Narciso em férias

Elyeser Szturm, da série Céus
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Por LUCAS FIASCHETTI ESTEVEZ*

Comentário sobre o filme homônimo, um depoimento memorialístico de Caetano Veloso sobre seus dias na prisão durante a ditadura militar

Esmagado entre a pandemia que solapa inúmeras vidas (e que está sendo paulatinamente ignorada) e o autoritarismo que corrói a democracia (sempre relativizado pelo mantra do “bom funcionamento de nossas instituições”) jaz um Brasil que tem a violência, a desigualdade, o absurdo da política, o obscurantismo e, por que não, o uso da máscara com o nariz para fora como seus verdadeiros símbolos pátrios. Neste estado de abulia e letargia em que nos afundamos qualquer refúgio que tenha sobrevivido e concedido lugar à crítica e ao pensamento torna-se, invariavelmente, um espaço de resistência à barbárie que lá fora (e dentro de nós) continua soterrando as possibilidades de um país distinto do que presenciamos.

Nesse refúgio diminuto, Narciso em férias (2020), documentário que se debruça sobre a prisão do cantor Caetano Veloso durante o período da ditadura militar, ocupa um lugar de destaque. Ao longo de quase uma hora e meia, o filme aponta para outro Brasil, a partir da memória de um marginal-herói que em suas tão conhecidas músicas nunca se satisfez com a realidade cindida que viu à sua volta.

Citado pelo cantor algumas vezes em seu depoimento, o verso “esperança, morreste muito cedo” é entoado por Orlando Silva em Súplica, canção que era tocada alegremente por Caetano em seu apartamento nos dias que antecederam sua prisão e a de seu amigo, Gilberto Gil. Transplantado àqueles trágicos momentos de nossa história, o lamento romântico daquele “eu lírico” transformou-se em diagnóstico da falência de nossos projetos de nação, reiteradamente colocados sobre a mesa para, apressadamente, serem jogados no lixo. Naqueles dias, tal como agora, a sensação é a de que nosso país tinha “dado errado”.

Exibido no Festival de Veneza e disponível na plataforma de streaming da Rede Globo (Globoplay) desde o começo de setembro, o documentário coloca Caetano no papel de testemunha de sua própria história, entregando a ele a palavra que reconstituirá os meses em que ficou preso entre o final de 1968 e início de 1969, logo após a decretação do AI-5 (Ato Institucional nº 5), que cerceou a liberdade artística, instituiu a censura prévia e deu início à fase mais brutal da ditadura militar.

Os detalhes desse período trágico da vida de Caetano já tinham vindo a público em seu livro Verdade Tropical (Companhia das Letras, 1997), mas ganham outra dimensão ao serem contados e rememorados enquanto depoimento filmado. Seu tão famoso instrumento de trabalho, a voz, tece a memória daqueles dias.  Dispensado do peso da escrita, Caetano preenche seu relato de uma realidade que embora já tenha ocorrido, se joga violentamente contra o nosso presente e nele se reflete, se infiltra, nos assusta.

Enquadrado sozinho e a certa distância da câmera, vemos a princípio a figura de um homem tornado diminuto frente a uma grande e cinzenta parede de concreto armado que ocupa todo o fundo da imagem. De sua superfície cinzenta e sem porosidade, ela acaba por reforçar a própria aridez e frieza dos fatos narrados. Sentado em sua frente, Caetano lhe dá as costas – a memória do cárcere faz com que o cantor se agigante, seu depoimento rompe com o silêncio e com o eco em forma de denúncia e crítica. Quando pega o violão e canta, o concreto se desmancha e só vemos as mãos e os olhos do músico a investir nos acordes de sua música. Não há prisão que torne aquele som mudo.

Conforme fala, relembra e se emociona Caetano inverte a prioridade lógica dos fatos narrados e se coloca em primeiro plano: das primeiras semanas em uma solitária ao interrogatório que levaria meses para acontecer, o centro de gravidade de seu discurso não é a materialidade vazia dos eventos, mas o estado debilitado e dilacerado de seus sentidos. Durante todo o relato, não há fato sem a interpretação da angústia, do medo e da incerteza que o jovem cantor vivenciava. Preso sem saber por que, a desorientação ordena suas palavras, seca seu gozo e seu choro, silencia sua voz e seu violão. Privado de todos e de tudo, Caetano reconstrói sua memória a partir da ansiedade em se ver livre daquilo e de entender o que acontecia.

