Por LUCAS FIASCHETTI ESTEVEZ*
Considerações sobre algumas tendências do cinema contemporâneo
Quando submetidas a uma análise que vai além de um entusiasmo acrítico, tão comum na imprensa, as tendências hegemônicas do cinema contemporâneo compartilham de uma estratégia de evasão em representar o mundo existente, numa negação estrutural de qualquer realismo stricto sensu. A princípio, a estratégia poderia apontar para algo disruptivo, tendo em vista as inúmeras elaborações estéticas ao longo da história que ao se afastarem da realidade, fizeram da fantasia, do non-sense, da paródia e da ironia sua força crítica.
Porém, quando apontam para algo situado além do existente, os bens em circulação na indústria cultural contemporânea o fazem do modo mais padronizado e massificado possível: não há nada de novo a ser apresentado. A fuga do real, assim, redunda na mais sólida e reificante reafirmação do existente.
No célebre texto A indústria cultural: o esclarecimento como mistificação das massas, Theodor Adorno e Max Horkheimer acertadamente afirmavam como cultura sob o capitalismo tardio toma o mundo real como um “prolongamento sem ruptura” daquele “mundo que se descobre no filme” (Adorno, Horkheimer, 1985, p.104). Desse modo, a indústria cultural contribuiria para a “proclamação enfática e sistemática do existente” (Ibid., p.133), impondo o “paradoxo da rotina travestida de natureza” (Ibid., p.106).
Como consequência dessa reificação do mundo social colocado como natural por meio da cultura, o espectador se identificaria “imediatamente com a realidade” (Ibid., p.104), tomando-a como a única possível. Embora a reiteração do existente e a ausência de alternativa ainda seja o pressuposto implícito e inconsciente proposto pela indústria cultural, vimos que os filmes “realistas” constituem uma franja muito diminuta da produção atual. Assim, se a ideologia da cultura “tem por objeto o mundo enquanto tal” (Ibid., p.122), esse mundo aparece agora como algo invertido, através de uma estratégia estética que se funda numa fuga desesperada em representar a realidade.
Na década de 1980, Fredric Jameson já refletia sobre essa espécie de fuga a partir dos “filmes de nostalgia”. Diferentemente do que o nome pode sugerir, esse tipo de produção não se restringe aos enredos que retratam certo período histórico do passado. Na realidade, a “nostalgia” diz respeito a uma negação do tempo presente sem direção temporal e geográfica específica e tem como resultado esvaziar a história contada “da maioria dos sinais e referências” que possam “ser associados ao mundo contemporâneo”. Sob esse modelo, a narrativa hegemônica da indústria cultural situa os filmes em algum passado, presente alternativo ou futuro, numa nostalgia “indefinível” (Jameson, 1985, p.21) que afasta as obras de “representações estéticas de nossa própria experiência corrente” (Ibid., p.21). Diante disso, passemos a uma tentativa de apreender a fisionomia desse tipo de operação em curso.
Na indústria cultural contemporânea, esses “filmes de evasão” (Adorno, 1993, p.177) podem ser organizados em três principais categorias, embora elas possuam intersecções entre si, apresentem contratendências internas e estão longe de querer exaurir a complexidade do cenário analisado. Em primeiro lugar, identificamos os filmes históricos, gênero clássico do cinema comercial, os quais partem de uma fuga em direção ao passado e retratam de modo hiper-realista períodos históricos anteriores, sejam estes “baseado em fatos reais” ou não. Nessa larga categoria, incluem-se tanto os filmes d´O poderoso chefão, como o recente Oppenheimer e a franquia O senhor dos anéis. De certo modo, essas produções expressam um certo realismo ficcional, por um lado indiferente à factualidade do que é representado, por outro compromissado com uma representação detalhada e “autêntica” de determinado período do passado.
Em seguida, vislumbram-se os filmes de um outro presente, que embora tenham enredos situados nos tempos atuais, retratam eventos que se passam em outra dimensão – vide o caso das franquias de super-heróis e seus autointitulados “multiversos”. Na realidade retratada nesses filmes, tudo é ao mesmo tempo muito semelhante ao nosso mundo, mas há a presença de elementos disruptivos como a magia, forças sobrenaturais ou o heroísmo.
