A guerra contra o povo palestino – análise de múltiplas dimensões

Imagem: Mohammed Abubakr
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Por REMY J. FONTANA*

O genocídio pode já estar em curso, em determinadas situações, antes que dele tenhamos completa percepção, quando então será tarde demais

1. Terra e religião

A exclusividade dos judeus como destinatários da Terra Prometida é uma controversa teológica e exegética de textos de diferentes fés. Há de início um questionamento sobre a exclusividade da descendência racial de Abraão. Os filhos deste consistem em judeus e gentios que vivem em todo o mundo: romanos, gregos, capadocianos, árabes – e na medida em que pertencem a Cristo, também pertencem a Abraão.

 A promessa de Deus, chega a Abraão e sua semente e esta semente é Cristo.  Assim, Cristo é o verdadeiro herdeiro de Abraão e suas promessas. A referência à Cristo remete ao mundo inteiro e não a uma restauração da Judéia ou uma instauração política da Terra Santa[ii].

Desta forma resulta inconsistente as referências a uma escolha ou preferência divina, em detrimento a ideia de que Estados devem se constituir no pressuposto de que todos são iguais perante a lei.

Ainda que bem estabelecida sua ancestralidade árabe, os palestinos se consideram descendentes não apenas dos conquistadores árabes do século VII, mas também de povos originais que moravam no país desde os tempos imemoriais, incluindo os antigos hebreus e os cananeses antes deles.

Por outro lado, se fosse pertinente a pretensão dos judeus sionistas de que a terra palestina lhes pertence, pois que a habitavam há 2 mil anos, isto seria o equivalente, segundo o cientista político Norman Finkelstein, alguém bater à porta de sua casa e dizer que ali morava há 2 mil anos atrás, e no dia seguinte enviar a polícia para te expulsar.

Os aspectos teológicos e históricos aqui mencionados apenas de passagem como substrato das tensões, disputas e conflitos contemporâneos na região, nos dão uma noção de sua complexidade.

Na esteira do caso Dreyfus (França, 1894-1906), e do intenso escândalo político e judicial que se seguiu e que dividiu a opinião pública, o antissemitismo ressurge com força. É neste contexto que o  jornalista austríaco Theodor Herzl publica em 1896 o livro O Estado Judeu, e em 29/08/1897 acontece na Basileia o  primeiro congresso sionista que funda a Organização Sionista Mundial, tendo Herzl como presidente[iii].

Este é o marco fundacional, o ponto de partida do movimento sionista moderno, cujo eixo motivacional e objetivo político estratégico é o estabelecimento de um Estado independente na Palestina.

No final de seu livro Herzl escreveu “Os judeus que quiserem terão seu Estado. Poderão viver, finalmente, como homens livres em seu próprio solo, e morrer em paz em seus lares.”

A previsão, quem sabe uma profecia esperançosa de Herzl ficou, como demonstraram os acontecimentos subsequentes, bastante comprometida, pois o solo em que se estabeleceram não era exatamente seu, e nem todos os judeus estão podendo morrer em paz em seus próprios lares. Nem, aliás, e especialmente seus vizinhos árabes, que além de perderem suas terras, perderam sua autonomia e liberdade e suas vidas de forma nada pacífica. 

De qualquer forma, desde o início do século XX com o fim do Império Otomano e com o subsequente Mandato Britânico da Palestina (1920/1948) judeus em diáspora pela Europa e Eurásia se dirigem à região, em grupos, individualmente, em fluxos e ondas migratórias, legal ou ilegalmente, se assentando nas terras, por compra, ocupação, tomando-as de assalto, por meio de guerras ou políticas colonialistas de Estado.

Ao longo destas décadas ocorrem diversos realinhamentos geopolíticos entre os que apoiam palestinos ou judeus; são muitos interesses cruzados, posições que se alternam, promessas inconsistentes, compromissos que não se cumprem, aliados que se tornam adversários e vice-versa, tratados de paz que não são respeitados, atritos, conflitos, atentados e guerras que tornam a questão palestina um imbróglio à procura de uma solução.

A Palestina é uma área da região oriental do Mediterrâneo, compreendendo partes do que se tornou o Estado de Israel em 1948, e os territórios palestinos da Faixa de Gaza, ao longo da costa do Mar Mediterrâneo e da Cisjordânia, a oeste do Rio Jordão.

2.  Assentamentos/ocupação judaica na palestina: um relato

Filho de pai húngaro e de mãe vienense, ambos judeus prósperos e cultos, foi estudante “prodígio”, interessado em matemática e ciências. Em 1925, aos 20 anos, um antes de graduar-se na Politécnica de Viena, abandona os estudos, atitude não inusual de jovens daquelas décadas, cujo denominador comum era um sentimento de absurdidade de viver num mundo que não fazia sentido.

Estas inquietações diante de um mundo em que buscava o infinito e conduzido por obsessões em torno do absoluto provaram-se estéreis. Diante destas frustrações e perplexidades busca agora um substituto, um ersatz, em utopias de uma ou outra espécie.  Motivado por buscas semelhantes, conforme nos diz, primeiro é conduzido à Terra Prometida, depois ao Partido Comunista.

Assim, em 1925, ao abandonar os estudos e seguindo um fluxo de judeus já iniciado na década anterior vai morar em um kibutz na Palestina.

