Sociologia do direito

Terry Winters, Título desconhecido, 2000.
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Por FRANCISCO PEREIRA DE FARIAS*

Comentário sobre o livro recém-lançado de Alysson Leandro Mascaro

A importância desta obra de Alysson Mascaro – pesquisador de presença consolidada nos campos acadêmico e político – mostra-se por sua dupla função: estimular os estudos de ciência social na formação de especialistas do direito; e favorecer o tema do direito como uma área de investigação da ciência social. Isto porque, de um lado, a tradição dos cursos de direito no Brasil, como indicou Mascaro, consiste em dar à ciência social um enfoque de filosofia social, complementar aos estudos das doutrinas jurídicas; e, de outro lado, as ciências sociais tendem a aceitar um papel restritivo de tratar apenas sobre a aplicação ou a efetividade do direito, sem avançar sobre a explicação científica de construção da norma jurídica como tal.

Ora, entre a filosofia jurídica e a ciência social, como apontou Georges Gurvitch, não deixa de haver uma relação dialética: complementaridade, oposição, polarização.[i] É isto que, em síntese, o leitor vai acompanhar e apreciar ao longo de Sociologia do direito. Os seus capítulos estão organizados em três seções, segundo um critério histórico-epistemológico: as pré-sociologias jurídicas (antiga, medieval, moderna); as sociologias jurídicas clássicas (Comte, Durkheim, Weber, Marx); as sociologias jurídicas contemporâneas (internacionais e nacionais). Por fim, tem-se, em capítulo específico, a pesquisa de Mascaro sobre a sociedade e o direito no Brasil.

Evidentemente, não cabe aqui a exposição de uma síntese de 11 capítulos e de uma introdução na qual o autor apresenta as noções de sociologia e sociologia do direito. Limitar-nos-emos a alguns comentários, com o objetivo de enfatizar o ponto acima indicado: a reconstrução científica, e não doutrinal, da norma jurídica. Trata-se de abordagem explorada por E. Pachukanis, em A teoria geral do direito e o marxismo, sobre a qual apoia-se, em boa medida, a reflexão de Alysson Mascaro.

 

O direito em Marx

Mascaro assim expõe o cerne da contribuição de Marx à análise científica do direito: “se a circulação de mercadorias tem na acumulação seu sentido, então o sentido do direito é também o de permitir a acumulação. O direito é a forma de relação dos agentes do capital. Se o comércio deixa patente a forma de relação jurídica entre os que trocam, na produção isso se torna mais decisivo. A exploração de um ser humano por outro, de um trabalhador por um burguês, é intermediada por um contrato de trabalho. Por meio dele, o trabalhador juridicamente se submete ao burguês, voluntariamente, ambos em posição de igualdade para aceitar ou não o vínculo. O contrato de trabalho é o coração da subjetividade jurídica: não é apenas a circulação dos produtos, mas a venda de força de trabalho, que faz a forma de relação social ser jurídica” (p. 115).

A modificação do governo abstrato, que deve se transformar em Estado burguês, não pode ocorrer neste mesmo governo abstrato, pois como mandatário do interesse coletivo ele apenas institui a lei, que, persistindo em sua própria forma histórica, eterniza-se enquanto um tipo de direito. Nem também pode a modificação originar-se de um segundo ato de codificação, a reforma constitucional, pois esse ato apenas retranspõe as normas básicas do tipo de direito. A modificação precisa ocorrer na lei instituída pelo constituinte, porém não em seu sentido, pois ela declara sempre uma relação de equivalência, a lei mantém o sentido do justo.

A modificação só pode originar-se, portanto, em sua aplicação, ou seja, no gozo do direito. Para obter um resultado desigualitário no uso da lei, o sujeito de direito precisa encontrar dentro da esfera jurídica, nas leis particulares, uma lei cuja aplicação tenha a característica peculiar de ser a fonte de interversão da igualdade (forma) em desigualdade (conteúdo). O sujeito de direito encontra dentro da esfera jurídica essa lei, a lei trabalhista ou o contrato de trabalho.

