O exército de gauchões

Imagem: Agruban
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Por GILBERTO LOPES*

Os militares deram sustentação a um governo sem rumo, de quatro anos caóticos, de um país isolado do mundo

Um exército de gauchões! O Brasil não precisa disso, o Brasil precisa de um exército de brasileiros, com toda a riqueza de suas cores, de seus pontos de vista e de respeito por seus cidadãos. A realidade, porém, é que esse exército se transformou num exército de gauchões. Como ocorreu isso? Foram pequenos passos, mas com uma longa história por detrás.

Era uma terça-feira, 3 de abril de 2018. O Supremo Tribunal Federal ia decidir, no dia seguinte, o habeas corpus que, se aprovado, permitira ao ex-presidente Lula ser novamente candidato, amplamente favorito em todas as pesquisas.

O Exército era contra. Seu comandante, o general Villas Bôas, publicou no seu perfil de Twitter: “Asseguro à Nação que o Exército Brasileiro julga compartilhar o anseio de todos os cidadãos de bem de repúdio à impunidade e de respeito à Constituição, à paz social e à democracia, bem como se mantém atento às suas missões institucionais”.

Mais cedo, no mesmo dia, havia escrito: “Nessa situação que vive o Brasil, resta perguntar às instituições e ao povo quem realmente está pensando no bem do país e das gerações futuras e quem está preocupado apenas com interesses pessoais?”.

A redação, cuidadosa, ambígua, se dirigia às instituições e ao povo. Fazia uma pergunta. Mas se reservava ele próprio o direito de resposta. A mesma redação opaca reivindicava a representação “de todos os cidadãos de bem”, com uma mistura de afirmações que se prestam a todo tipo de interpretações, como é fácil verificar nas diversas reações –desde o governo ao PT– publicadas então pela imprensa: repúdio à impunidade, respeito à Constituição, à paz social e à democracia, condimentada com outra afirmação final, de que o Exército se matinha “atento às suas missões institucionais”.

O então comandante da Força Aérea, brigadeiro Nivaldo Luiz Rossato, escreveu também, pedindo respeito à Constituição, advertindo sobre os riscos de colocar as convicções pessoais por cima das instituições. Já intuía o brigadeiro Nivaldo Luiz Rossato os riscos do caminho tomado?

Meses antes, em setembro de 2017, Villas Bôas teve que responder às inquietudes provocada por novas declarações do general Hamilton Mourão, o mesmo que, pouco despois, já retirado, seria o vice-presidente do capitão Jair Bolsonaro. Hamilton Mourão advertia que uma intervenção militar poderia ocorrer se o Judiciário não tomasse medidas contra a corrupção. Já estava em marcha a Operação Lava Jato, cujos objetivos e consequências para o país são hoje bem conhecidas.

Na imprensa surgiram os pedidos de sanções contra o general Hamilton Mourão. Villas Bôas disse que não, que Mourão tinha sido provocado, que era preciso contextualizar a sua fala, entender as circunstâncias em que ocorreu. Assegurou – com sensatez – que “ditadura nunca é melhor”, que o país tinha instituições amadurecidas, um sistema de pesos e contrapesos. Foi então quando agregou, sobre Mourão: – É um “grande soldado, uma figura fantástica, um gauchão”.

 

Aço

Com todos os seus principais comandantes reunidos – os 16 generais de quatro estrelas – Villas Bôas se dirigiu ao Supremo Tribunal Federal – como já vimos – na véspera da decisão do habeas corpus que poderia autorizar a candidatura de Lula nas eleições de 2018. Outro ato sujeito a todo tipo de interpretações incluída a de que era uma ameaça à institucionalidade do país, à independência do Poder Judiciário.

O Habeas Corpus foi rechaçado. Preso Lula, o caminho para Jair Bolsonaro à presidência ficou pavimentado. A fala de Villas Bôas foi recebida com entusiasmo em setores de alto mando militar. “Pensamos da mesma forma! Brasil acima de tudo! Aço!”, respondeu um general.

Aço? O que é isso? Um programa de governo? Uma ameaça aos cidadãos desarmados? Isso não faz sentido.

Como programa de governo é uma oferta pobre e cruel. Como ameaça aos cidadãos brasileiros desarmados é uma oferta covarde. Sei que a expressão circula no meio militar, nos mais diversos níveis. No exército dos gauchões. O Brasil não precisa disso, nem merece um exército assim.

Precisamos de outro Exército. O que acontece é que este não resolveu ainda o problema que representa o fato de ter promovido a tortura em seu seio. Não é suficiente a explicação de Villas Bôas, que justifica a ditadura pela polarização ideológica da Guerra Fria. Não se trata disso. Trata-se da tortura, a mais miserável e covarde função humana, de seres humanos capazes de torturar até a morte a outros seres humanos, amarrados e indefesos. Foram militares os que fizeram isso.

E foi isso o que outro militar – o capitão Jair Bolsonaro – elogiou e defendeu publicamente, no Congresso Nacional, sem que o Exército, nem a Marinha, nem a Aeronáutica, dissessem uma palavra sobre um fato que engloba a atividade militar.