Em 1931, aos 26 anos, já um dos principais jornalistas da Alemanha, filia-se ao Partido Comunista, na esteira, segundo conta, de uma citação de Pablo Picasso, “como se ia a uma fonte de água fresca”. Em 1932 viaja à União Soviética onde permanece por aproximadamente um ano.

Internacionalmente conhecido pelo livro Darkness at Noon (1940), publicado no Brasil pela Editora Globo em 1964 como O zero e o infinito, um dos libelos antistalinistas mais devastadores, ficcionaliza o julgamento de Bukharin, nos chamados Processos de Moscou.

Esteve preso inúmeras vezes em diferentes países , na Espanha franquista, na França, como imigrante indesejável ao irromper a guerra, internado no campo de concentração de La Vernet, embora quisesse se alistar como combatente no exército francês, o que faz ao entrar, posteriormente, na Legião Estrangeira;  na Inglaterra, por seis semanas, por ter entrado com documentos falsos no auge da histeria sobre os Quinta Colunas, diante do medo coletivo de espiões infiltrados, quando também queria se alistar no exército inglês.

Na Guerra Civil Espanhola, a serviço da Terceira Internacional, usou suas credenciais jornalistas para obter autorização em 1937, na busca por evidências de que Franco estava recebendo apoio do nazismo alemão e do fascismo Italiano; preso recebeu sentença de morte do governo franquista; consegui liberdade numa troca de prisioneiros e se muda para Inglaterra.

Decepcionado com o regime soviético, que julgava crescentemente totalitário e não suficientemente opositor ao fascismo ascendente na Europa, desliga-se do Partido Comunista Alemão em 1938, e passa a denunciar o stalinismo.  Manteve ainda por algum tempo o que designa como a “visão esquerdista romântica e ingênua dos Anos Rosados da década de 30; certas ilusões sobre a Rússia Soviética, e a solidariedade internacional das classes trabalhadoras coma a melhor garantidora da paz…”.

Após a Guerra torna-se uma das vozes mais estridentes do anticomunismo (embora se identificasse com o socialismo democrático).  Jornalista, ensaista, romancista, mantém relações literárias ou de amizade com figuras como Walter Benjamin, George Orwell, Bertrand Russel, Camus, Sartre, entre outras.

Estas notas sobre Koestler não são para traçar seu perfil de intelectual de prestígio e notável literato da primeira metade do século XX, mas principalmente para introduzir alguém insuspeito de antissemitismo, que vivenciou com entusiasmo inicial uma experiencia nos kibbutz que se formavam na Palestina nos anos 1920/30, processo que iria desembocar em 1948 na instituição do Estado de Israel.

O que lá constatou e o desiludiu, foram práticas e orientações diversas, mas para o que nos interessa aqui foram suas críticas ao açambarcamento (furto, apoderamento) das terras palestinas, que os kibbutzim tomavam de assalto na calada da noite. 

Descreve este processo em seu livro de 1945 Thieves in the Night (Ladrões na Noite), em que grupos de jovens judeus eram organizados nos primeiros assentamentos na Palestina para literalmente tomar de assalto terras árabes, usualmente comunitárias, para expandir sua presença e domínio.

Domínio em seus vários sentidos, inicialmente posse de terra e na sequência, como demonstrado nas décadas seguintes, crescente controle, jurisdição, poder, autoridade e soberania.

Até agora, de uma forma aparentemente tranquila e quase casual, tudo tinha corrido conforme o planejado.

Três horas antes, à uma da manhã, os quarenta rapazes do Esquadrão de Defesa, que estavam para formar a vanguarda, reuniram-se na cabana de jantar comunitária de Gan Tamar, o antigo assentamento de onde a expedição deveria começar. No grande e abobadado, refeitório vazio, os meninos pareciam muito jovens, desajeitados e sonolentos. Eles tinham em sua maioria menos de dezenove anos, nascidos no campo, filhos e netos da primeira geração de Petakh Tikwah, Rishon le Zion, Metullah, Nahalal.

Hebraico para eles era a língua nativa, não uma arte adquirida precariamente; o País, seu país, nem promessa nem realização. A Europa para eles era uma lenda do glamour e pavor, a nova Babilônia, terra de exílio onde os mais velhos se sentavam junto aos rios e choraram. Eles eram em sua maioria loiros, sardentos, de traços largos e ossos pesados, e desajeitado; filhos de agricultores, rapazes camponeses, de aparência pouco judia e um pouco enfadonhos.

Eles não eram assombrados por nenhuma lembrança e não tinham nada para esquecer. Eles não tinham nenhuma maldição antiga sobre eles e nenhuma esperança histérica; eles tinham o amor do camponês pela terra, o patriotismo do estudante, a presunção piedosamente hipócrita de uma nação muito jovem. Eram Sabras – apelidados em homenagem ao fruto espinhoso e um tanto insípido do cacto, cultivado em terra árida, resistente, de vida difícil, escasso.

Havia entre eles alguns europeus, novos imigrantes oriundos da nova Babilônia. Eles passaram pelo treinamento duro e ascético de Hekhaluz e Hashomer Hatzair, movimentos juvenis que uniram o fervor de uma ordem religiosa com o dogmatismo de um clube de debate socialista. Seus rostos eram mais escuros, mais estreitos, mais aguçados; já carregavam o estigma das “coisas para esquecer”. Estava ali, na curvatura mais acentuada do osso nasal, na sensualidade amarga dos lábios mais carnudos, no olhar conhecedor dos olhos úmidos. Eles pareciam nervosos e tensos em meio aos fleumáticos e robustos Sabras; mais entusiasmados e menos confiáveis.