Para que o sujeito de direito encontre na esfera jurídica a lei contratual do trabalho, algumas condições precisam ser preenchidas. Como a aparência desta lei trabalhista é o tratamento igual aos proprietários de mercadorias, a declaração da equivalência de salário e uso da força de trabalho, a primeira condição é que o possuidor de força de trabalho, enquanto é desta o proprietário privado e, logo, venha declarado um sujeito de direito ou pessoa (livre), reitere a crença na liberdade (incondicionalidade) do direito de propriedade. Ora, a continuidade desta crença na forma incondicionada ou categórica da lei é determinada não pela esfera jurídica mesma, mas de fora dela, pela esfera cultural, as crenças religiosas e filosóficas. No mundo moderno, as teologias da revelação e as filosofias deístas difundem o axioma de que todo indivíduo humano é livre.[ii]

A segunda condição da lei do contrato de trabalho é que o proprietário da força de trabalho, enquanto detém os mesmos direitos de propriedade que o proprietário dos meios de produção ou o dono do capital, reproduza a crença no caráter igualitário do direito de propriedade capitalista. Da mesma forma, a permanência desta crença na forma igualitária da lei é determinada não pelo próprio dispositivo do direito, mas sim pelas práticas culturais. Tanto as teologias quanto as anti-teologias modernas veiculam o axioma da origem igualitária dos seres humanos, ou por vontade divina (teologias) ou por destino social (anti-teologias).[iii]

Uma terceira condição da lei do contrato de trabalho é o encontro entre, de um lado, o governante profissional e, de outro, os governados formalmente iguais entre si. Esse encontro resulta de um longo processo histórico: por um lado, a especialização, a regularidade e a complexidade das atividades de governo e, por outro, a expansão dos direitos individuais, especialmente do direito de propriedade privada dos meios de produção, que se completará com o início da era moderna capitalista. Vejamos mais de perto esta lei capitalista.

O contrato da compra e venda da força de trabalho é, ao mesmo tempo, verdadeiro e fictício. Na esfera da circulação, a força de trabalho comporta-se como mercadoria; ela é comprada pelo seu valor de troca, ou seja, a quantidade de valor dos bens necessários à sua reprodução. Mas quando entra na esfera da produção, a força de trabalho deixa de ser uma mercadoria; ali ela não transfere exatamente o seu valor ao produto final, como o faz qualquer mercadoria. A força de trabalho passa a esse produto um valor a mais do que fora contratado.[iv]

No entanto, esta relação de exploração é ocultada aos olhos dos agentes sociais. Pois a conversão do sobretrabalho em novo valor de troca só se concretiza com a venda do produto. Ora, como a realização da mais-valia se dá na esfera da circulação, as classes sociais adquirem a ilusão de que o lucro, o sobrevalor relativo ao capital inicial, surge como uma espécie de bônus conferido à empresa capitalista por toda a coletividade. Mas de onde nasceria esse poder dos consumidores de valorizar o capital? Eis o aparente mistério que sustenta a sociedade burguesa.[v]

A aparência institucional da lei trabalhista é, pois, o tratamento igualitário aos possuidores de mercadorias, o que supõe o direito de propriedade pelo possuidor da força de trabalho. Mas a realidade estrutural do contrato de trabalho é o tratamento igual aos produtores, em função de preservar os papeis de proprietário dos meios de produção ou empresário capitalista e proprietário da força de trabalho ou trabalhador assalariado. Tal realidade concretiza o caráter da lei jurídica como um imperativo funcional, que tende a estabilizar os papéis de uma forma histórica de sociedade, a sociedade capitalista.

 

As sociologias do direito contemporâneas críticas

(1) Evguiéni Pachukanis

Para Mascaro, E. Pachukanis “desenvolverá a mais consequente e científica visão a respeito do direito. Toda a novidade de sua descoberta se inicia com seu rigor metodológico, calcado em Marx” (p. 161). O núcleo de sua contribuição é apresentado em citação do próprio Pachukanis: “os pressupostos materiais da comunicação jurídica, ou a comunicação entre sujeitos de direito, foram elucidados por Marx no livro I d’O capital. É verdade que ele o fez somente de passagem, na forma de sugestões muito gerais. Contudo, tais sugestões ajudam a compreender o momento jurídico nas relações entre as pessoas bem melhor que vários tratados sobre a teoria geral do direito. A análise da forma do sujeito deriva diretamente da análise da forma da mercadoria” (p. 161).

