Por ERIVALDO COSTA DE OLIVEIRA*
A suposta geografia do voto é um dos elementos centrais de reativação dos ditos embates políticos, com forte poder de retirar toda a complexidade do Brasil
O primeiro turno das eleições ocorreu em 30 de setembro. Mal saiu o resultado – que confirmou a vitória de Lula (48,12%) sobre Jair Bolsonaro (43,47%) – começou um debate sobre qual parte do país encarna os valores mais altos e mais baixos do Brasil. Espaços para xenofobias direcionadas tanto ao Norte/Nordeste quanto ao Sul/Sudeste ou mesmo para a região central do país marcaram forte presença no debate público. A depender de qual lugar do espectro político se fala, determinada porção se torna a banda podre da nação, a porção civilizada ou bárbara, atrasada ou progressista, nacional ou estrangeira, socialista ou fascista, salvadora ou algoz.
Essa forma de debater os resultados eleitorais reativa antigas disputas sociais de expressão geográfica que perpassaram a formação brasileira: regionalismos de distintos quadrantes do território. Neste sentido, escreveu uma eleitora de Jair Bolsonaro: “Nunca fui ao Nordeste e agora sei que jamais irei. Muita praia faz mal para os neurônios e transforma as pessoas em energúmenos. Não dá. Cansei. Se optam pelo atraso e pela malandragem, que fiquem por lá, mergulhados em seu atávico atraso. Atrapalham o país. Não é fácil admitir que é a ignorância a definir o destino de um país que tem pressa em crescer, travando seu avanço em direção ao sucesso econômico e social”.
A apoiadora do atual presidente ainda complementa em outra postagem: “O Nordeste tem que se explicar por qual motivo, sendo a região mais pobre do país, resolveu eleger sozinho aquele que sempre o manteve preso no cabresto, jogando apenas migalhas enganosas. (…) O Nordeste, neste momento, com a devida vênia, é a grande vergonha nacional”. Outra apoiante expressou em um pequeno vídeo: “Esse povo da Bahia que vota no Lula e depois cai aqui na nossa cidade pedir emprego, que vocês fechem as portas das empresas de vocês, porque o que mais tem é carteira que a gente assina nas empresas desses desgraçados dos nordestinos que lá passam fome e vêm aqui vender rede na praia, pedi servente de pedreiro, de emprego e ficar dormindo na frente de nossos estabelecimentos. Então, se eles escolheram o Lula, eles que fique lá no estado deles votando pro Lula e comendo o bolsa família deles. Como eu como contadora, vou exigir que o empresário pague imposto se o dinheiro é roubado?”
Também digno de nota, nesse bojo, é o que fez o comentarista Rodrigo Constantino. Ele postou, em uma de suas redes sociais, o seguinte parecer: “Temos uma conclusão clara nessas eleições: a parte do país que mais recebe assistencialismo decide sobre a parte do país que mais produz para o PIB”. Subposto a tal opinião, um mapa do espaço brasileiro seccionado em duas porções, um Nordeste vermelho identificado pela toponímia Cuba do Sul contraposto a um restante do território nacional bege e identificado com topônimo Brasil.
Posições com argumentos contrários são fáceis de encontrar. Uma delas, em tom separatista, praieiro e culinário, diz: “Podem dividir o Brasil, eu já tô do lado certo mesmo. Aqui não falta forró, cuscuz, carne de sol, pamonha, praia e gente boa e sem frescura”. Outra, colocando elementos educacionais e históricos que assinalam a origem do país, escreve: “Nordeste. Região Brasileira onde não por acaso, estudantes vencem Olimpíadas de Física, Matemática, História, Astronomia. Orgulho de ser nordestino! É daqui onde saiu os maiores talentos em todas as áreas desse país. E foi aqui onde tudo começou há mais de 500 anos!”.