Os motivos da prisão só lhe foram revelados nos últimos dias do cerceamento de sua liberdade. Segundo os militares, Caetano estava sendo acusado de ter desonrado o hino nacional durante um show ao lado de Gil e os Mutantes que ocorrera na Boate Sucata. De acordo com eles, os músicos tinham cantado o hino nacional de forma paródica e jocosa. Para o regime, Caetano praticava a “arte de terrorismo cultural”. Segundo os autos do processo, lidos pelo cantor em determinado momento do filme, sua figura era tida como uma das principais responsáveis pelo surgimento de uma música de protesto marcada por um caráter subversivo e “desvirilizante”.

Mesmo passados tantos anos, a inventividade de tais acusações ainda chocam o cantor – que provou aos militares, através de testemunhas, que o hino nem tinha sido cantado naquele dia. Ao ler tais passagens, a angústia rememorada por Caetano se transforma em riso – aquele riso desesperado diante de um interrogatório esdrúxulo que, a depender de alguns atuais ministros, poderia voltar a ser documento de Estado.

Quanto à sua forma, o documentário acerta ao não recorrer a reconstituições e reencenações dos fatos narrados por Caetano, recurso infelizmente tão presente em muitos filmes do gênero. Neles, a tendência de transformar a memória dos sobreviventes e das testemunhas em imagens hollywoodicamente reproduzíveis e aceitáveis sempre torna o horror passível de um consumo estético desinteressado, num flerte sem pudor com os programas policiais e sensacionalistas que preenchem a grade horária de nossa televisão aberta. A tortura, o cárcere e a violência tornam-se, nesses produtos da indústria cultural, imagens edulcoradas que esvaziam a própria força do relato, num deslocamento neutralizante da denúncia contida nas palavras para a beleza cinematográfica das imagens que mostram o terror, mas que não chocam.

Evidente que, a depender da forma como o relato é ficcionalizado e reconstituído, tal banalização do fato pode ser evitada, dando lugar ao aprofundamento da denúncia por meio de sua representação dramática. Nesse caso, a reencenação pode dar corporeidade às referências históricas ao evitar encaixar a experiência que é contada nos moldes dos clichês narrativos e das imagens esteticamente belas.

É o que faz, por exemplo, o documentário Torre das Donzelas (2018), que dá voz a mulheres presas e torturadas durante o regime militar por suas atividades políticas “subversivas”. Através de uma alternância entre o depoimento e a dramaturgia, ali a história se completa. Indo na direção contrária – mas tão potente quanto, Narciso em férias explicita a força do discurso. Nele, a palavra da vítima, seus gestos e seus olhos bastam enquanto mensagem capaz de reproduzir e reencenar tudo aquilo que conta – nesse caso, o depoimento reconstrói o fato e o supera enquanto reflexão. Não há espaço para a simulação nem reconstituição. O relato de Caetano é, nesse sentido, autossuficiente.

Enquanto escutamos Caetano, não permanecemos no passado de seu relato. Suas palavras, embora sempre endereçadas ao que já aconteceu, são invariavelmente jogadas diretamente contra o presente. A realidade externa à própria obra – a afinidade entre o que é dito do passado e o que vemos em nosso país hoje – se impõe sobre seu conteúdo interno, e nos obriga a ouvir seu relato como uma advertência direcionada ao presente. Como contemporâneos de uma política da morte, suas palavras falam concomitantemente de ontem e de hoje, do regime militar e da caquistocracia de nosso tempo.

Sua experiência no cárcere, nesse sentido, parte do passado para expor as contradições do presente. O filme revela, como Caetano sublinhou bem em Verdade Tropical, como sua passagem pela cadeia revelou inúmeros “conteúdos inconscientes do imaginário brasileiro – e do Zeitgeist”.

Tais associações entre o que é narrado pelo filme e o que é estampado nas capas de jornais de hoje se devem a imutabilidade do fracasso de nossa própria situação. O Brasil que prendeu Caetano, que torturou militantes de esquerda, que censurou inúmeras manifestações culturais e que matou centenas de opositores é o mesmo Brasil de hoje, que tortura e mata jovens negros e periféricos nos porões pútridos das cadeias ou no meio da rua à vista de todos, que sucateia a cultura e suas instituições, que transforma as milhares de mortes pelo vírus num dado irrelevante e naturalizado – estado de coisas resultante de nossa abissal desigualdade, fonte originária e matriz fundante de nossa sociedade. Infelizmente, as forças progressistas e críticas que antes ocuparam as cadeias ou o exílio continuam hoje entregues ao desnorteamento causado pelas pancadas incessantes da Realpolitik. Nesse sentido, o mal-estar de seu relato reflete e é refletido por nossa incompreensão do presente.