Todos estavam sentados em volta das mesas rústicas do refeitório, pesados de sono e silenciosos. As lâmpadas nuas penduradas nos fios do teto; emitiam uma luz sombria e triste; os saleiros lascados e os galheteiros formavam pequenos oásis inúteis nas mesas comunitárias vazias.

Cerca de metade deles usava o uniforme da Polícia do Assentamento – túnicas cáqui que eram em sua maioria grandes demais para eles e pitorescos chapéus Bersaglieri que faziam seus rostos parecerem ainda mais adolescentes. Os outros, que não usavam uniforme, faziam parte da Haganah – a organização ilegal de autodefesa cujos membros, quando apanhados a defender um colonato hebreu, eram enviados para a prisão juntamente com os agressores.

Finalmente Bauman, o líder do destacamento, chegou. Ele usava calças de montaria e uma jaqueta de couro preta – uma relíquia dos combates de rua em Viena em 1934, quando o maligno anão Dollfuss ordenou que seus canhões de campanha disparassem à queima-roupa nas varandas, forradas com caixas de gerânio e panos para secar, dos cortiços operários em Floridsdorf, fazendo o sinal da cruz após cada salva. Bauman recebeu sua jaqueta de couro e seu treinamento militar ilegal, mas completo, nas fileiras da Schutzbund; tinha o rosto redondo e jovial de um padeiro vienense; apenas nos raros momentos em que estava cansado ou com raiva é que revelava a marca das coisas a esquecer. No caso dele, havia dois: o fato de seu povo viver atrás de uma daquelas pequenas sacadas com caixas de gerânios; e a sensação quente e úmida em seu rosto causada pela saliva de um carcereiro bem-humorado na prisão de Graz todas as manhãs, às seis horas, quando o café da manhã era servido nas celas.

“Bem, seus vagabundos preguiçosos”, disse Bauman, “levantem-se; atenção, fiquem aí”. Seu hebraico era bastante acidentado. Ele alinhou-os ao longo da parede que separava a sala de jantar da cozinha.

“Os caminhões estarão aqui em vinte minutos”, disse ele, enrolando um cigarro. “A maioria de vocês sabe do que se trata. A terra que vamos ocupar, cerca de mil e quinhentos acres, foi comprada pelo nosso Fundo Nacional há vários anos a um proprietário de terras árabe ausente chamado Zaid Effendi el Mussa, que vive em Beirute e nunca o viu. É constituída por uma colina sobre a qual será erguida a nova povoação, a Torre de Esdras, pelo vale que a rodeia e por algumas pastagens nas encostas próximas. A colina é uma confusão de pedras e não vê um arado há mil anos, mas há vestígios de antigos socalcos (porção de terra plana) que datam dos nossos dias. No vale, alguns campos eram cultivados por arrendatários árabes de Zaid Effendi, que vivem na vizinha Kfar Tabiyeh. Receberam uma compensação equivalente a cerca de três vezes o valor da terra para que pudessem comprar terrenos melhores do outro lado da sua aldeia; um deles até construiu para si uma fábrica de gelo em Jaffa.

“Depois, há uma tribo beduína que, sem o conhecimento de Zaid Effendi, costumava pastar seus camelos e ovelhas nas pastagens a cada primavera. Seu Xeque recebeu uma compensação. Quando tudo isso foi resolvido, os moradores de Kfar Tabiyeh de repente se lembraram daquela parte de a colina não pertencia a Zaid, mas era terra masha’a, que é propriedade comunal da aldeia.

Esta parte consiste em uma faixa de cerca de oitenta metros de largura que vai direto até o topo da colina e a corta em duas. De acordo com a lei, as terras masha’a só podem ser vendidas com o consentimento de todos os membros da aldeia. Kfar Tabiyeh tem 563 almas distribuídas em onze hamulles ou clãs. Os mais velhos de cada clã tiveram que ser subornados separadamente, e as impressões digitais de cada um dos 563 membros obtidas, incluindo as dos bebês e dos idiotas da aldeia. Três aldeões emigraram anos atrás para a Síria; eles tiveram que ser rastreados e subornados. Dois estavam na prisão, dois morreram no estrangeiro, mas não havia provas documentais da sua morte; tinha que ser obtido. Quando tudo terminou, cada metro quadrado de rocha árida custou ao Fundo Nacional cerca do preço de um metro quadrado nos centros empresariais de Londres ou Nova Iorque.

Ele jogou fora o cigarro e enxugou a bochecha direita com a palma da mão. Era um hábito que se originou de sua experiência com o carcereiro humorístico de Graz.

“Demorou dois anos para terminar essas pequenas formalidades. Quando terminaram, eclodiu a rebelião árabe. A primeira tentativa de tomada de posse do local falhou. Os futuros colonos foram recebidos com uma saraivada de pedras pelos moradores de Kfar Tabiyeh e tiveram que desistir. Na segunda tentativa, realizada com maior força, foram alvejados e perderam dois homens. Isso foi há três meses. Vocês estão fazendo a terceira tentativa e desta vez teremos sucesso. Esta noite a paliçada, a torre de vigia e as primeiras cabanas terão sido erguidas na colina.