Nesse deslocamento, as graves contradições do mundo contemporâneo geralmente são exacerbadas, mas tendem a ser resolvidas pelos heróis que livram “o mundo civilizado do monstro arquetípico” (Jameson, 1994, p.18). Atualmente, esses filmes dominam largamente a lista das principais bilheterias. Como exemplos, podemos citar franquias como Marvel, Batman, Harry Potter e até mesmo o recente Barbie.
Por fim, encontramos os filmes do amanhã, que narram histórias de períodos indeterminados do futuro, marcados por profundas transformações tecnológicas. Geralmente, temos uma miríade de gêneros que aí se incluem e se confundem. Na ficção científica, destaca-se a franquia Star Wars; no caso das distopias, Avatar; dentre o “cinema de desastre” (Ibid., p.18) ou “filmes de catástrofe” apocalítica (Fischer, 2020, p.10), temos Impacto Profundo, 2012, e Não olhe para cima. O que raramente encontramos, no entanto, é a representação de futuros reconciliados, onde a humanidade alcança um final feliz. Geralmente, os únicos filmes que recorrem a essa resolução são aqueles de conteúdo religioso, os quais retratam a vida no paraíso. Sintomáticos de nosso atual estado de atrofia estética, tais filmes sugerem que para o futuro ser belo e reconciliado, é necessário recorrer àquilo que está fora do tempo, para algo que acontece depois da morte.
A princípio, esses filmes do amanhã poderiam ser tomados como representantes do que há de mais comercial e regressivo na indústria cultural contemporânea – afinal de contas, trazem consigo enredos recheados de clichês e a ausência de traços mais singulares, que pudessem ser considerados artísticos. Porém, tomaremos a direção contrária. Em vez de considerá-los como “pura ideologia”, talvez devêssemos compreender como tais produções parecem dotadas de uma espécie de pressentimento abstrato a respeito do atual estado irracional da acumulação capitalista e de seus efeitos destrutivos em relação à própria humanidade e à natureza, apontando para aquilo que Fredric Jameson certa vez chamou de o “fracasso do futuro” (Jameson apud Fisher, 2020, p.16). Se a filosofia decretou a morte de Deus, o capitalismo tardio enterrou o futuro. Nesses filmes, esse amanhã distópico tem como marcas não só o avanço técnico desenfreado, como também uma sociedade e natureza em ruínas sob uma atmosfera cyberpunk, como em o Exterminador do Futuro ou Robocop. Curiosamente, nesses campeões de bilheteria a indústria cultural contemporânea não deixa de revelar uma certa má consciência, na qual a maior das fugas é, por outro lado, a mais realista delas.
Nesses filmes, a dialética inerente aos bens em circulação pela indústria cultural se revela de modo patente. Diferentemente de uma visão bipolar na qual obras de arte radicais, “autônomas” e críticas se opõem dogmaticamente frente aos produtos culturais mais comerciais, os filmes do amanhã nos permitem entrever de que modo até o mais comercial e fugaz dos filmes carrega consigo algo que diz respeito ao mais absoluto realismo das contradições e problemáticas atuais, tirando daí suas consequências mais funestas.
Concomitantemente, tais filmes expressam essas contradições sem alcançar o nível de uma crítica consequente e anticapitalista. Como sintomas de uma cultura impotente mas consciente de sua impotência, tais filmes são contradições estéticas em movimento: estão afastados de qualquer elaboração artística séria ao mesmo tempo que traduzem na linguagem do clichê o caminho destrutivo e calamitoso do capitalismo contemporâneo.
Se seguirmos o conselho de Theodor Adorno em levar a indústria cultural “criticamente a sério” (Adorno, 2021, p.115), devemos nos comprometer a buscar em todos os bens culturais em circulação, “mesmo no mais degradado tipo de cultura de massa”, a presença de um elemento negativo, não importa “quão débil” e impotente ele esteja. Do mesmo modo, é sob o mesmo prisma do entendimento marxiano de encarar a ideologia enquanto uma ilusão socialmente necessária e não apenas como uma “mentira” colocada goela abaixo da sociedade que devemos considerar como as principais tendências de nossa atual cultura cinematográfica “não podem ser ideológicas sem serem”, de modo implícito ou não, “utópicas: não podem manipular a menos que ofereçam um grão genuíno de conteúdo” (Jameson, 1994, p.20-21).