Realçada sua potência, também é necessário se ater aos limites da memória enquanto refúgio e espaço de crítica, ou seja, pensar em que medida o relato de Caetano e de tantos outros sobre as atrocidades do período militar ajudam na compreensão do país e de sua natureza – ou, no limite, de que forma rememorar a barbárie é contribuir para sua não repetição. De certa forma, o problema a ser investigado não está na força do depoimento em si, mas em considerá-lo suficiente por si mesmo, ignorando assim a forma e a intensidade que será recebido por um público tão acostumado à violência, ao horror e a morte. É necessário se atentar para aquele que o escuta e como o escuta.

Evidentemente, é inegável o papel formativo e pedagógico que a memória e sua preservação ocupam na reconstrução do presente. Vide, por exemplo, todo o esforço alemão do pós-guerra em relação ao período nazista. Lá, viu-se um esforço coordenado de setores da sociedade civil em formular políticas de Estado que não só se debruçam até hoje sobre a preservação da memória, mas dificultam legalmente e juridicamente o flerte com aquele passado trágico. Porém, não estamos na Alemanha.

Nossa história democrática nasceu, vergonhosamente, sob a lei da Anistia e seus danosos efeitos sobre o apagamento da memória daquele período. Saímos da ditadura militar marcados pelo perdão concedido a atos imperdoáveis. Até então resguardados nos quartéis, hoje os generais ocupam o palácio no Planalto, e não se faz mais necessário recorrer a um golpe para que assumam o poder. Nesta república capenga, generais são exaltados como heróis e defensores dos direitos humanos são considerados cúmplices da violência, a cultura é reduzida às cinzas e o passado é pintado num verde amarelo que esconde o vermelho do sangue de seus mortos.

Diante disso tudo, não basta ouvir, assistir e se emocionar com tais memórias do passado. A solidariedade para com o sofrimento alheio é só o primeiro passo – o pressuposto – para que o afeto se transforme em ação. Para que a memória se realize enquanto crítica efetiva e permita assim a construção de novos arranjos políticos e sociais, é necessário que ela deixe de ser somente depoimento e rememoração e se transforme em uma ação orientada ao presente.

Diante do relato assustador de Caetano, é urgente que se responda: O que faz alguém ouvir a tais depoimentos e insistir no bolsonarismo? O que explica a dissociação completa entre a barbárie denunciada na tela e a percepção da atualidade destroçada? Como no mito de Narciso, nós já nos afogamos em nosso reflexo, no ego de nossas posições esclarecidas e superiores. É hora de nos voltarmos às margens – ir além da imagem, tocar o real e destruir o que nele é destrutivo ao homem. Permitir, nas palavras do próprio Caetano, “a doçura do existir”.

Post scriptum

O cinema brasileiro tem resistido com força contra toda a maré autoritária que ameaça sua existência. Com a pandemia, somos entregues a uma experiência cinematográfica reduzida e privada, mas nem por isso, menos potente. Em mais um esforço de sobrevida e na esteira dos temas relativos à memória e a denúncia da ditadura militar, o 25º Festival Internacional de Documentários “É tudo verdade” exibirá, em datas e horários que podem ser conferidos no site (http://etudoverdade.com.br/) os documentários Fico te devendo uma carta sobre o Brasil, sobre os efeitos trágicos da ditadura sobre distintas gerações de uma família, e Libelu – Abaixo a Ditadura, que dá voz aos integrantes do movimento estudantil Liberdade e Luta. O festival conta com inúmeros outros títulos que merecem nossa atenção. Inteiramente online e gratuito, é mais uma oportunidade de nos debruçarmos sobre o Brasil que pensa a si mesmo por meio de um cinema que bravamente insiste em tocar em suas feridas mais profundas – sem anestesia.

*Lucas Fiaschetti Estevez é mestrando do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade de São Paulo

Referência


Narciso em férias
Brasil, 2020, documentário
Direção e roteiro: Renato Terra e Ricardo Calil
Montagem: Henrique Alqualo e Jordana Berg
Direção de Fotografia: Fernando Young
Elenco: Caetano Veloso e Gilberto Gil

 

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