“Nosso destacamento vai ocupar o local antes do amanhecer. Um segundo destacamento acompanhará o comboio de colonos que partirá duas horas depois. Os Árabes não tomarão conhecimento antes do dia nascer. Problemas durante o dia não são prováveis. O período crítico será nas primeiras noites. Mas então o Lugar estará fortificado”.

“Alguns dos nossos cabeçudos cautelosos em Jerusalém queriam que esperássemos por tempos mais calmos. O Lugar é isolado, o próximo assentamento hebreu fica a onze milhas de distância e não há estrada; é cercado por aldeias árabes; fica perto da fronteira com a Síria. de onde os terroristas se infiltram. Estas são precisamente as razões pelas quais decidimos não esperar. Assim que os árabes compreenderem que não podem impedir-nos de exercer os nossos direitos, chegarão a um acordo conosco. Se virem sinais de fraqueza e hesitação, eles primeiro nos despojarão e depois nos afogarão no mar. É por isso que a Torre de Ezra tem que esperar esta noite. — Isso é tudo. Temos cinco minutos restantes; fila única na cozinha para tomar café”.

Esta descrição do açambarcamento de terras palestinas pelos sionistas, progressiva e agressivamente, tendo em vista a projetada instituição de um Estado, parece seguir mais o antigo padrão das comunidades clânicas para transformar-se em nações, através de guerras travadas cruel e destrutivamente, motivadas pela avidez e ambição. Mesmo após a instituição de Israel em 1948 como Estado, parece que suas sucessivas lideranças não abrem mão deste padrão, acrescido de uma ação, cujos meios e fins, reivindicam ser providencialmente determinados, isto é, remetem-se à Providência em última e decisiva instância.

Isto implica que o processo de state building, analisado pela ciência política, no caso Israelense, parece fundamentar-se mais num referencial de uma comunidade ético-religiosa do que numa comunidade política, civil-jurídica. Como vê-se pela história recente, e atual, determinar o caráter de um Estado moderno por considerações linguísticas, culturais e religiosas, e não por considerações jurídico-políticas e econômicas, resulta frequentemente em autoritarismo destrutivos, nacionalismos xenófobos, presunções de superioridade e supremacismos, quando não, genocídios.

 Pós-II Guerra: o mundo está cheio de refugiados, são milhões que foram desalojados de suas casas, de suas terras, de suas cidades; milhares de vilas varridas do mapa, cidades reduzidas à escombros e cinzas. A maioria não tem para onde voltar, todos estão à procura de um novo chão, um novo lar, quem sabe uma nova pátria, onde poderiam conseguir trabalho, comida, reorganizar e refazer a vida.

No Oriente Médio, vigora o colonialismo inglês que lhe assegura rotas comerciais; domina e humilha seus povos, que por sua vez se inspiram nos versículos do Alcorão para unir-se e libertar-se. Os 100 mil britânicos na Palestina, em dúvida sobre o que fazer, criticados por favorecer os árabes são contemplados com as bombas e o terror sionista (Irgun, Stern Gang); pretendem transferir a responsabilidade sobre o futuro da questão Palestina para a ONU. Em 18 de fevereiro de 1947, a Grã-Bretanha desiste de seu Mandato da Palestina.

Contrariamente à Liga Árabe que propunha criar um Estado palestino independente, a ONU instala um comitê com integrantes de países neutros para resolver o imbróglio (Austrália, Suécia, Canada, Tchecoslováquia, Guatemala, Índia, Irã, Países Baixos, Peru, Uruguai e Iugoslavia). Serão muitas infrutíferas reuniões, em que proliferam propostas e ninguém fica satisfeito.

Enquanto isto, na Europa devastada, com a colaboração da UNRRA, agência da ONU para reabilitação e socorro a refugiados, o sionismo, através da Agência Judaica e de movimentos kibutzim, alguns de orientação socialista e outros nem tanto, aguardam autorização para transferir centenas de crianças órfãos para a Palestina. A Agência pressiona os britânicos para que permitam maior fluxo de migrantes judeus para a Palestina, além dos 1,5 mil autorizados por mês; os britânicos descartam a intervenção do Presidente Truman para que seja permitido o ingresso de 100 mil judeus. Há movimentos e iniciativas para que estes imigrem ilegalmente para a Palestina; enquanto os líderes árabes pretendem uma moratória definitiva de ingressantes judeus na região.

Haveria ali, na contemporização dos britânicos com os árabes, alguma relação com as importações de petróleo? Estariam os EUA ensaiando substituir o imperialismo britânico no Oriente Médio? É o que farão, apoiando a criação do Estado Judeu e depois tornando-o sua ponta de lança na região, com crescente apoio econômico, militar e diplomático. 

Com a derrota nazista e sem a perseguição aos judeus parece que a ideia de um Estado para estes também sairia derrotada. Não faltaram sugestões para distribuí-los pela Austrália, patagônia, ou mesmo na Alemanha, como uma forma de compensação, ou de serem acolhidos por caridosas famílias norte-americanos. No entanto, nenhum país na Europa, nem os EUA parecem dispostas a recebê-los.

