Como um certo feminismo se converteu em empregada do capitalismo

Carlos Zilio, AUTORETRATO AOS 26, 1970, caneta hidrográfica sobre papel, 47x32,5
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por Nancy Fraser*

Ao invocar a crítica feminista dos salários da família para justificar a exploração, ela se vale do sonho da emancipação das mulheres para lubrificar o motor da acumulação capitalista

Como feminista, sempre presumi que, lutando pela emancipação das mulheres, estava construindo um mundo melhor, mais igualitário, justo e livre. Ultimamente, porém, fiquei preocupada que os ideais originais promovidos pelas feministas estejam servindo a objetivos muito diferentes.

Estou particularmente preocupado que nossas críticas ao sexismo estejam justificando novas formas de desigualdade e exploração.

Em uma cruel reviravolta do destino, temo que o movimento de libertação das mulheres tenha acabado se envolvendo em uma “amizade perigosa” com os esforços neoliberais para construir uma sociedade de livre mercado.

Isso poderia explicar por que as ideias feministas, que uma vez formaram parte de uma visão de mundo radical, são cada vez mais expressas em termos de individualismo.

Se as feministas criticaram uma sociedade que promove o oportunismo no trabalho, agora as mulheres são aconselhadas a adotá-lo e praticá-lo. Um movimento que priorizava a solidariedade social, agora bate palmas às mulheres empresárias.

A perspectiva que anteriormente valorizava o “cuidado” e a interdependência agora encoraja a promoção individual e a meritocracia.

O que está por trás dessa reviravolta é uma mudança radical no caráter do capitalismo. O Estado regulador do capitalismo, no pós-guerra após a Segunda Guerra Mundial, deu lugar a uma nova forma de capitalismo “desorganizado”, globalizado e neoliberal. A segunda onda do feminismo emergiu como uma crítica do primeiro, mas tornou-se serva do segundo.

Graças à retrospectiva, podemos ver hoje como o movimento de libertação das mulheres visava simultaneamente dois futuros possíveis muito diferentes. No primeiro cenário, foi previsto um mundo em que a emancipação de gênero andava de mãos dadas com a democracia participativa e a solidariedade social. No segundo, uma nova forma de liberalismo foi prometida, capaz de garantir a homens e mulheres os benefícios da autonomia individual, maior escolha e promoção pessoal por meio da meritocracia. A segunda onda de feminismo era ambivalente a esse respeito. Compatível com qualquer uma das visões da sociedade, ele também foi capaz de realizar duas elaborações históricas diferentes.

Tal como vejo, a ambivalência do feminismo foi resolvida, nos últimos anos, em favor do segundo cenário, o liberal-individualista. Mas não porque fomos vítimas passivas da sedução neoliberal. Pelo contrário, nós mesmas contribuímos com três ideias importantes para esse desenrolar.

Uma dessas contribuições foi nossa crítica ao “salário da família”: do ideal da família, com o homem que ganha o pão e a mulher dona de casa, que era central para o capitalismo com um estado regulador. A crítica feminista a esse ideal agora serve para legitimar o “capitalismo flexível”. Afinal, essa forma atual de capitalismo depende fortemente do trabalho assalariado das mulheres. Especialmente sobre o trabalho de menor remuneração em serviços e manufatura, realizado não apenas por jovens solteiras, mas também por mulheres casadas e com filhos; não apenas por mulheres discriminadas racialmente, mas também por mulheres de praticamente todas as nacionalidades e etnias.

Com a integração das mulheres nos mercados de trabalho em todo o mundo, o ideal do salário familiar, do capitalismo com um estado regulador, está sendo substituído pela norma mais nova e mais moderna, aparentemente sancionada pelo feminismo, da família formada por dois assalariados.

Não parece importar que a realidade subjacente, no novo ideal, seja a redução dos níveis salariais, a redução da segurança no emprego, a diminuição do padrão de vida, o aumento acentuado do número de horas de trabalho assalariado por família, a exacerbação do turno duplo, agora triplo ou quádruplo, e o aumento da pobreza, cada vez mais concentrado nas famílias chefiadas por mulheres.

O neoliberalismo nos veste como um macaco de seda através de uma narrativa sobre o empoderamento das mulheres.