O imperativo funcional institucionalizado tem início em sua forma concreta – reciprocidade na produção, para satisfação de necessidades materiais; reciprocidade no casamento, para o gozo de carências afetivas e reprodutivas etc. – e se desenvolve numa fórmula abstrata: o dever da reciprocidade, para estabilização das relações sociais. Chamemos essa fórmula abstrata de lei fundamental ou princípio jurídico. Assim, a normatividade que se concretiza na reiteração das práticas é mediada pelo princípio jurídico, cujo teor de verdade assumirá diferentes justificativas, relativas aos períodos históricos da coletividade.

Na coletividade cindida em classes sociais – de um lado, os poderosos (ricos) e, de outro, os fracos (pobres), na qual tem-se de dispor da profissionalização da violência legitimada (Estado), pois o domínio de classe precisa de regras sofisticadas, que desestimule a subversão junto aos pobres, e de armas regulares, frente ao elevado grau de conflitos –, o conhecimento dos dominados será de tipo religioso, a forma de crença do paganismo, do cristianismo etc.[vi] Dado que o desejo dos poderosos é oprimir, isto é, fazer parecer que as leis servem às aspirações de todos, e não à ordem que privilegia os interesses dos ricos, torna-se aconselhável que a justificativa da norma jurídica se apoie, mais que a tradição ancestral ou o mito, na forma de conhecimento tida por absoluta, incondicionada – o discurso religioso.

O legislador estatal transforma, então, o imperativo funcional – “respeita a reciprocidade, a fim de preservares os papeis de proprietário dos meios de produção e trabalhador destes expropriado” – num imperativo incondicionado ou categórico. A fórmula do imperativo categórico, própria da lei da coletividade com Estado e propriedade particular dos meios de produção, diz então simplesmente: “tu deves respeitar a reciprocidade!”. Fórmula essa adequada aos governados convertidos em “cidadãos” (sob o governo estatal), tanto os patrões proprietários como os empregados expropriados, pois próprias dos sistemas de crenças religiosas são as representações incondicionadas, divinas. Tanto as expropriações (escravo, servo, proletário) requisitaram a vigilância divina (a mais perfeita vigilância), quanto a divindade exigia os sacrifícios dos expropriados (a frustação em suas aspirações e necessidades).

 

(2) O marxismo ocidental

Alysson Mascaro identifica por “marxismo ocidental”, no plano da sociologia, um conjunto de três linhas de pensamento crítico: o debate italiano, tendo em Antonio Gramsci seu mais importante teórico; um núcleo de pensadores ocidentais ligados à experiência soviética, como Georg Lukács e Ernst Bloch; os intelectuais com uma plataforma de teoria e pesquisa bastante coesa, a Escola de Frankfurt.

De acordo com Mascaro, para Gramsci, uma sociedade que consiga estabelecer um ciclo hegemônico, no qual as classes dirigentes e as dirigidas operem sob mesmo diapasão, forma um “bloco histórico”. Instituições estatais, jurídicas, a repressão e a liberdade negocial estabelecem um padrão que sustenta a reprodução social (p. 168).

O conjunto de leis derivadas das normas básicas ou a Constituição de uma comunidade política varia de acordo com os interesses específicos da força social hegemônica. Pela interiorização dos valores básicos da ordem social na vida familiar e educacional, a socialização política, a origem social, as pressões dos grupos mais poderosos – todos estes fatores induzem o legislador a formular a lei na perspectiva da força social que conquista a hegemonia, ou seja, a capacidade em transformar os seus interesses específicos em objetivos gerais. A tábua de leis ou a Constituição se apresenta, então, como um conjunto político-jurídico, que deriva de um processo social regular, ao mesmo tempo em que intervém em vista de configurar e estabilizar a dinâmica desse processo social.[vii]

Em primeira fase do capitalismo – na qual prevalecia os interesses do capital mercantil, uma vez que este capital controlava as cooperativas e as manufaturas na indústria nascente e dispunha de maior influência no direcionamento das políticas econômicas (monetária, fiscal, creditícia, cambial) do Estado, resultando disso tudo às atividades comerciais um rendimento superior frente às atividades produtivas –, o princípio da igualdade jurídica, concebido como uma lei de natureza, conferia às Constituições uma fundamentação natural, pela qual as leis do sistema jurídico assumem o caráter de hipóteses formais, ou seja, não necessariamente descrevem uma realidade histórica.