Na mesma linha, um importante intelectual petista escreve, ou melhor, replica: “Somente 10 alunos, no Brasil inteiro, tiraram 1000 na redação do ENEM. 7 são do Nordeste”. Em tom mais pesado, outro defensor da região pontua: “Nem Noé carregou tanto animal quanto o Nordeste carrega o Brasil”. Para essa batalha, até os atores de Hollywood foram recrutados. A foto da cerimônia do Oscar de 2022, na qual Will Smith esbofeteia Chris Rock, foi apropriada para representar – a partir da identificação dos atores por nomes de regiões – o Nordeste batendo no Sul. Por fim, um importante filósofo da cena de esquerda, em análise dos resultados das eleições (Vladimir Safatle e a reorganização da esquerda no segundo turno/ Contragolpe entrevista, canal The Intercept Brasil), apesar de fazer uma fala com interessantes nuances, não deixa de marcar: “o Nordeste salvou”.
Esses jogos de ataques e contra-ataques, golpes e contragolpes, abono ou desabono (seja por figuras anônimas, por figuras públicas; seja por pessoas com alto grau de escolarização, por pessoas com baixo grau de escolarização) denotam, dentre outras coisas, como antigas pendengas dão novamente as caras travestidas de novas roupagens e, além disso, revelam o poder das romantizações sobre si e sobre os outros.
Nesse contexto, a geografia do voto, ou melhor, a suposta geografia do voto é um dos elementos centrais de reativação dos ditos embates, cujos mapas – a depender de qual parte do espectro político se fala – mostra de forma irretocável a região saudável ou doente do país. Dificilmente os discursos levantados aqui se movem alheios a um imaginário cartográfico das eleições.
Muito sintomático disso foi a live “Eleições de 2022: os dois Brasis”, do canal Educação Criativa oficial, na plataforma YouTube, em que três professores expositores buscam debater política e geograficamente os resultados da eleição. Explicações cujas linhas centrais se reproduzem a seguir. O primeiro debatedor começa explicitando que existem dois Brasis: o da civilização e o da barbárie. O segundo reforça o argumento do primeiro ao expor um mapa que expressa, por maioria simples e por recortes estaduais, os resultados do primeiro turno, identificando, em cor vermelha, os estados onde Lula ganhou e, em cor azul, onde Bolsonaro venceu.
E, a partir da peça cartográfica, assinala que “a geografia do voto (…) explica a realidade brasileira” já que “O Nordeste é o Brasil (…) São Paulo é uma cidade totalmente cosmopolita e o Rio de Janeiro também, não à toa que o Nordeste significa a grande resistência da sua cultura regional, da brasilidade (…)” cuja revelação se anuncia na geografia do voto e posteriormente nos ataques de xenofobia que a região sofre por conta de outras partes do país. Em seguida, o primeiro expositor volta a intervir: “O Brasil se restringe ao Norte e ao Nordeste, principalmente a essas duas regiões, o resto está no território, mas não é do território, o resto não tem identidade cultural. A identidade cultural brasileira está no Nordeste”.
Complementa ainda o primeiro expositor: “O Nordeste, (…) a maior parte do Norte (…) voltou com Lula porque (…) esse é o Brasil, esse é, de fato, o Brasil, esse é o Brasil com brasilidade. E a cultura é o reflexo do Brasil (…)”. O terceiro expositor não foge à tônica anterior defendida. Nesse sentido, começa enfatizando: “O Nordeste está comprometido com o Brasil. Ele provou isso, é geográfico, é histórico”. E em seguida pontua: “o que se (…) apresentou em fatos (…) é ciência (…) exata, porque (…) [se] apresentou mapa [que] reflete bem o que é ser brasileiro ou não”. Diz ainda: o mapa “faz perceber que algumas pessoas estão no Brasil apenas por interesses próprios, não são brasileiros. O Nordeste nos provou”.
Na sequência da apresentação, o terceiro expositor traz à tona a candidatura de Ciro Gomes, não colocando na mesa que – por incrível que pareça – o candidato cearense derrotado é nordestino, mas apenas um brasileiro e, claro, não verdadeiramente brasileiro. Não abona o expositor o fato de que Ciro Gomes nasceu em Pindamonhangaba, São Paulo, já que seus pais são cearenses e com cinco anos apenas se mudou para Sobral, Ceará, onde cresceu, formou-se e iniciou sua carreira política e, além do mais, o próprio Ciro Gomes se reivindica nordestino. Como se percebe, o percurso argumentativo do expositor ao rondear o fato da identidade regional de Ciro Gomes é sacrificá-la em prol da verdade do mapa. Em realidade, essa é a substância da argumentação de toda live: restringir a verdade da identidade brasileira à geografia do voto a Lula. A cartografia, neste sentido, é a mais pura expressão da verdade do que se fala. É o chão concreto da realidade, ou se quiser, do discurso.
