Por IVAN DA COSTA MARQUES*
A política entra em cena nas escolhas feitas na construção dos enquadramentos onde se situam as validades dos conhecimentos científicos
“O Rio Doce, que nós chamamos de Watu, nosso avô, é uma pessoa, não um recurso, como dizem os economistas” – “A cloroquina cura a COVID 19” – “A Terra é plana” – “Os fósseis (inclusive os dinossauros) são animais que não conseguiram embarcar na Arca de Noé a tempo de salvarem-se do dilúvio”
De modo geral, as/os cientistas reconhecem que a Ciência resulta do debate constante, de perguntas e hipóteses bem definidas, do cuidadoso exame dos processos utilizados, e que possivelmente novas teorias, fatos e verdades podem substituir e causar o abandono daquelas já estabelecidas. Mas quase toda/o cientista dá continuidade à alegoria moderna que privilegia a Ciência como universal, neutra e objetiva, e, portanto, apolítica.
Nas décadas de 1970/80, no entanto, pesquisadores europeus e americanos estudaram a “vida do laboratório” para esclarecer como conhecimentos científicos e fatos de ciências duras como a física e a biologia passam a fazer parte do mundo, ou seja, como “são descobertos”. (Latour e Woolgar, 1979/1997), (Knorr-Cetina, 1981), (Lynch, 1985), (Traweek, 1988) Nesses estudos os cientistas foram observados etnograficamente, ou seja, com os mesmos métodos que a partir do século XIX os antropólogos desenvolveram para estudar a vida dos então chamados “povos primitivos”. Esses pesquisadores abordaram o mundo do laboratório como, grosso modo, seus colegas abordaram tribos indígenas desde o século passado.
Essa virada antropológica no campo dos Estudos Sociais das Ciência e das Tecnologias (Estudos CTS ou simplesmente Science Studies, como o campo é denominado na língua inglesa) mostrou que os conhecimentos produzidos nos laboratórios estudados eram “situados”. Isso é, as verdades científicas são verdadeiras e legítimas, mas não são universais e neutras pois seu domínio de validade está circunscrito a um “enquadramento” (“framing”) em que se imbricam inexoravelmente os “atratores” que os povos modernos chamam de Natureza e Sociedade. E tampouco as verdades científicas são “objetivas” no sentido absoluto privilegiado que a epistemologia de viés positivista lhes concedia, uma vez que espelham uma versão preconcebida de realidade e não a Realidade.
Desfazendo a alegoria moderna, os estudos de laboratório e seus sucessores no campo dos Estudos CTS retiraram o privilégio epistemológico da Ciência mostrando que a política entra em cena nas escolhas feitas na construção dos enquadramentos onde se situam as validades dos conhecimentos científicos e, especialmente, a aceitação, ou não, deles. A Ciência perdeu o “C” maiúsculo da transcendência e ganhou o plural das coisas humanas – ciências.
Ao serem situados, isto é, ao terem revelados os seus enquadramentos e, a partir daí, a política, os valores, os afetos, em suma, os “modos de existência” que os criam e os sustentam, os conhecimentos científicos não perdem seu valor, mas ganham a historicidade das obras humanas, isto é, passam a resultar de atividades para as quais as perguntas onde? quando? por quê? por quem? para quê? e para quem? precisam ser respondidas para e com coletivos culturais e geográficos compostos em espécies de repúblicas. As últimas décadas do século XX distanciaram-se da epistemologia dos séculos anteriores e consolidaram o relativismo realista das ciências. Cada conhecimento científico é válido no enquadramento em que é feito, refeito e se situa. O cientista contemporâneo é um trabalhador numa obra em rede muito maior do que ele individualmente. E aqui nos aproximamos do X da questão da autoridade dos conhecimentos científicos frente a asserções sobre a COVID 19 e outras que transitam nos espaços onde também transitam os conhecimentos científicos.
Eticamente, a retirada do privilégio epistemológico da Ciência equipara o saber e o valor do modo de existência do supremacista branco àqueles modos de existência de qualquer outro povo. Se aderirmos a uma corrente da própria ética ocidental, podemos dizer que fabricar armas e mercadorias modernas não dá ao homem branco, ou a quem quer que saiba, o direito de dizer aos outros como eles devem viver.
O modo de existência de um Yanomami ou de um berlinense, eticamente, não vale nem mais nem menos um do que o outro. Nenhum dos dois tem o direito de dizer ao outro como ele deve viver. A retirada do privilégio epistemológico da Ciência, a pedra de toque do modo de existência moderno, fertiliza o diálogo entre os modos de existência, entre os diferentes saberes, diferentes modos de viver e morrer no mundo. Pode-se imaginar que mais berlinenses estarão mais abertos para ouvir um intelectual ameríndio e lhe dar razão. Já não soa tão estranho para o berlinense ouvir de um ameríndio que “[a]té o começo do século XX, o mundo do trabalho e da produção (o mundo do homem branco) se dava com ferramentas e meios que não tinham a potência de exaurir os recursos da Terra como hoje” (Krenak, 2020:72) Esse ponto de encontro pode levar a outros. E, quem sabe, a asserção “os rios são pessoas e não recursos, como dizem os economistas” (Krenak, 2019:40), transladada / traduzida / negociada em diálogo, um dia venha a ser um fato para ambos?