Em maio de 1947, Andrei Gromyko, embaixador nas Nações Unidas anuncia uma reviravolta na posição soviética sobre o futuro da Palestina. O movimento sionista deixa de ser um lacaio do imperialismo capitalista e os judeus têm reconhecidas suas raízes históricas na região, e qualquer solução precisa contemplar seus direitos legítimos. É uma declaração surpreendente, cujas razões ou motivações não ficaram claras, mas que coloca a questão em outros termos.

No entanto é generalizada entre os árabes que a Palestina lhes pertence por direito, bastaria reconhecer este fato; o comitê da ONU é, pois, irrelevante e inútil.

Ainda em 1947 a Grã-Bretanha apela aos países membros da ONU que impeçam que os refugiados judeus cheguem à Palestina; aproximadamente 100 mil lá aportaram nos últimos anos. Líderes da Liga Árabe não tem consenso; alguns distinguem “judeus” e “sionistas”, outros não. Aliás, confusão que segue até hoje nos debates sobre a guerra em curso, seja por ignorância ou seja por cálculo, conforme os interlocutores e seus interesses, espúrios ou legítimos.

Enquanto comitês variados emitem seus pareceres e propostas a partir de análises, documentos (Declaração Balfour de 1917, Livro branco de Churchill, comissão Woodhead, Comissão Anglo-Americana), sem chegar a conclusões ou consensos, a Liga Árabe decide não cooperar com comitê da ONU sobre a questão palestina.

Os representantes dos 11 países integrantes do comitê dividem-se entre apoiar a formação de um Estado judeu, apoiar a causa árabe, balizar sua posição por cálculos domésticos ou por relação à Grã-Bretanha.

 Entre a falta de consenso interno, o boicote árabe e dificuldades de toda ordem, o comitê encarregado de equacionar o conflito na Palestina oscila entre a decepção, a humilhação e a irrelevância.

Entre as pretensões de uns e outros, por diferentes motivos ou razões, a conclusão dos delegados é que os palestinos carecem de conexão com a realidade, quanto á reivindicar um Estado independente, enquanto os sionistas estão igualmente desconectados da realidade ao sugerir uma convivência pacífica com os árabes no futuro.

O trabalho do comitê, segundo o representante norte-americano Ralph Bunche, resulta infrutífero, seus membros são incompetentes, desleixados, medíocres.  Caberá a ele elaborar as duas propostas de solução que o comitê submetera à Assembleia Geral da ONU.

Em julho de 1947, em mais uma tentativa de algum acordo, o comitê da ONU se reúne com representantes da Liga Árabe em Beirute, com a conspícua e deliberada ausência do grão-mufti Hajj Amin al-Husseini, líder dos árabes palestinos. As demandas da Liga são para o fim imediato de toda imigração judaica para a Palestina e a criação de um Estado árabe independente em bases democráticas. Alertam, em premonição que se revelou tragicamente real, que um Estado judeu levaria ao tumulto, conflitos e guerras em todo o Oriente Médio. Como se constata, a situação permaneceu perigosa e intratável, o ódio racial aumentou e as guerras se sucederam.

Delegados do comitê aventam outras soluções, algum compromisso, alternativas. Nada prospera. Nenhuma solução é pactuada.

Entre tantas questões, impasses e dificuldades subjaz na posição intransigente dos árabes contrária tanto a uma divisão, um Estado binacional ou uma federação, o entendimento de que os direitos democráticos e à autodeterminação palestina não ficariam assegurados, e que eles não são culpados do genocídio nazista, por que então deveriam ser eles a pagar o preço por isso?

Finalmente, em 31 de agosto, nos escritórios da ONU em Genebra, os onze delegados apresentam seu relatório para a solução da questão Palestina.

Em 26 de novembro de 1947 o Comitê Especial das Nações Unidas para a Palestina apresenta sua proposta de partilha. Em sua sede provisória a Assembleia Geral deve votá-la, mas os sionistas percebem que se a votação ocorrer neste dia não haverá Estado de Israel. Por meio de tradicional chicana, expediente de postergar votações que se presumem derrotadas, sugerida por Oswaldo Aranha, que presidia a sessão, os sionistas procuram adiá-la; para ganhar tempo alguns delegados fazem uso da palavra lendo a Bíblia, cantando hinos ou enumerando promessas do profeta Isaías. Adiam, desta forma, a votação por 72 horas, que ocorrerá em 29 setembro.

Neste pequeno intervalo, mobiliza-se a opinião pública norte-americana em apoio a um Estado judeu. A liderança árabe é por um Estado árabe indiviso de minoria judaica, caso contrário, predizem haverá conflitos sangrentos. O presidente norte-americano Truman[v], que mantinha uma posição relativamente ponderada, acaba por ceder à pressão sionista. Na busca por votos favoráveis aos sionistas são usadas ameaças econômicas, diplomáticas, chantagens, pressões.

A proposta de divisão da Palestina em dois Estados é assim aprovada: 33 votos a favor, 19 contra, 10 abstenções. Júbilo e aleluia de um lado, fúria e ira, de outro; seguem manifestações: greves, motins, saques, assaltos, ameaças, a que não faltam atos terroristas judeus do Irgun, do movimento paramilitar sionista Haganah, da Stern Gang.

A expulsão da população árabe em breve se contará em milhares de refugiados; logo adiante estará a Nakba, o deslocamento violento e a expropriação do povo palestino, juntamente com a destruição da sua sociedade, cultura, identidade, direitos políticos e aspirações nacionais; são 711 mil árabes palestinos, segundo dados da ONU, decorrentes da guerra civil 1947-1948, e da Guerra Árabe-Israelense de 1948[vi].

