Por GILBERTO LOPES*
O sistema chinês oferece mais opções do que a democracia ocidental
“Cumprimos o objetivo estabelecido para o primeiro centenário. A questão da pobreza absoluta foi historicamente resolvida”, disse o presidente chinês Xi Jinping no ato de celebração do centenário do Partido Comunista (PCCh). “Concluímos a construção integral de uma sociedade modestamente próspera no vasto território chinês e estamos avançando para o objetivo estabelecido para os próximos 100 anos: completar a construção integral de um poderoso país socialista moderno”.
A dimensão histórica
Um século! Os prazos são centenários. É o marco em que o governo chinês estabelece seus objetivos. É um tema que o diplomata e acadêmico de Singapura, Kishore Mahbubani, traz sempre à baila quando analisa o cenário internacional. Quando os historiadores do futuro estudarem esta época, “ficarão surpresos ao ver que uma república tão jovem como os Estados Unidos, com menos de 250 anos, pretendia influenciar uma civilização quatro vezes maior em população e com 4.000 anos”, disse Mahbubani num artigo que destacava a dimensão histórica do problema.
Martin Jacques, um acadêmico e jornalista britânico que viveu na China, fala e escreve mandarim e até há pouco tempo era membro do Departamento de Estudos Políticos e Internacionais da Universidade de Cambridge, publicou um artigo em maio passado no qual explica por que, do ponto de vista dele, o sistema chinês oferece mais opções do que a democracia ocidental[i]. Em 2009, Jacques publicou um livro cujo título, When China Rules the World: The End of the Western World and the Birth of the New Global Order, refere-se ao fim do período de dominação ocidental e ao nascimento de uma nova ordem mundial. “A China tem uma notável capacidade de reinventar-se de uma forma que nenhum outro país, ou civilização, foi capaz de fazer”. “Demonstrou, durante um longo período histórico, uma extraordinária capacidade de reinventar-se”, diz ele. Com uma história milenar, durante cinco períodos, desempenhou um papel predominante na história mundial. Outras civilizações, acrescenta ele, “podem tê-lo feito uma vez; duas, talvez uma”. Compara depois vários aspectos das formas de governo, entre a democracia ocidental e o regime político chinês. “Aí reside a principal diferença entre os dois sistemas”, diz ele.
Durante dois séculos, o Ocidente acreditou que o seu era o sistema universal, que este deveria servir de modelo para os demais. Que era a forma perfeita e definitiva de organização política mundial. Jacques sugere então que se coloque as coisas num contexto histórico. Lembra-nos de que a democracia não surge no vazio, que sua relativa sobrevivência desde o fim da Segunda Guerra Mundial foi o produto de determinadas condições históricas. Particularmente de um crescimento econômico rápido e a melhoria das condições de vida das pessoas em geral.
A democracia ocidental
Mas esta crença de que a democracia ocidental é aplicável a todo o mundo “é particularmente absurda quando aplicada à China”. Jacques compara os dois sistemas: a eficácia do governo chinês, uma combinação de visão de longo prazo e pragmatismo, “tem sido responsável pela mais notável transformação econômica da história da humanidade”.
Durante os últimos 40 anos, acrescenta, não há dúvida sobre qual sistema “tem sido mais eficaz e tem servido melhor a seu povo”. O Ocidente critica o sistema chinês de partido único, afirmando que apenas um sistema multipartidário oferece alternativas. “Mas as evidências sugerem o contrário”, diz Jacques. “A transição entre Mao Tsé-Tung e Deng Xiaoping evidenciou uma mudança importante na política e filosofia, com o mercado desempenhando um papel no planejamento estatal e a rejeição de um isolamento relativo, em favor de uma integração com o mundo”.
Uma mudança que ele considera mais profunda e de maior alcance do que qualquer outra promovida pelas democracias ocidentais desde 1945. Em outras palavras, diz ele, o sistema de partido único, pelo menos na sua forma chinesa, é capaz de oferecer mais alternativas do que as democracias ocidentais. “Nas últimas quatro décadas, pelo menos, o sistema chinês caracterizou-se por um processo de constante renovação e reformas que contrasta amplamente com a ossificação que caracteriza as democracias ocidentais”.