É que não apenas convinha ao capitalismo mercantil as incertezas sobre o significado de humano nas sociedades primitivas e o sentido de natureza no ser humano – uma vez que se reforçava, por um lado, a violência do colonialismo e, por outro, a exploração do trabalho de mulheres e crianças –, como também facilitava o trabalho de racionalização pelos praticantes do direito, dado o teor axiomático dos princípios, tal como formulados pela corrente “contratualista” (Hobbes, Locke, Rousseau).

Com a passagem ao capitalismo industrial, a partir da instalação do sistema de máquinas na empresa industrial e o redirecionamento das políticas estatais em seu benefício, as leis de natureza foram convertidas em princípios materiais, expressando as influências das doutrinas utilitarista (Bentham) e socialista (Saint-Simon). Os interesses industriais não podem operar com a expectativa de superexplorar a força de trabalho, pois isto bloqueia a passagem da mais-valia absoluta (jornada de trabalho) à mais-valia relativa (produtividade) como base da rentabilidade da empresa. Nesse sentido, torna-se funcional à contenção do ímpeto de lucros imediatos da fração industrial e à indução das empresas a adotarem as estratégias de inovação técnica e de novos métodos de trabalho uma política de ênfase nos princípios materiais do direito, normalizando o bem-estar da classe trabalhadora.

Com relação a Lukács, em História e consciência de classe, sintetiza Mascaro: “um dos grandes exemplos de reificação da sociedade capitalista reside no direito. O raciocínio jurídico também se funda dessa lógica pela qual tudo vai se tornando coisa. Ao chegar ao positivismo, o direito opera mecanicamente, como se a atividade jurídica fosse maquinal, normatizada, e como se os problemas jurídicos e sociais fossem automáticos, processados de maneira indiferente, cuja maior mensuração seja a monetária” (p. 169-70).

A lei tem sido uma coisa que circula, já que todos se informam ou deveriam se informar sobre ela, mas que guarda enigmas. O seu caráter enigmático se dá, em sociedades com Estado e classes sociais, não apenas porque essa coisa tende a eternizar aos olhos dos governados uma forma de reciprocidade que é historicamente particular, mas também pelo fato de ocultar seu caráter funcional e aparecer enquanto de origem supramundana, na forma do imperativo categórico.

A teoria do direito em Immanuel Kant[viii] conteria na prática o resultado sobre o verdadeiro caráter da norma jurídica, à medida que o filósofo alemão afirma serem os imperativos do direito apenas “conforme o dever”, e não “por dever” (incondicional). Em outras palavras, sob a forma (aparência) do imperativo categórico, o que está de fato na lei é o imperativo condicionado ou funcional. Ora, o imperativo da forma sujeito consiste, basicamente, no imperativo incondicionado. Assim, em sua essência, a norma jurídica não se põe como supra-histórica, pois, condicionada. O direito da forma sujeito tende a relacionar-se com o governo especializado, profissional e permanente – numa palavra, o Estado. Somente em coletividades com Estado (opressão) e classes sociais (exploração do trabalho) torna-se funcional essa forma jurídica.

 

(3). A Escola de Frankfurt

Em mais uma de suas sínteses agudas, diz-nos Mascaro sobre as teses destes autores (Horkheimer, Adorno, Neumann): “Um dos grandes artefatos desta razão instrumental, que torna a sociedade capitalista plenamente dominada, é o direito. A racionalidade é técnica. A exploração e a dominação não se fazem apenas quando se vai contra o direito, mas, principalmente, pelo próprio direito. A propriedade privada, de um contra todos, a extração de mais-valor do trabalho assalariado, a prisão, a segregação, a violência de classe organizada, todas essas manifestações, socialmente, não são apenas atentados contra o direito e as leis, mas são o próprio direito e as leis. A exploração e as dominações sociais são procedimentos de força bruta, violência física e coerções econômicas que vão se estabelecendo em um processo refinado de institucionalização social do domínio. Nas faculdades de direito se ensinam complexas e difíceis operacionalidades jurídicas para que a sociedade seja dominada, mas de tal modo que se chame a tudo isso de racionalidade jurídica e ordem” (p. 176).