Seguem os conflitos: a Guerra dos Seis Dias, de 1967, a Guerra do Yom Kippur, de 1973, a Primeira Intifada, em 1987 (da qual se origina o Hamas – Movimento de Resistência Islâmica), a Segunda, em decorrência da provocação de Ariel Sharon, político israelense no Monte do Templo, onde fica a Mesquita de Al-Aqsa, local sagrado para os muçulmanos, e pela frustração que se acumulava pelo não cumprimento por Israel dos termos dos Acordos de Oslo, assinados em 1993. A sequência contínua de atritos entre palestinos e judeus tem no 7 de outubro de 2023 uma de suas inflexões mais dramáticas.

4.  Guerra e genocídio

De Hugo Grotius[vii], ao Pacto de Paris de 1928[viii] e à Convenção do Genocídio de 1948[ix] foram diversas ideias, teorias e iniciativas para regular os termos, os parâmetros, os limites em que se dão as guerras, as razões de seu desencadeamento, os termos e condições da paz, a avaliação de suas consequências e as responsabilidades que delas decorrem. São tratados, pactos, regulações a que subscrevem a maioria das nações e que são patrocinadas e eventualmente implementadas por organizações internacionais, especialmente a ONU e suas unidades, a partir de 1948.

Além destes aspectos de regulação, notadamente as que instituem leis, convenções e tribunais, que constituem digamos assim os aspectos formais, há uma outra dimensão que baliza as ocorrências dos conflitos, especialmente as razões de deflagração e justificação e a busca de legitimação diante dos povos e do conjunto das nações.

Trata-se da retórica política, que desde “Oração fúnebre de Péricles”, (Tucídides, História da Guerra do Peloponeso) ao prantear os mortos pela guerra glorifica o Estado pelo qual morreram, além de justificar as ações e agitar os espíritos dos que ainda permanecem em guerra.

 Nas condições de hoje esta arte oratória é menos um enunciado fulgurante de algum general ou governante diante de seu público, visando persuadir, animar ou prantear heróis mortos em batalha do que uma máquina de propaganda, acionada sem escrúpulos para impor versões duvidosas ou mentiras deslavadas para avançar interesses, defender posições, eventualmente indefensáveis, demonizar ou desumanizar adversários.

Obviamente quanto mais poderoso é um contendor, maior capacidade de manipulação, disseminação de versões e imposição de sua verdade. É o caso atual de Israel e de seus poderosos aliados diante dos palestinos.

Sua retórica de guerra torna-se cada vez mais insustentável, a cada dia se transmuta em propaganda, mentiras, manipulação; não há defesa da guerra por motivos justos, pela dignidade de um povo, pelos seus direitos, pela sua soberania; estes nobres ideais e motivos estão do outro lado, do lado dos palestinos.

Não há mais critérios, uma ética de prudência ou moderação (posta já por Tucídides), apenas vingança retaliativa; não há dilemas maquiavelianos sobre os “meios legítimos” que permitiriam o recurso á força, nem o “problema kantiano” que apontasse para a questão da “paz universal” como aspiração moral de uma lei mundial, substituída apenas por uma “moral de combate”; não há mais estimativas de consequências, apenas agressividade destrutiva; , nada de razões morais, apenas fúria, e arrogância, soberba e indiferença diante dos milhares de civis mortos, feridos, deslocados do outro lado. Resta apenas um nu, cru e perigoso “realismo” que encara o conflito entre os contendores tendo apenas uma única e possível resolução, uma vitória inquestionável de um dos lados, no caso, do lado Israelita.

Acrescente-se a reiterada tentativa de legitimar a ação agressiva de Israel pelo seu presumido direito de autodefesa, e pela reiterada contrafação das últimas décadas do “combate ao terrorismo”; é pouco provável que desta vez consigam imprimir à história as digitais de suas garras coloniais e imperialistas.

O direito de autodefesa, no entanto, requer parâmetros e medidas para que não seja apenas uma justificativa inconsistente para deflagar retaliações desproporcionais e ações fora e além do escopo do artigo 51 da Carta da ONU (princípios de necessidade e proporcionalidade).

 As grandes potências e seus aliados têm alargado, em tempo recentes, o entendimento de quando este direito pode ser invocado para utilizar a força diante do que, a sua discrição, entendem como terrorismo e outras ameaças ao que julgam ser sua segurança nacional ou seus interesses estratégicos. É fato que em termos tópicos e diante de uma ação armada de grupos que chamam de terroristas, parece justificada uma resposta imediata de quem é agredido. Mas tais eventos e incidentes de beligerância precisam ser compreendidos num contexto maior, que inclua o histórico dos confrontos e das ações armadas dos vários protagonistas envolvidos.

Se tomarmos a origem dos conflitos e a sequência dos atritos entre judeus e palestinos, e utilizarmos os critérios de Grotius para justificar a guerra, “defesa, recuperação do que é nosso e punição” talvez pudéssemos concluir qual é o lado que está atacando e qual se defendendo nestas oito décadas, quem é o agressor, quem é o agredido.