Martin Jacques não se refere à América Latina, mas talvez em poucas regiões do mundo esta “coisificação” da democracia seja mais evidente, um conceito sob o qual se abrigam regimes como os da Colômbia ou Honduras, Guatemala ou Paraguai, o Brasil de Bolsonaro ou o Chile de Piñera, etc. Estas são “democracias imperfeitas” que – no critério dos mesmos acadêmicos ossificados – contrastam com as “democracias maduras” dos Estados Unidos ou da Europa Ocidental, que, dentre outras, compartilham a característica de terem uma participação eleitoral cada vez menor.
Um processo histórico irreversível
O presidente chinês fez uma referência a esse cenário em sua intervenção de 1 de julho, no centenário do PCCh. A nação chinesa – disse Xi Jinping em seu discurso – “tem uma civilização de origem remota e uma longa história de mais de cinco mil anos, e fez contribuições indeléveis para o progresso da civilização humana”.
Nesses cem anos, “atingimos o auge da mais ampla e profunda transformação social efetuada desde o início histórico da nação chinesa e demos o grande salto pelo qual um enorme país pobre, atrasado e populoso do Oriente avançou por passos gigantescos em direção a uma sociedade socialista”. Uma mudança histórica de um regime de economia planificada, altamente centralizada, para uma economia de mercado socialista; de uma situação de forças produtivas relativamente atrasadas, para o segundo lugar no mundo em termos do volume global da economia.
Xi Jinping destacou o papel do PCCh e a interpretação chinesa do marxismo neste processo. “Sem o PCCh não teria existido uma nova China, nem poderia haver uma grande revitalização da nação chinesa”. Mas não se trata apenas de teoria, mas também do papel da China num cenário internacional convulsivo. O povo chinês, recordou ele, “nunca atropelou, oprimiu ou escravizou os povos dos demais países do mundo”. Não o fazíamos antes, não o fazemos agora, nem o faremos no futuro. Ao mesmo tempo, não permitimos absolutamente que nenhuma força exterior nos atropele, oprima ou escravize”. Se alguém tentar fazê-lo, acrescentou, “terá a cabeça esmagada contra a férrea muralha de carne e osso dos mais de 1,4 bilhão de chineses”.
As forças armadas chinesas desempenham um papel chave no cenário mundial. Para tornar o país forte, o exército deve ser fortalecido, disse Xi, que reivindicou a existência de um exército “de classe mundial”, “com capacidade mais poderosa e meios mais confiáveis”. E terminou com um aviso: “ninguém pode subestimar a firme determinação, vontade resoluta e capacidade poderosa do povo chinês para salvaguardar a soberania e integridade territorial do país!”, uma referência à situação das antigas colônias de Macau e Hong Kong e ao que é provavelmente o cenário mais sensível da política internacional: “a resolução da questão de Taiwan e a materialização da reunificação completa da pátria”.
O fim da Guerra Fria e a nova ordem internacional
Dias antes do aniversário do PCCh, o secretário de estado norte-americano, Anthony Blinken, terminou um giro de pouco mais de uma semana pela Europa. “Caro Tony”, seu colega francês Yves Le Drian cumprimentava-o em Paris, enquanto o alemão Heiko Maas lhe expressava sua satisfação pelos Estados Unidos estarem novamente ao seu lado, após o afastamento de quatro anos que representou a diplomacia de Trump.
Elise Labott, colunista da revista Foreign Policy e professora da Escola de Serviço Internacional da Universidade Americana, recordou, num artigo sobre o giro de Blinken, que o presidente Joe Biden definiu a competição estratégica com a China como o princípio central de sua política externa. Uma competição que a Casa Branca define como democracia versus autocracia que, para além da China, inclui também a Rússia.
Blinken evitou chamar a China de “inimigo”, diz Labott. Preferiu enfatizar a proposta de construir um mundo melhor, capaz de competir com a iniciativa chinesa do “Cinturão e Rota”, que descreve como “predatória”. E mudou o tom de confronto utilizado durante o encontro com os líderes chineses na reunião de Anchorage, em março passado, o que suscitou receios do surgimento de uma nova Guerra Fria.