A propriedade social – terras, oficinas, transportes etc. – é sempre coletiva, pertence à comunidade política. Um indivíduo ou uma família que primordialmente explorasse novos produtos sem o respaldo de sua comunidade cairia facilmente sob a cobiça e a ameaça de outros. Essa comunidade, por meio de sua liderança, transfere ou institucionaliza a posse dos recursos comuns aos seus membros particulares, a fim de que indivíduos e grupos aí desenvolvam as potencialidades produtivas segundo a divisão de trabalho social.[ix]

Torna-se evidente que a chamada propriedade privada dos meios de produção é em essência uma violência simbólica, sancionada pelo código estatal.[x] Pois, o indivíduo ou o grupo só tem o direito à posse daquilo que primordialmente pertence à coletividade. Então, como é possível que aquilo que em realidade é uma concessão de posse – o controle dos meios de produção – converta-se na forma ou a aparência de uma propriedade privada? Essa distorção se instaura porque a formação social, ao enfrentar o problema de redistribuir os seus recursos a cada nova geração, foi induzida a institucionalizar o dispositivo de herança ao recurso concedido.[xi] Formou-se com isso a impressão de que um lote de terra produtiva, uma oficina industrial, um transporte pluvial pertence a um indivíduo ou a uma família tal qual pelo indivíduo é apropriado o seu corpo físico e pela família, a sua moradia.

 

(4). Louis Althusser

Por fim, Louis Althusser é apresentado como o autor em transição à constituição do “novo marxismo” dos dias de hoje. Após uma ponderada exposição da abordagem althusseriana da ideologia e da relação entre os principais aspectos dessa temática (humanismo, subjetividade, inconsciente) e o direito – parte na qual se apoia em trabalhos de seus orientandos (Juliana Magalhães, Pedro Davoglio, Lucas Balconi) na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo –, Mascaro assim a resume: “propondo que a ideologia seja material, derivada das relações sociais e produtivas dos sujeitos, Althusser permite vislumbrar que o direito tem papel ideológico fundamental ao capitalismo. Como todos se relacionam intermediados pelas mercadorias, todos se relacionam como sujeitos de direito. Com isso, a percepção da liberdade negocial e da igualdade perante a lei é a base ideológica mais próxima da própria materialidade do capital. Se a religião e o conservadorismo moral são muito aderentes ao capitalismo, a ideologia jurídica é ainda mais recôndita. É até eventualmente possível um capitalismo de subjetividades ateias e progressistas em costumes, mas todas essas subjetividades compram e vendem mercadorias e força de trabalho. Então, a ideologia do sujeito é o ponto central ao capitalismo, sendo-lhe a ideologia determinante” (p. 195).

Sabe-se que a predisposição para a crença na norma sancionada nasce para além de condições aparentes – o interesse, o costume – que essa norma suscitaria como causa. Essa causalidade se encaminha ao trabalho de se abstrair o que aparentava ligar, de um lado, a obediência à norma e, de outro, os condicionantes visíveis, de caráter concreto, e de se fixar o aspecto abstrato dessa condicionalidade, ou seja, a norma enquanto tal. Se pormos de lado a correlação da predisposição de seguir a norma com o interesse e o costume, ficamos com a implicação recíproca da predisposição à obediência com a norma pura. Assim, a predisposição ao respeito da norma espontânea torna-se o efeito de uma causa abstrata – a norma simplesmente ou a normatividade.

As funções de governante e governado exigem, assim, a submissão à normatividade – espontânea, implícita, inconsciente –, condicionante da reiteração da prática de cada um. A norma primeira assumirá a forma do imperativo funcional: “cada um deve obedecer à reciprocidade, em vista da utilidade de sua função no tipo de ordem coletiva”. Trata-se de indicar o meio, o dever da reciprocidade, a se atingir o fim, a satisfação de carências em dada época histórica. Mas o trabalho de tornar visível, explícita, consciente a norma – numa palavra, a sua institucionalização – distingue o governante (líder) do governado (liderado). A arte de dizer com eficiência e eficácia a norma qualifica o discurso do líder frente ao discurso do liderado, uma vez que tal arte requer a organização e o treinamento específicos ao seu desempenho.