O que ocorre em Gaza, desde 8 de outubro de 2023, mais do que em outras ocasiões conflituosas, mais reforça a posição e a legitimidade dos palestinos, enquanto decresce a do Estado judeu, percebido como colonialista, opressor, genocida.[x]

Como no caso dos nazistas julgados em Nuremberg, não eram necessárias muitas provas, pois os próprios documentos do regime os denunciavam, e as atrocidades e barbáries cometidas eram por demais evidentes; também em Gaza, apesar da parcialidade da cobertura jornalista israelense e ocidental, testemunhamos ao vivo e a cores instantaneamente o que ali se perpetra contra a população civil, também pelos relatos de agências da ONU, de ONGs, de organizações humanitárias, de jornalistas independentes, apesar das dificuldades postas para que tenham acesso a área conflagrada (Obs. não há registro de que tantos destes profissionais tenham sido mortos em período tão breve em zonas de conflito, do que ocorre presentemente em Gaza pelas bombas israelenses).

A guerra brutal de Israel contra Gaza, que se segue ao ataque do Hamas em 7 de outubro de 2023, delimita o arco de fogo onde se retorcem hoje os parâmetros civilizatórios.

É fato que há várias outras zonas conflagradas no mundo que também afrontam direitos, promovem chacinas, produzem refugiados aos milhares. Mas, pelos interesses hegemônicos que nela intervém, pelo histórico de conflitos na região, pelo processo de constituição forçada de um Estado (Israel) e pelo escandaloso impedimento de instituição de outro (Palestino), tem-se aí um dos focos mais explosivos das tensões mundiais das últimas 8 décadas.

Se diante da complexidade da questão judaica-palestina nem sempre se puderam alinhar com clareza, pertinência e propriedade as forças democráticas internacionais em relação às disputas e conflitos recorrentes, os que prezam os direitos humanos e uma cultura de paz hoje, diante das incursões bélicas e genocidas de Israel na Faixa de Gaza, não podem hesitar; não basta condenar com veemência esta agressividade devastadora do governo ultradireitista de Netanyahu, é necessária a continua mobilização, como tem ocorrido, de todos que querem não apenas o fim da guerra, mas o direito dos palestinos a sua própria independência e autonomia em seu próprio Estado.

 Assim como ao final da II Guerra Mundial a tarefa e os objetivos dos vencedores era desnazificar e democratizar a Alemanha, levar os criminosos à justiça, punir as violações dos direitos humanos, consolidar a paz, ao fim da presente guerra em Gaza há que, se tal fosse possível, “des-sionizar” o Estado de Israel, fazê-lo uma democracia, que reivindica sê-lo, respeitador das resoluções dos organismos internacionais, notadamente os da ONU, cessar sua voracidade colonialista e reconhecer o direito dos palestinos à sua autonomia e ao seu Estado. Isto, sem deixar de responsabilizar seus governantes, tipificando seus crimes, em primeiro lugar, possivelmente, os de genocídio.

Na sequência haverá outra guerra, finda a que está em curso, afrontando a consciência universal dos democratas e humanistas; os poderes hegemônicos ocidentais, junto com Israel, tudo farão para fazer valer a sua versão dos fatos, deslocando focos, filtrando acontecimentos por meio de provas forjadas, investigações pouco confiáveis, enfatizando alguns episódios e dissolvendo outros na nebulosa de suas máquinas de propaganda.

O que vemos martelado todos os dias pela imprensa ocidental e pelo governo de Israel é o relato dos horrores do sete de outubro, sobre a ação fulminante do Hamas (aliás, ações similares àquelas perpetradas décadas antes pelos grupos terroristas sionistas), e pelo destino da centena de israelitas sequestrados. Como se estes eventos, por mais odiosos e lamentáveis, pudessem não apenas equivaler-se, mas serem moralmente mais abomináveis do que as duas dezenas de milhares palestinos mortos pelo exército de Israel, a destruição de suas cidades, o deslocamento de quase dois milhões de habitantes de Gaza, a devastação e inviabilização de seus meios mais básicos de vida.

Como tantos observadores têm constatado ao longo de décadas da ocupação da Palestina por Israel, a repressão e a humilhação que impõe ao seu povo afrontam a consciência de milhões. A realidade do confinamento a que estão submetidos é um dos maiores e mais inaceitáveis escândalos do século XXI.

Há um entendimento de alguns juristas, mencionado por Norman Finkelstein[xi], de que não há uma diferença fundamental, de acordo com leis internacionais sobre conflitos, entre visar “deliberadamente” civis (o que teria feito o Hamas) e visar “indiscriminadamente” civis (o que tem feito Israel em Gaza).

Ainda, segundo Finkelstein, Israel, dadas as condições de cerco à Gaza, similar aos campos de concentração, e aos massivos bombardeamentos está praticando genocídio há bem mais tempo do que este em curso.

E aqui chegamos a uma das últimas mais intelectualmente desonestas e politicamente afrontosas artimanhas do Estado de Israel e de seus apoiadores, na vã tentativa de desqualificar qualquer crítica a suas políticas colonialistas, racistas e genocidas na palestina, como antissemitismo (preconceito, ódio e perseguição aos judeus), pelo ardil de o equalizar ao antissionismo (Sionismo: uma ideologia e uma política, cujo núcleo de intransigência impede qualquer modus vivendi com os árabes palestinos, visando instituir e manter um  Estado judeu)[xii].