Por outro lado, ao torná-los avessos ao diálogo, o privilégio epistemológico aumentava (ardilosamente) a autoridade dos conhecimentos científicos e facilitava a sua naturalização. Ao manter invisíveis os valores, os afetos, a política, o privilégio epistemológico mantinha os conhecimentos científicos como universais, neutros e objetivos, mais difíceis de serem fragilizados. Retirado o privilégio epistemológico, os inimigos de um conhecimento científico estão sempre epistemologicamente autorizados e se sentem mais confiantes a inspecionar os enquadramentos para estabelecer controvérsias. Os enquadramentos envolvem condições de medida, escolhas de inscrições, definição de dados e provas, contabilidade, limites, e também hipóteses, opções e omissões, e aí pode-se procurar falhas e erros que estariam incorporados aos conhecimentos científicos, agora reconhecidos como resultados de processos com início e fim no plano do humano e, portanto, vulneráveis. E, é preciso deixar claro, podem surgir aproveitadores da “situação”, vozes execráveis e mesmo criminosas. A direita, os poderosos, os brancos supremacistas, como quer que sejam chamados, saíram na frente aproveitando a perda do privilégio epistemológico dos conhecimentos científicos, como podemos perceber desde as asserções sobre as qualidades da cloroquina até aquelas sobre o que fazer (ou deixar de fazer) sobre os limites do planeta. Com recursos, será sempre possível abrir controvérsias e seguir duvidando de um conhecimento científico e das/os cientistas que o produziram.
Um contingente módico de médicos e cientistas acolhe a asserção “a cloroquina cura a COVID 19” como um fato científico, divergindo da maioria. A asserção, no entanto, foi adotada por atores poderosos que a circulam amplamente no Brasil como fato científico. E isso nos leva a outro resultado crucial no campo dos Estudos CTS: ao longo do eixo contínuo fato-ficção científica, o destino de uma asserção depende do que “os outros” fazem com ela.
Ainda há espanto e indignação porque os conhecimentos científicos não conseguem se impor ao criacionismo, ao terraplanismo, e à receita da cloroquina. Mas não seria o caso de mudar o enquadramento das questões? Vejamos bem, a perda do privilégio epistemológico concede aos conhecimentos científicos, agora ontologicamente mais modestos, um espaço de tolerância e indiferença. Não cabe mais (só) aos conhecimentos científicos decidir sobre o destino de uma asserção, isso depende dos “outros”, depende do que fazem com ela. (Latour, 1987/1997)
Por exemplo, se perguntados, vamos, simplificadamente e com razão, dizer que “a Terra não é plana”. E, se desafiados, apresentaremos os argumentos e as provas da redondeza da Terra. A razão e a lógica desses argumentos e provas, no entanto, são aderentes a um modo de existência e vão convencer justamente os que têm as razões e as lógicas das ciências incorporadas a seus modos de existência. Elas vão convencer os que, por assim dizer, já estão convencidos. Entretanto, são precisamente os afetos desse modo de existência, dessa razão e dessa lógica, que não é única, que estão em questão. Essa razão pode não mobilizar os “outros” que pensam e vivem um modo de existência diferente, acolhem e dão destino a outras asserções. Para esses “outros”, talvez a experiência de jogar bola em um campo plano lhes seja determinante.
Se você for um engenheiro calculando as distâncias voadas entre duas cidades, é preciso que você esteja convencido de que a Terra não é plana. Ou se você se espantar ao falar com um amigo que viajou para Lisboa e quiser saber por que a hora lá é diferente da hora no Rio, é bem possível que você seja mais facilmente convencido de que a Terra não é plana. Mas se nada disso acontece e você não quiser ser engenheiro, você pode muito bem jogar futebol, dirigir um carro e até tomar um avião sem que esse conflito com outro conhecimento (o científico, estabilizado em nossos enquadramentos, o conhecimento de que a Terra é redonda) lhe atravesse o caminho. Dessa forma, o desafio aqui será o do conhecimento científico abdicar do seu impulso colonizador (dizer como os outros devem viver) e afirmar-se, ou não, politicamente, caso a caso na materialidade e no interesse de cada caso.