Mas mesmo que comemorem que os Estados Unidos reassumam seu papel de liderança no Ocidente, Labott disse, “os países de todo o mundo estão compreensivelmente atentos para ver se podem liderar a cruzada contra os mesmos tipos de populismo, autoritarismo e comportamento não liberal contra os quais estão lutando internamente”.
Democracia nos assuntos internacionais
A Rússia também pesou nas discussões. O ministro das relações exteriores Serguei Lavrov falou longamente sobre o assunto num artigo intitulado “O domínio histórico do Ocidente chega ao fim”, publicado no final de junho, após o encontro entre Vladimir Putin e Joe Biden na Suíça. Lavrov critica a pretensão dos Estados Unidos e da União Europeia de impor a todo o mundo a visão de democracia defendida por Washington e Bruxelas. Proclamam seu direito de interferir nos assuntos internos de outros países; aplicam “sanções e outras medidas coercivas ilegítimas contra Estados soberanos” e, ao mesmo tempo que exigem a adoção de um modelo de democracia ao estilo ocidental, esquecem a democracia nos assuntos internacionais”.
Os políticos mais lúcidos da Europa e dos Estados Unidos “percebem que esta política intransigente não leva a lugar algum e começam a pensar de forma pragmática, embora fora dos olhos do público, reconhecendo que o mundo tem mais do que uma civilização. Eles começam a reconhecer que a Rússia, a China e outras grandes potências têm uma história que remonta a mil anos atrás e têm suas próprias tradições, valores e modo de vida”, disse Lavrov.
Nenhum país é imune aos problemas de direitos humanos, o que é necessário é um diálogo de respeito mútuo. “Isto implica um compromisso incondicional de respeitar normas e princípios do direito internacional universalmente aceitos, incluindo o respeito pela igualdade soberana dos Estados, a não ingerência em seus assuntos internos, a resolução pacífica dos conflitos e o direito à autodeterminação”, acrescentou ele.
Lavrov acusou a União Europeia de adotar uma política cada vez mais agressiva contra seu país, de mãos dadas com uma “minoria russofóbica”, que foi expressa na cúpula da UE em Bruxelas nos dias 24 e 25 de junho. “A ideia expressa por Angela Merkel e Emmanuel Macron, de realizar uma reunião com Vladimir Putin, foi retirada da agenda antes de vir à tona”, recordou. “Vale a pena lembrar como o Ocidente tem justificado a expansão sem reservas da OTAN para o Oriente, para a fronteira russa”, enquanto acusam a Rússia “de adotar uma ‘postura agressiva’ em várias regiões. Esta é a forma como tratam a política de Moscou que visa contrapor as aspirações ultrarradicais e neonazistas na sua vizinhança imediata”, disse Lavrov, referindo-se aos conflitos na Ucrânia e Bielorrússia. O Ocidente histórico, Lavrov concluiu, “dominou o mundo durante quinhentos anos. Contudo, não há dúvida de que vê agora que esta era chega ao fim”.
Na América Latina, o caos
Neste cenário de incertezas, afogada a era das revoluções nos anos 60, esgotada mais recentemente a oferta fracassada de desenvolvimento neoliberal, a América Latina atravessa uma época de conflitos renovados, particularmente em dois dos países exemplares do modelo conservador: Chile e Colômbia.
As rebeliões populares no Chile levaram à convocação de uma nova Assembleia Constituinte, que porá fim às regras mais duras do modelo ditatorial. Em novembro, as eleições poderão representar outra mudança radical em seu modelo político.
Na Colômbia, onde durante décadas o uribismo e a parapolítica significaram o assassinato de milhares de líderes populares, outra rebelião paralisou parcialmente o país, sem que ainda se vislumbre uma saída para o impasse político.
O assassinato do presidente haitiano na semana passada, e as complexas ligações internacionais com esse crime, são outro reflexo de uma crise da qual os vários países latino-americanos não escapam.
*Gilberto Lopes é jornalista, doutor em Estudos da Sociedade e da Cultura pela Universidad de Costa Rica (UCR). Autor de Crisis política del mundo moderno (Uruk).
Tradução: Fernando Lima das Neves.
Nota
[i] O artigo pode ser visto em https://www.globaltimes.cn/page/202105/1223046.shtml