Ao invocar a crítica feminista dos salários da família para justificar a exploração, ela se vale do sonho da emancipação das mulheres para lubrificar o motor da acumulação capitalista.

O feminismo, ademais, deu uma segunda contribuição à ética neoliberal. Na era do capitalismo do estado regulador, criticamos, com razão, a estreita visão política que propositadamente se concentrava na desigualdade de classe e era incapaz de se debruçar em outros tipos de injustiças “não econômicas”, como a violência doméstica, agressões sexuais e opressão reprodutiva. Rejeitando o “economismo” e politizando o “pessoal”, as feministas expandiram a agenda política para desafiar as hierarquias do status baseado em construções culturais sobre diferenças de gênero. O resultado deveria ter levado ao alargamento da luta pela justiça, para abranger tanto o cultural quanto o econômico. Porém o resultado foi uma abordagem tendenciosa da “identidade de gênero”, à custa de marginalizar os problemas do “pão com manteiga”. Pior ainda, a mudança do feminismo para a política de identidade se encaixou sem atrito com o avanço do neoliberalismo, que buscava nada além do que apagar toda a memória da igualdade social. De fato, enfatizamos a crítica do sexismo cultural precisamente no momento em que as circunstâncias exigiam redobrar nossa atenção à crítica da economia política.

Por fim, o feminismo contribuiu com uma terceira ideia ao neoliberalismo: a crítica ao paternalismo do Estado de bem-estar social. Sem dúvida e progressivamente, na era do capitalismo do estado regulador, essas críticas convergiram com a guerra neoliberal contra o “estado-babá” e seu apoio mais recente e cínico às ONGs. Um exemplo ilustrativo é o caso dos “microcréditos”, o programa de pequenos empréstimos bancários para mulheres pobres no Sul global. Apresentados como empoderamento de baixo para cima, alternativa ao burocratismo de cima para baixo, de projetos estatais, os microcréditos são apontados como o antídoto feminista à pobreza e à dominação das mulheres.

O que é esquecido, no entanto, é uma coincidência perturbadora: o microcrédito floresceu exatamente quando os estados abandonaram os esforços macroestruturais para combater a pobreza, esforços que não podem ser substituídos por empréstimos de pequena escala.

Também neste caso, uma ideia feminista foi recuperada pelo neoliberalismo. Uma perspectiva dirigida, originalmente, a democratizar o poder do Estado para capacitar os cidadãos agora está sendo usada para legitimar a mercantilização e os cortes na estrutura estatal.

Em todos esses casos, a ambivalência do feminismo foi resolvida em favor do individualismo (neoliberal). No entanto, o cenário alternativo de solidariedade ainda pode estar vivo. A crise atual oferece a possibilidade de puxar esse fio mais uma vez, de modo que o sonho da libertação das mulheres seja novamente parte da visão de uma sociedade solidária. Para chegar lá, as feministas precisam romper essa “amizade perigosa” com o neoliberalismo e reclamar nossas três “contribuições” para nossos próprios fins.

Primeiro, devemos romper o elo espúrio entre nossas críticas aos salários da família e o capitalismo flexível, defendendo um modo de vida que não gire em torno do trabalho assalariado e valorize atividades não remuneradas, incluindo, mas não apenas, “Cuidados”.

Segundo, devemos bloquear a conexão entre nossa crítica ao economismo e a política de identidade, integrando a luta para transformar o  status quo  dominante que prioriza os valores culturais da masculinidade, com a batalha pela justiça econômica. Finalmente, devemos cortar o falso elo entre nossas críticas à burocracia e o fundamentalismo de livre mercado, reivindicando a democracia participativa, como uma maneira de fortalecer os poderes públicos, necessários para limitar o capital, em nome da justiça.

*Nancy Fraser é uma filósofa americana, feminista e professora de Ciências Políticas e Sociais da New School University

Publicado no site La Tizza, em tradução para o espanhol do original: Fraser, Nancy, “How feminism became capitalism’s handmaiden, and how to reclaim it”, The Guardian, 14 de outubro de 2013.

