite melhorar as decisões sobre o mundo. Acredito que exista uma quarta suposição, talvez decorrência direta da primeira, que é a naturalização dos dados. Essas suposições estão na base do que a pesquisadora Van Dijck denominou de “dataismo”, uma crença quase religiosa de que os dados falam pela realidade.
O neoliberalismo, atualmente em sua fase mais profunda e perigosa para a democracia, propicia a expansão da economia dataficada, do mercado de dados pessoais e de uma concorrência das grandes plataformas coletoras de dados. Esse processo vai se consolidando diante do contentamento acrítico e displicente de pessoas maravilhadas com os dispositivos e interfaces tecnológicas que como bugigangas vão fidelizando os diversos segmentos sociais às plataformas de extração de dados. Essas companhias não vêm aqui levar pau-brasil ou metais precisos, levam dados pessoais que serão processados e vendidos em amostras para o marketing comercial e político. Mais do que isso, os dados pessoais alimentam as estruturas de dados de aprendizagem de máquina e de outros modelos de inteligência artificial com o objetivo de predizer nossas ações.
Concretamente, se os dados são “o petróleo do século XXI” estamos sendo usurpados. Obviamente, dados não são recursos naturais, mas no paradigma do novo colonialismo são expressões naturais da realidade e tal como qualquer recurso natural no capitalismo é precificado e apropriado privadamente. Quem consegue extrair e se apropriar dos dados que estão aí disponíveis? Obviamente, as grandes plataformas que nos oferecem suas interfaces como um pescador que oferece uma isca em um anzol.
Boa parte das universidades brasileiras já deixou de preservar os dados de seus professores, pesquisadores, estudantes e técnicos. A iniciativa Educação Vigiada – organizada pela Iniciativa Educação Aberta (parceria entre a Cátedra UNESCO de Educação EaD da UnB e o Instituto EducaDigital), e pelo Laboratório Amazônico de Estudos Sociotécnicos e o Centro de Competência em Software Livre, ambos da UFPA – constatou que 70% das universidades públicas e secretarias estaduais de educação no Brasil hospedam parte considerável de seus dados em grandes plataformas, como Google, Microsoft e Amazon.
Não ser capaz de cuidar dos dados cruciais para as políticas públicas educacionais do país parece ser visto como fator positivo pela mentalidade neocolonial. O MEC publicou no dia 23 de março de 2020, uma segunda-feira, às 14h38, em seu portal, a seguinte notícia: Microsoft destaca Sisu em nuvem como case de sucesso. A matéria saudava o fato de o MEC ter migrado o Sistema de Seleção Unificada (Sisu) com os dados do desempenho escolar dos estudantes que buscaram vagas nas universidades brasileiras para “a nuvem da multinacional de tecnologia para aumentar a capacidade de acessos”. Com link direto para o site da Microsoft, o MEC entregou os dados de estudantes brasileiros para a plataforma Microsoft Azure. Boa parte desses dados provavelmente foram enviados para servidores instalados em data centers nos Estados Unidos.
O texto publicado no portal do Ministério da Educação enaltecia a migração como um autoelogio, mas vindo de um release da Microsoft que dizia: “o MEC levou em consideração a necessidade de investimento em infraestrutura para comportar um sistema que recebe um enorme volume de acessos em apenas 12 dias por ano”. Desse modo, para evitar a ociosidade, para reduzir custos, Weintraub entregou os dados de 1.795.211 estudantes para quem tem capacidade e bom preço para suportar o acesso de sete mil inscritos por minuto. A colônia digital não tem a tecnologia da matriz e por isso entrega a sua matéria-prima em troca de matéria processada. Em nenhum momento, o MEC pensou em montar uma estrutura que vencesse a ociosidade hospedando os bancos de dados das universidades que estão sendo entregues para as plataformas norte-americanas.
Mas a colônia digital tem exemplos de sobra da extração de dados praticados pelas plataformas no cotidiano. Aqui apontarei apenas mais um. A pandemia novamente abre as portas para a oportuna ação das plataformas em busca de dados. O governo de São Paulo, empolgado com as grandes plataformas, decidiu cadastrar pessoas em situação de rua com um aplicativo que utilizará “gratuitamente” a plataforma Power Apps, “doada” pela Microsoft. Ela permite a identificação das pessoas por meio de um QR Code que será impresso em um cartão PVC e depois escaneado quando o morador em situação de rua for acessar as unidades de distribuição de refeições.
Quem insere os dados na plataforma da Microsoft são os agentes de campo da Prefeitura de São Paulo. Segundo a corporação, todos os dados serão “armazenados e gerenciados no Dynamics 365, conjunto de aplicativos de negócio baseado na nuvem da Microsoft”. A Microsoft com essa ação acredita estar se credenciando para fortalecer as organizações no combate ao novo coronavírus.
Obviamente também iniciará a implantação de seus produtos Power Apps, Power Automate, Power Apps portals, Dynamics 365 e Power Virtual Agents para clientes nas áreas de saúde, educação, ONGs e governos. A generosidade é também a oportunidade de expandir seus serviços de coleta e armazenamento de dados em um cenário de disputa acirrada não somente com o Google e com a Amazon, mas também com as empresas chinesas que vem por aí.
A experiência e a condição humana se tornou matéria-prima a ser explorada por plataformas que podem utilizar os dados não somente das camadas médias, mas também das massas pauperizadas para treinar seus algoritmos de aprendizado de máquina. É impressionante que quanto mais o neoliberalismo manda reduzir custos do Estado, mais avança a extração de dados dos países empobrecidos para suas matrizes. Os dirigentes do Brasil atual fazem de tudo para assegurar as plenas condições para a extração de dados aqui na colônia.
O SERPRO, empresa pública de tecnologia da informação, criada para proteger as informações estratégicas da Receita Federal, no governo Bolsonaro, comemora um contrato que o coloca como parceiro e revendedor de espaços na nuvem da Amazon Web Services, Inc. Mesmo sabendo da existência da Communications Assistance for Law Enforcement Act (CALEA), nos Estados Unidos, que obriga fabricantes de equipamentos de telecomunicações a implementarem em seus produtos meios para o acesso das agências de inteligência norte-americanas às comunicações realizadas, o MCTIC firma uma parceria com a Cisco. Nenhum questionamento é realizado. O colonizado se comporta como o esperado pelo colonizador. Brasil, uma grande colônia digital.
*Sergio Amadeu da Silveira é professor da Universidade Federal do ABC. Doutor em Ciência Política e pesquisador de redes digitais e tecnologias da informação.