É verdade que a sociedade brasileira ainda convive com as consequências desse horror. A presidente Dilma Rousseff – com pouca sensibilidade política, na minha opinião – quis reabrir o debate. Mas é às próprias Forças Armadas, aos militares que entendem suas funções com outros critérios, os que precisam, de forma mais urgente, ver as instituições armadas livres dessa mancha covarde que ainda não foi lavada: a de instituições onde se torturava. Há muitas maneiras de fazer isso, mas é preciso fazê-lo. O exército tem muito mais que “aço” para oferecer aos brasileiros.

 

As consequências políticas da opacidade

Prevaleceu na posição das Forças Armadas, neste período político recente, a linguagem opaca e ambígua, como vimos. Mas, confrontada com a realidade, a ambiguidade durou pouco, foi se desvanecendo. À medida em que a realidade foi prevalecendo, varreu, desnudou a ambivalência das palavras, lhes deu preciso conteúdo.

Estou me referindo aos questionamentos do resultado da eleição presidencial –a única eleição questionada – e às formas que foi adquirindo esse protesto: a de acampamentos nas portas dos quarteis generais do Exército, principalmente em Brasília e, novamente, as palavras ambíguas com que os protestos eram qualificados.

Ao final, falava mais alto o fato de que os acampamentos não só eram tolerados, como recebiam apoio dos militares.

A mensagem era clara e os resultados também o foram. Terminaram numa estapafúrdia rebelião, no assalto às sedes dos poderes do Estado à vista e paciência das forças militares e policiais.

Foi o fim espetacular de um regime promovido pelo Exército, com o apoio de uma conversa pública, de conteúdo privado, do general Villas Bôas com o capitão Jair Bolsonaro.

Como os segredos de cem anos, ficou a promessa de que o conteúdo dessa conversa permaneceria para sempre em segredo. O que poderia ter sido tratado nessa conversa? Só uma coisa poderia o general Villas Bôas ter falado com o capitão: sobre a natureza do compromisso do Exército com a governo Jair Bolsonaro. Logo desembarcaram milhares de militares em todos os escalões do governo.

De que governo? De um governo sem rumo, de quatro anos caóticos, de um país isolado do mundo, de uma política criminosa de desmatamento da Amazônia, de aumento da pobreza, de milhares de mortes consequência de uma irresponsável política contra a Covid, de compra de propriedades com dinheiro vivo…

Como entender o compromisso do Exército com esse governo? Só vejo dos cenários: um é a ideia de que Lula e o PT encarnam a corrupção no Brasil. O outro, é a velha ideia – ainda da Guerra Fria – da luta contra o comunismo.

Novamente, o gauchão se manifestou concluída a rebelião do dia 8 de janeiro: “A detenção indiscriminada de mais de 1.200 pessoas, que hoje estão confinadas em condições precárias nas instalações da Polícia Federal em Brasília, mostra que o novo Governo, coerente com suas raízes marxistas-leninistas, age de forma amadora, desumana e ilegal”, disse o general Hamilton Mourão dois dias depois.

 

Levar o Brasil para o século passado

Já o brigadeiro Nivaldo Luiz Rossato havia advertido sobre os riscos de colocar as convicções pessoais por cima das instituições. Mas não é só isso. Como organizar um país quando o vice-presidente da República, futuro senador, general de quatro estrelas, é capaz de argumentar desse jeito para explicar as tensões políticas que ele mesmo contribuiu a criar?

Como e possível argumentar, no Brasil de hoje, sobre as raízes marxistas-leninistas do governo Lula-Alckmin? Para quem está falando o general Mourão? Só pode estar falando para os gauchões.

A corrupção tinha que ser combatida. Mas a Lava Jato foi outra coisa. De objetivos políticos, foi a peça chave para o triunfo de Jair Bolsonaro e para a entrega dos maiores recursos do país, os petroleiros, a interesses internacionais, incluindo a privatização da Petrobrás. Nenhum interesse nacional estratégico estava protegido no governo de Jair Bolsonaro.

Foi o que Hamilton Mourão resumiu como labor do governo, no seu discurso de fim de ano: privatização de estatais (o ministro Guedes tinha prometido privatizar “tudo”), o desmantelamento do Estado, não recompletando vagas disponibilizadas por aposentadoria, e outras medidas, além da afirmação (falsa) de que entregavam ao próximo governo “um país equilibrado, livre de práticas sistemáticas de corrupção, em ascensão econômica e com as contas públicas equilibradas”.

Duas semanas depois, o presidente da Federação Brasileira de Bancos (Febraban), Isaac Sidney, elogiava as medidas anunciadas pelo ministro da Fazenda do governo Lula, Fernando Haddad, assegurando que iam “na direção correta para conter o rombo nas contas públicas em 2023”, que poderia chegar a 231,5 bilhões de reais, se não se adotam medidas para equilibrar o déficit.

Uma oferta dessa direita brasileira que sonha com privatizar “tudo”, principalmente o petróleo, mistura de um velho neoliberalismo fracassado, condizente com uma visão de Guerra Fria que pretende levar o Brasil para o século passado.

FIM

*Gilberto Lopes é jornalista, doutor em Estudos da Sociedade e da Cultura pela Universidad de Costa Rica (UCR). Autor de Crisis política del mundo moderno (Uruk).

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