Temos, pois, um ponto sensível: a proposição de que a norma tem um duplo caráter, abstrato e concreto. A norma abstrata está pressuposta na norma concreta que orienta a efetivação do serviço governamental. Isto, do mesmo modo que o trabalho abstrato é condição implícita do trabalho concreto na produção de mercadoria.

A norma em sua forma institucional, presente nos serviços governamentais, é a manifestação visível do sentido da norma, uma vez que a norma institucional diz respeito ao “índice” (forma denotativa) da norma, e não à “norma enquanto tal” (forma conotativa). Assim, a forma conotativa do direito, chame-se de norma estrutural, tem uma relação de causa específica, metonímica, com a sua forma denotativa, a norma institucional. A norma institucional (concreta) torna-se, pois, o signo da existência da norma estrutural (abstrata).

Althusser referir-se-ia a este duplo caráter do direito através dos termos “aparelho jurídico” (a norma estrutural), e “ideologia jurídica” (a norma institucional): “é claro que não podemos mais considerar tão somente o ‘Direito’ (= os Códigos), mas este como uma peça de um sistema comportando o direito, o aparelho repressivo especializado e a ideologia jurídico-moral”.[xii] Daí, a pertinência da afirmativa de Mascaro: “ao produzirem, controlarem e sustentarem as positividades que permitem a reprodução do capitalismo, os aparelhos ideológicos podem ser considerados estruturais à sociedade” (p. 194).

*Francisco Pereira de Farias é professor do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal do Piauí. Autor, entre outros livros, Reflexões sobre a teoria política do jovem Poulantzas (1968-1974) (Ed. Lutas anticapital).

 

Referência


Alysson Leandro Mascaro. Sociologia do direito. São Paulo, Atlas, 2021, 312 págs.

 

Notas


[i] G. Gurvitch. Dialética e sociologia. Lisboa: Dom Quixote, 1971.

[ii] “Encontramos ainda entre nós os cristãos zelosos, cuja alma religiosa preza se alimentar das verdades da outra vida: eles vão agir sem dúvida em favor da liberdade humana, fonte de toda grandeza moral” (Alexis deTocqueville. De la démocratie en Amérique. Paris: Gallimard, 1986, p. 48).

[iii] “O cristianismo, que tornou todos os homens iguais diante de Deus, não repugnará de ver todos os homens iguais perante a lei” (Tocqueville, 1986,p. 48).

[iv] Cf. K. Marx.O capital: crítica da economia política. Vol. 1, T. 1.São Paulo: Abril Cultural, 1983.Capítulo 4: transformação do dinheiro em capital.

[v] Cf. Marx, 1983, vol. 3, tomo 2, capítulo 48: a fórmula trinitária do capital.

[vi] Cf. Niccolò Machiavelli. O Príncipe. Brasília: UNB, 1987. Ver também Gérard Namer. Machiavel ou les origines de la sociologie de la connaissance. Paris: PUF, 1979.

[vii] Cf. Umberto Cerroni. Política. São Paulo: Brasiliense, 1993. Cap. 5: Instituições. Afirma Cerroni: “qualquer lei é articulada por dois elementos interconectados: o elemento imperativo consistente numa vontade munida de força e o elemento cultural consistente numa disposição racional, emanada por uma autoridade legitimada” (p. 157).

[viii] Cf. Immanuel Kant.Crítica da razão prática. Lisboa: Edições 70, 1986.

[ix] Tem-se o pensamento pioneiro de Thomas Hobbes, em O Leviatã, sobre este ponto.

[x] “A sociedade humana [civil-estatal] surge, para Rousseau, não para melhorar a natureza humana, mas, exatamente para corrompê-la. Por meio do roubo do que era comum erigiu-se a propriedade privada e a civilização” (Mascaro, 2022, p. 54).

[xi] Tem-se a crítica de Émile Durkheim, em Lições de sociologia, ao dispositivo da herança.

[xii] L. Althusser. Sur la reproduction. Paris: PUF, 2011, p. 201.

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