A ópera Café no Municipal

Anna Boghiguian, A Myth , 1994
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Por WALNICE NOGUEIRA GALVÃO*

O libreto de Mário de Andrade musicado por Felipe Senna em encanação dirigida por Sérgio de Carvalho

A falta de divulgação e a rapidez de relâmpago da temporada de cinco dias tornaram quase clandestino um evento do maior brilho: a encenação da ópera Café no Theatro Municipal de São Paulo, parte das celebrações do Centenário da Semana de Arte Moderna de 1922. Com libreto de Mário de Andrade, ninguém se atrevia à façanha desde 1996, quando a Orquestra Sinfônica de Santos levou-a à cena, com música de Köllreuter e direção de Fernando Peixoto.

O evento de agora, patrocinado pela Secretaria da Cultura da Prefeitura de São Paulo, junta a Orquestra Sinfônica Municipal, o Coral Paulistano e o Balé da Cidade, agregando artistas circenses e cantores populares, bem como aportes do MST.

Brindam-nos com uma nova ópera, de autoria do conhecido compositor Felipe Senna, com adaptação e direção cênica de cunho brechtiano por Sérgio de Carvalho, proveniente da Companhia do Latão e com longa tarimba em nossos palcos. A música é transportada até nós: moderna, contemporânea e dissonante, passando ao largo das facilidades melodiosas, condizente com o assunto.

Espetáculo grandioso, maneja grandes massas corais, em atenção ao desiderato de Mário de Andrade: expressar a coletividade e não realçar pessoas isoladas, como é comum na ópera. Aliás, não só nela, mas também na dramaturgia em geral, no cinema, nos romances. O autor queria que sua ópera desse voz ao conjunto dos trabalhadores esbulhados, e não a eventuais indivíduos dentre eles. As massas corais são repercutidas pelos dançarinos do balé, em cena o tempo todo, participando da ação e conferindo ao palco a sinergia de uma grande animação.

O foco da narrativa é a miséria e a fome desencadeadas pela crise do café subsequente à quebra da Bolsa em 1929, causa da Grande Depressão. O café encalhou e o desemprego maciço atingiu os lavradores e os estivadores pelo país todo, mas sobretudo em São Paulo, pátria da cafeicultura. É nesse quadro que a ópera se passa.

A narrativa desenrola-se a partir do cais do porto de Santos, onde o café deixou de embarcar para os países ricos, acumulando-se nas docas. Depois, apresenta-se a mão-de-obra desempregada nas lavouras de café no interior, forçada ao êxodo sem rumo. Uma cena bufa localiza-se na câmara dos deputados, deixando evidente que os figurões ali estão só para se locupletar com o que o poder lhes faculta, sem a menor disposição para zelar pelos interesses do povo. Isso, em tom de farsa.

Avançando, os camponeses vão expondo suas reivindicações, até a apoteose, que os mostra em plena revolta. Entra então em cena seu representante, devidamente atualizado para a época da pandemia: um motoboy entregador de aplicativo, vivido por um ator negro. Esse sim é que é um heroi destes nossos tempos (sem esquecer os trabalhadores da saúde). A narrativa comporta ainda uma pequena interpolação já no final, quando a turma do MST, camponeses de hoje como aqueles de ontem, ocupa o palco.

Mário de Andrade não escreveu só o libreto. Também deixou um roteiro minucioso e cheio de indicações, que dispõe até do colorido dos trajes e das movimentações no palco. Publicado pela primeira vez nas Poesias completas, o libreto veio a constituir, tal a quantidade de edições e de variantes, um delicado problema ecdótico. Foi preciso esperar até 2004 pela tese de livre-docência de Flavia Camargo Toni, musicóloga do Instituto de Estudos Brasileiros da USP (IEB), para ter um texto estabelecido e confiável. Sua tese intitulou-se Café, uma ópera de Mário de Andrade: Estudo e edição anotada.

Mário de Andrade foi um musicólogo magistral e professor de piano do Conservatório Dramático e Musical, setor em que seu desempenho é menos conhecido que na literatura. O IEB preserva seu acervo, que tem sido objeto de estudos. Recentemente, a mesma pesquisadora, com parcerias, prestou o inestimável serviço de resgatar a música das noitadas modernistas do Theatro Municipal em 1922. Em novas gravações, rendeu quatro CDs com Selo Sesc e um catálogo com conferências de então e estudos de agora. O título é: Toda Semana: Música e literatura na Semana de Arte Moderna. É uma oportunidade histórica, que aguardou um século para vir à luz.

*Walnice Nogueira Galvão é Professora Emérita da FFLCH da USP. Autora, entre outros livros, de Lendo e relendo (Senac\Ouro sobre Azul).

 

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