Em meio aos debates em curso, pressões, versões, opiniões, investigações, filigranas jurídicas sobre o que ocorre em Gaza, não há como deixar de constatar que uma situação de genocídio perpetrado por Israel seja reconhecida pela consciência das massas mobilizadas e pela opinião mundial, consciência que é o fundamento da lei, e do espírito do conceito proposto por Raphael Lemkin.

Como alertava Lemkin, o genocídio pode já estar em curso, em determinadas situações, antes que dele tenhamos completa percepção, quando então será tarde demais[xiii].

*Remy J. Fontanasociólogo, é professor aposentado da UFSC. Autor, entre outros livros, de Da esplêndida amargura à esperança militante – ensaios políticos, culturais e ocasionais (Ed. Insular). [https://amzn.to/3O42FaK]

Notas


[vii] Hugo Grotius (1583-1645) – celebrado como formulador da teoria da guerra justa.  Antes dele razões variadas eram invocadas para deflagar guerras; guerra não era vista como a quebra da lei, mas era ela própria a lei (guerra para expandir poder nacional; como meio de resolução de disputas; se tratados fossem violados; como meio de cobrança de débitos; se um soberano raptasse a mulher de outro, etc.). A guerra, propunha, é um recurso ilegal, mas os Estados, diante de uma necessidade de corrigir o que está errado podem utilizá-la. Admite guerra por legítima defesa, mas considera ilegítimas as guerras de conquista. Também é justificada a guerra por “aquilo que nos pertence” e “a punição de um culpado”. Também ponderava que as relações internacionais fossem submetidas a diversas exigências morais, esforçando-se em limitar o uso da força.

[viii] O Pacto de Paris (Pacto Kellog-Briand – Tratado Geral de Renúncia à Guerra como Instrumento de Política Nacional) de Agosto de 1928, lançou um novo sistema internacional em que as sanções substituiriam a diplomacia das canhoneiras; apelou aos signatários para resolverem os seus litígios por meios pacíficos; amplamente ineficaz na prevenção de conflitos ou guerras. No entanto, serviu de base jurídica para o conceito de crime contra a paz adotado pelo Tribunal de Nuremberg e pelo Tribunal de Toquio após II Guerra. Um tanto moralista e legalista em sua pretensão de declarar ilegais as guerras, pela primeira vez na história, foi um marco a partir do qual se desencadearam mudanças significativas nas regras da guerra. O tratado deve muito à Salmon Oliver Levinson (29/12/1865 – 2/2/1941) ativista pela paz na década de 1920; observou, a propósito, “Deveríamos ter feito isso, não como …leis de guerra, mas leis contra a guerra; assim como não existem leis de assassinato ou de envenenamento, mas leis contra eles”.

[ix] A Convenção sobre a Prevenção e Punição do Crime de Genocídio. Deve-se o termo ao advogado polonês Raphael Lemkin e a sua obsessiva campanha para que o genocídio fosse adotado pela ONU para criminalizar “atos cometidos com a intenção de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso”. Em 27 setembro 1947, o promotor do nono julgamento de Nuremberg menciona o conceito de genocídio, ainda sem estatuto jurídico, em consideração ao empenho de Raphael Lemkin.

[x] O uso desproporcional de força por Israel em seus confrontos com os palestinos faz parte da crônica das relações internacionais há muitas décadas; igualmente o uso do termo genocida tem tentado caracterizar suas ações bélicas desde pelo menos 1982, quando “a assembleia geral da ONU considerou Israel responsável por um ato de genocídio contra o povo palestiniano que vivia nos campos de refugiados de Sabra e Shatila, em Beirute, no Líbano. A votação foi de 123 a 0. Os EUA abstiveram-se. Os três dias de assassinatos, principalmente de mulheres e crianças, foram supervisionados por Ariel Sharon, um homem que mais tarde se tornaria primeiro-ministro de Israel. Embora uma comissão independente israelense tenha considerado Sharon indiretamente responsável pelo massacre, ninguém jamais foi responsabilizado” (The ICJ ruling on Gaza is a wake-up call for Washington – Biden has to take note. Zaha Hassan, The Guardian, 28 Jan 2024).

[xi] Norman Finkelstein vs Alan Dershowitz On Israel-Palestine War With Piers Morgan, 13 Dec 2023. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=uHqs15gOv4k

[xii] Ver especialmente as intervenções do historiador da Universidade de Exeter Ilan Pappé, e do jornalista Mehdi Hasan (The Intercept, MSNBC, Al Jazeera) no Debate: Anti-Zionism is Anti-Semitism. Mehdi Hasan and Ilan Pappé debate whether Anti-Zionism is Anti-Semitism with Times columnist Melanie Phillips and Israeli former Member of the Knesset Einat Wilf in this Intelligence Squared debate from June 2019. Disponível em  https://www.youtube.com/watch?v=K1VTt_THL4A

[xiii] Em dezembro de 2023, a África do Sul acusou formalmente Israel de violar a Convenção do Genocídio, abrindo o caso África do Sul v. Israel (Convenção do Genocídio), devido às ações de Israel durante a Guerra Israel-Hamas.  Em 26 de janeiro de 2024, na Corte Internacional de Justiça quinze dos 17 juristas, especialistas jurídicos de todo o mundo, consideraram plausível que Israel esteja a cometer genocídio contra os palestinianos. Apenas dois juízes (de Uganda e de Israel) estavam prontos a aceitar a posição de Israel, que tornaram o caso de genocídio apresentado pela África do Sul implausível.


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