Tradução: Ricardo Kobayaski

 

Outros artigos de

AUTORES

TEMAS

MAIS AUTORES

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
Jorge Branco Carla Teixeira Juarez Guimarães Paulo Capel Narvai Daniel Afonso da Silva Tales Ab'Sáber Matheus Silveira de Souza Anderson Alves Esteves Flávio R. Kothe Fernando Nogueira da Costa Annateresa Fabris Roberto Noritomi Caio Bugiato Francisco de Oliveira Barros Júnior Luiz Eduardo Soares Antonio Martins Manchetômetro João Feres Júnior Fernão Pessoa Ramos Carlos Tautz Mário Maestri Michael Roberts Roberto Bueno Elias Jabbour Tadeu Valadares José Machado Moita Neto Samuel Kilsztajn Ronaldo Tadeu de Souza Afrânio Catani Lincoln Secco Ricardo Antunes Airton Paschoa Leonardo Sacramento Henry Burnett Heraldo Campos Denilson Cordeiro Antonino Infranca Luciano Nascimento João Paulo Ayub Fonseca Luiz Roberto Alves Ladislau Dowbor Dênis de Moraes Eleutério F. S. Prado Manuel Domingos Neto Gilberto Maringoni Vanderlei Tenório Remy José Fontana Benicio Viero Schmidt Atilio A. Boron Jorge Luiz Souto Maior Lorenzo Vitral Ricardo Musse Celso Favaretto Marcelo Módolo João Sette Whitaker Ferreira Vinício Carrilho Martinez André Singer Daniel Brazil Kátia Gerab Baggio Bruno Fabricio Alcebino da Silva Rafael R. Ioris Luiz Marques Alysson Leandro Mascaro Érico Andrade Luiz Werneck Vianna Celso Frederico Claudio Katz Gilberto Lopes Vladimir Safatle Paulo Nogueira Batista Jr Paulo Sérgio Pinheiro Maria Rita Kehl José Costa Júnior Fábio Konder Comparato Leonardo Avritzer Marjorie C. Marona João Lanari Bo Igor Felippe Santos Luiz Bernardo Pericás Julian Rodrigues Paulo Fernandes Silveira Jean Pierre Chauvin Eugênio Trivinho Leonardo Boff Paulo Martins Tarso Genro José Micaelson Lacerda Morais Plínio de Arruda Sampaio Jr. Rubens Pinto Lyra Thomas Piketty Daniel Costa João Adolfo Hansen Rodrigo de Faria Milton Pinheiro Eleonora Albano João Carlos Salles Walnice Nogueira Galvão Luiz Renato Martins Michael Löwy Luis Felipe Miguel Marilena Chauí Eduardo Borges Lucas Fiaschetti Estevez Salem Nasser Marcus Ianoni Eliziário Andrade André Márcio Neves Soares Jean Marc Von Der Weid Boaventura de Sousa Santos Ricardo Fabbrini Osvaldo Coggiola Eugênio Bucci Sergio Amadeu da Silveira Priscila Figueiredo Francisco Pereira de Farias Armando Boito José Dirceu Everaldo de Oliveira Andrade Bento Prado Jr. Flávio Aguiar Berenice Bento Sandra Bitencourt Liszt Vieira Marilia Pacheco Fiorillo Yuri Martins-Fontes Leda Maria Paulani Valerio Arcary Mariarosaria Fabris Alexandre de Freitas Barbosa João Carlos Loebens Ronald León Núñez Andrew Korybko Marcos Silva José Luís Fiori Valerio Arcary Marcos Aurélio da Silva Bruno Machado José Geraldo Couto Chico Whitaker Francisco Fernandes Ladeira Ronald Rocha Luís Fernando Vitagliano Renato Dagnino Luiz Carlos Bresser-Pereira Bernardo Ricupero Slavoj Žižek Marcelo Guimarães Lima Anselm Jappe Ricardo Abramovay Gabriel Cohn Henri Acselrad Alexandre Aragão de Albuquerque Alexandre de Lima Castro Tranjan Chico Alencar Otaviano Helene Gerson Almeida José Raimundo Trindade Dennis Oliveira Ari Marcelo Solon Antônio Sales Rios Neto

NOVAS PUBLICAÇÕES

Pesquisa detalhada