Porém, esse conteúdo acaba por se reduzir a uma produção sem maiores pretensões. A despeito daquilo que pode escapar, geralmente as “mais profundas e fundamentais esperanças e fantasias da coletividade” (Ibid,, p.21) são recalcadas e resolvidas de formas não radicais, conformistas e apolíticas. Assim, ao mesmo tempo que esboçam um mal-estar em curso, tais filmes “ocultam a contradição” em vez de “acolhê-la na consciência de sua própria produção” (Adorno, Horkheimer; 1985, p.130). Desse modo, nos deparamos com um reforço inaudito daquela “afirmação” do existente preconizada pelos frankfurtianos.
Sob os mesmos jargões liberais de Margaret Tatcher e de Francis Fukuyama de que não há alternativa e de que a história acabou, toda essa estratégia de fuga permanece no nível mais superficial, redundando ora numa exaltação explícita de nosso tempo presente, ora em uma denúncia abstrata e sem objeto.
Desse modo, essa fuga encontra um horizonte intransponível: a própria sociedade capitalista. Diante desse “realismo capitalista”, a cultura submerge em meio a um “sentimento disseminado de que o capitalismo é o único sistema político e econômico viável, sendo impossível imaginar uma alternativa a ele”. O máximo que se observa é uma “extrapolação ou exacerbação de nossa própria realidade” em vez de “uma alternativa a ela” (Fisher, 2020, p.10). Como insiste Fisher (2020) em diálogo com vários outros autores, tornou-se mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo.
Ao nos debruçarmos brevemente sobre o mainstrain do cinema contemporâneo, notamos como a indústria cultural não recusa a representação das fissuras sociais, mas sistematicamente expulsa soluções e propostas mais radicais por meio de resoluções imaginárias e mágicas. A crítica ao capitalismo, esvaziada da crítica à economia política que a fundamenta, transforma-se em uma denúncia moral dos males do mundo. Como consequência, projeta-se no cinema nossa “ilusão de harmonia social” (Jameson, 1994, p.17), mesmo que ela conviva precariamente com um mal-estar coletivo e crescente, ele próprio causa do sucesso dos filmes de catástrofe. Lá no fundo, todos parecem suspeitar que o tempo do fim já chegou.
Enfim, o problema desses “filmes de evasão” não reside no fato de que eles dão as costas “a uma existência esvaziada de sua substância”, e sim porque não o fazem “de uma forma bastante enérgica” (Adorno, 1993, p.177). Sua impotência reside no mal-estar que carregam mas não elaboram: o mal-estar da frustração de um amanhã que poderia ser outro, mas que por hora se aproxima das catástrofes contadas por Hollywood.[i]
*Lucas Fiaschetti Estevez é doutorando em sociologia na USP.
Referências
ADORNO, Theodor. Resumé sobre indústria cultural. In: Sem Diretriz: Parva Aesthetica. São Paulo: Editora UNESP, 2021.
_________________. Minima Moralia: reflexões a partir da vida danificada. São Paulo: Editora Ática, 1993.
________________ ; HORKHEIMER, Max. A Indústria Cultural: O Esclarecimento como Mistificação das Massas. In: Dialética do esclarecimento. Rio de Janeiro: Zahar, 1985.
FISHER, Mark. Realismo capitalista: é mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo?. São Paulo: Autonomia Literária, 2020.
JAMESON, Fredric. Reificação e Utopia na cultura de massa. In: Crítica Marxista. Campinas: nº1, 1994.
______________ . Pós-modernidade e sociedade de consumo. In: Novos Estudos CEBRAP. São Paulo, n. 12, Jun. 1985, p. 16-26.
Nota
[i] O texto apresenta parte das ideias tratadas em uma comunicação apresentada no V Encontro de Teoria Crítica e Filosofia Política da USP, “100 anos depois: os sentidos de teoria crítica”, ocorrido entre os dias 26 e 29 de Setembro de 2023.
A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
CONTRIBUA