Mas vamos um pouco adiante ensaiando as possíveis consequências da perda do privilégio epistemológico. Por um lado, se buscamos eticamente um diálogo para a construção de um mundo comum, devemos começar pela humildade reconhecendo que os conhecimentos científicos e a nossa razão não falam em nome de uma Natureza transcendente, mas são obra humana equiparável a uma infinidade de outras possibilidades, dado o universo aberto de modos de existência. Mas, por outro lado, para dialogar de forma eticamente legítima, sem eliminar modos de existência diferentes, não significa esquecer que, assim como os conhecimentos científicos, quaisquer conhecimentos e os próprios modos de existência atendem a certas demandas e mobilizam certos interesses. Se a administração da cloroquina à margem dos conhecimentos científicos pode matar, então a decisão de onde, quando, a quem, e por quem a cloroquina pode ser administrada não deveria ser só dos cientistas e médicos, mas deveria ser balizada por um coletivo de humanos e não humanos compostos em espécies de repúblicas cujos cidadãos viveriam suas decisões, quer sobre a cloroquina quer sobre a vacinação. Isto exigiria um trabalho de construção de novas fronteiras e de administração das zonas de contato entre essas repúblicas.
Este seria um outro enquadramento da questão da perda do privilégio epistemológico, ainda que hoje mais espelhada na literatura de ficção socio-científica.[i] Coletivos diversos se organizariam e decidiriam sobre o que e o quanto adotar quando se trata de modos de existência a partir do seu relacionamento com as proposições que circulam em meio às proposições científicas. Um mesmo indivíduo poderia ser cidadã/o de mais de uma dessas repúblicas que não necessariamente teriam continuidade territorial geográfica. Os problemas surgirão agudos na administração das zonas de contato entre essas repúblicas a partir de territórios (não necessariamente geográficos) pré-existentes onde as fronteiras entre as novas repúblicas estariam por construir. Mas, pode-se notar, não precisamos ir ao mundo ficcional para enxergar tendências e protonegociações em andamento. Por exemplo, nos EUA se estipula que só vacinados terão acesso a determinados lugares como cinemas, concertos, estádios e escolas. Tanto quanto eu saiba, no entanto, ainda não se fala em transporte público separado para vacinados e para os que fazem opção consciente de recusar a vacina, mas o embrião da construção de novas fronteiras entre duas repúblicas, para esta pandemia ou para próximas classificações de pessoas, está lá. Além disso, voltando ao imaginário, as novas repúblicas poderão se multiplicar em grande número, formadas por coletivos de pessoas, coisas e ideias menores do que os Estados atuais a que estamos acostumados, em profecias autorrealizadas de ficções socio-científicas como, por exemplo, as do romance Infomocracy de Malka Older.[ii] Reconheço que isso pode soar muito estranho e até sem sentido, mas é preciso lembrar que fronteiras entre as repúblicas a que estamos hoje acostumados poderiam não fazer sentido em um mundo de relativamente pouco tempo atrás.
*Ivan da Costa Marques é professor do Programa de Pós-Graduação de História das Ciências e das Técnicas e Epistemologia (HCTE) da UFRJ. Autor, entre outros livros, de Brasil e abertura dos mercados (Contraponto).
Uma versão resumida deste artigo foi publicada no Boletim CTS em foco da Associação Brasileira de Estudos Sociais das Ciências e das Tecnologias – ESOCITE.BR.
Referências
DA COSTA MARQUES, I. A autoridade dos conhecimentos científicos, a COVID-19 e outros desafios. CTS em foco: Tecnociência e democracia em tempos de pandemia (Boletim ESOCITE.BR), v. 1, n. (out-dez 2020) p. 17-21, 2020. ISSN 2675-9764.
KNORR-CETINA, K. The manufacture of knowledge : an essay on the constructivist and contextual nature of science. Oxford ; New York: Pergamon Press, 1981. xiv, 189 p. ISBN 0080257771.
KRENAK, A. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2019. 85 ISBN 978-85-359-3241-6.
______. A vida não é útil. São Paulo: Companhia das Letras, 2020. 126 ISBN 978-85-359-3369-7.
LATOUR, B. Ciência em Ação: Como seguir cientistas e engenheiros sociedade afora. São Paulo: UNESP, 1987/1997. 439 ISBN 857139265X.
LATOUR, B.; WOOLGAR, S. A vida de laboratório: a produção dos fatos científicos. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1979/1997. 310 ISBN 857316123X.
LYNCH, M. Art and artifact in laboratory science : a study of shop work and shop talk in a research laboratory. London ; Boston: Routledge & Kegan Paul, 1985. xvi, 317 p. ISBN 0710097530.
OLDER, M. GAFA and states Entreprises et Histoire, v. 96, n. 3, p. 186-188 (Clin 2019. Disponível em: < https://www.cairn.info/revue-entreprises-et-histoire-2019-3-page-186.htm >.
TRAWEEK, S. Beamtimes and lifetimes: the world of high energy physicists. Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 1988. xv, 187 p. ISBN 0674063473 (alk. paper).
Notas
[i] Este não é o espaço para se elaborar o papel das probabilidades no tratamento das verdades científicas após a perda do privilégio epistemológico.
[ii] Sobre esse romance, ver (Older, 2019).