O problema desse tipo de verdade ancorada na cartografia é que os mapas são um tipo de representação da realidade e não a própria realidade. No jogo dos embates políticos e para além desses embates, a cartografia pode desempenhar um papel de retórica, ou seja, os mapas podem ser veículos de mentiras, equívocos, mitologias, erros conscientes e inconscientes.
Assim, os mapas veiculados na imprensa nas primeiras horas e dias dos resultados das eleições, ao dividirem o país em duas porções, um norte vermelho (Norte, Nordeste, acrescido de Minas Gerais e Tocantins) contraposto a um sul azul (Sul, Sudeste e Centro Oeste) ou qualquer outra cor, além de apontarem um chão cartográfico dos discursos analisados acima, não se sustentam. Primeiro, o que está se expressando é uma variável demográfica (voto) em uma métrica territorial (área espacial dos estados ou regiões). O que gera enormes distorções: para focar nos extremos do país, os gigantes territoriais vermelhos estados do Amazonas e Pará, onde Lula venceu, são apenas, respectivamente, o 19° e o 10º colégios eleitorais no ranqueamento do número de votantes; em contrapartida, o diminuto Rio Grande do Sul, onde Jair Bolsonaro predominou, é o 5° colégio eleitoral.
E mais, a somatória dos votantes dos dois estados do Norte não atinge o quantitativo dos votantes do estado sulista. Segundo, para complicar a análise, em Manaus, capital do Amazonas vermelho, maior metrópole do Norte e 8º colégio eleitoral (em termo municipal), Jair Bolsonaro predominou. Assim como também predominou no Rio Grande do Sul, conforme se viu, porém com uma diferença para Lula de menos de 8%. Em Maceió, capital do Vermelho Alagoas, o adversário de Lula sagrou-se campeão, apesar de ser derrotado no estado, cuja localização está no vermelho Nordeste.
Dinâmicas similares, que não podem ser captadas pelo bicoloríssimo da cartografia expressando os vencedores por maioria simples em âmbitos espaciais, aconteceram em São Paulo e no Rio de Janeiro. Em São Paulo, o maior colégio eleitoral do país, Jair Bolsonaro ganhou, porém com pouca diferença em relação a Lula. O mesmo aconteceu no Rio de Janeiro, estado que concentra o segundo maior número de votantes país.
Para consolidar o conjunto de distorções enfocadas, no primeiro caso, subdimensiona-se ou se superdimensiona a variável demográfica (número de pessoas, indivíduos, votantes) em detrimento da variável territorial; no segundo caso, ao representar o vencedor por maioria simples nos recortes espaciais, acaba-se por esconder os votos do perdedor nos recortes espaciais do vencedor.
Em conclusão, se os mapas são o chão cartográfico dos discursos, conforme se defendeu, o que está em circulação, para além de mapas e discursos, são ideologias geográficas com forte poder de retirar toda a complexidade do país ao reduzir o Brasil a regiões fascistas e socialistas, brasileiras e não brasileiras, humanas e não humanas, civilizadas e bárbaras; ao mais esconder que revelar as disputas eleitorais no território. Nesse contexto, se se quer arranhar a complexidade das agruras que assolam o país, há que se propor leituras mais sofisticadas, inclusive cartográficas.
Salvo se se contentar com uma cartografia grosseira que, na melhor das hipóteses, tem o poder de gerar, à direita, adeptos dos velhos determinismos geográficos e, à esquerda, romantizadores ou autoexilados na Europa (de onde alguns escrevem cartinhas/livros de Paris) porém sem poder de compreender os problemas que atingem o Brasil.
*Erivaldo Costa de Oliveira é professor de geografia na UESPI.
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