Ensaio sobre a pedagogia da indiferença

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Por ROGÉRIO GIORGION*

As escolas praticam a lógica de transformar crianças em produtos que precisam atingir resultados, para que seus gestores sejam reconhecidos como excelentes profissionais

“Tradição não é o culto das cinzas, mas a preservação do fogo.”
Gustav Mahler

Vivemos numa sociedade onde a indiferença é uma característica marcante dos chamados vencedores. Mãe do ódio e do narcisismo, e filha da soberba, a indiferença bloqueia o espírito e o discernimento, levando as pessoas a só enxergar o que perdem, e não querem perder, nunca, nada. Esta lógica está cada vez mais normalizada em nossa sociedade. Com base nisso apresento uma primeira reflexão sobre o papel da escola na construção, manutenção e ampliação dessa lógica. Esse ensaio pretende comparar o que a escola faz hoje com a educação com o que a indústria de alimentos fez – e ainda faz – com a nossa relação com a comida.

Técnicas de refinamento e conservação de alimentos existem desde a Antiguidade. Processos como moagem, peneiramento, secagem, congelamento, salga e defumação ampliaram o uso dos alimentos, ao retardar a decomposição, além de facilitar a digestão. Isso permitiu o transporte e o armazenamento de alimentos por períodos mais longos, possibilitando a sobrevivência de nossos ancestrais durante períodos de seca ou outras adversidades climáticas.

No entanto, com a chegada da Revolução Industrial e a necessidade de aumentar a produção e a produtividade agrícola para sustentar uma crescente população urbana, se desenvolveu uma indústria alimentícia que alterou profundamente a maneira como nos relacionamos com o alimento.

Um exemplo disso é o açúcar. O melaço ou a rapadura contêm uma ampla gama de nutrientes (ferro, cálcio, magnésio, cobre, potássio, manganês, selênio, etc.) necessários para contrabalançar os efeitos nocivos do próprio alimento, além de contribuir para uma saúde melhor em geral. O super refinamento transformou o açúcar em um produto de absorção rápida e fácil, aumentando o risco de doenças cardiovasculares e diabetes, inclusive estudos associam uma diminuição da capacidade cognitiva ao consumo de açúcar na infância. 

Outro exemplo é o arroz, que perde cerca de 75% de seus nutrientes durante os processos de refinamento e polimento, ou a farinha de trigo, cujo quadro é ainda mais preocupante. O farelo de trigo, geralmente utilizado para alimentação animal e bioenergia, possui muito mais nutrientes do que a  farinha refinada tipo I, consumida pelos seres humanos.

Finalmente, temos a invenção dos alimentos ultra processados, que quase não contêm nutrientes, mas possuem uma variedade de aditivos químicos que “realçam” o sabor e o aroma, tornando-se uma “opção” alimentar para milhões de pessoas ao redor do mundo.

A relação do homem com o alimento passou a ter como intermediária uma indústria que, em busca de lucros cada vez maiores, não tem compromisso com a qualidade alimentar da população (apesar de suas propagandas), chegando ao ponto de transformar alguns alimentos em drogas.

As consequências desses processos para o ser humano são bem conhecidas: adoecimento em massa. No entanto, para alguns que veem suas contas bancárias crescer, o adoecimento massivo não é um problema, mas uma oportunidade. Isso permite a produção de remédios de uso diário, suplementos alimentares, alimentos dietéticos e sem glúten etc. Do ponto de vista do crescimento do PIB, o adoecimento era, e é, de fato, um bom negócio. Ironicamente, surge também uma indústria de alimentos orgânicos e integrais, pouco refinados, permitindo que alguns empresários cobrem valores muito maiores por esses alimentos por serem mais saudáveis.

Observamos um fenômeno semelhante ocorrendo no contexto da Educação Básica.

Sou pai e sei que decidir em qual escola colocaremos nossos filhos é sempre um grande desafio. As preocupações referentes à sustentabilidade desse futuro adulto, em todas as dimensões, causam medo e angústia. Normalmente, escolhemos uma escola que apresenta resultados que imaginamos que nosso filho alcançará; isso faz com que o processo da criança na escola já comece cheio de metas a cumprir, assim como os critérios para que um grão de arroz ou um saco de farinha atinjam os padrões desejados pelos produtores.

No fundo, os pais sabem que não serão todas as crianças que atingirão as metas, os objetivos da escola, mas, quem sabe, se seu filho fizer tudo que ele tem que fazer, o que a escola demandar, não se torne aquele grãozinho de arroz tão branquinho e lapidado?

Desde cedo, a escola opera uma grande intervenção no corpo da criança. O primeiro refino, o primeiro peneiramento. Historicamente, a escola tinha e tem essa demanda, em certa medida correta. O problema é que, atualmente, as crianças passam uma quantidade absurda de tempo na escola, muito mais do que há alguns anos, o que poderia ser bom, se o foco da escola fosse verdadeiramente a criança. Mas sabemos que não é. As escolas precisam apresentar resultados (o que significa que a criança precisa apresentar resultados). A criança fica sob demanda o tempo todo. E aí começam a surgir os primeiros “rejeitos” do peneiramento, as primeiras crianças que não se submetem a essa lógica.

No início, são classificadas como crianças de inclusão e surgem as recomendações para as famílias buscarem identificar com os profissionais médicos quais padrões de inclusão a criança possui. As famílias, comprometidas em oferecer o melhor para seus filhos e acreditando na recomendação da escola, começam a peregrinação pelos diferentes tipos de médicos e terapeutas, em busca dos laudos que, inevitavelmente, concordarão com a escola a partir de algum diagnóstico enviesado pela necessidade de produtividade da criança. Percebam que a maioria dos laudos de transtornos é baseado em diversas perguntas sobre o comportamento das crianças, comportamento que sabemos estarem vinculados às demandas que a própria escola gera, mas que não são considerados nesse diagnóstico. Ou seja, a maioria dessas crianças se não estivesse nessa demanda artificial criada pela escola, provavelmente não receberiam esse diagnóstico.

Após os diagnósticos, um ou mais profissionais são convocados para ajudar a criança a participar novamente dos processos de refinamento e polimento coletivos conduzidos pela escola. Para a lógica capitalista esse processo cria oportunidades de ganho, novas profissões. São criados métodos “eficazes”, medicamentos, terapias e acompanhamentos para que as crianças voltem ao processo de refinamento de maneira mais eficiente. Todas precisam ser iguais na resposta à máquina de industrialização.

Lembro da minha viagem ao Peru e minha surpresa ao descobrir que existia uma variedade absurda de cenouras, milhos e batatas, de cores e texturas diferentes, coisa que, se pensarmos, faz muito mais sentido, mas que, acostumados com os produtos otimizados e ranqueados no mercado, não nos preocupa. Agora estão fazendo exatamente isso com as crianças, acabando com a diversidade de formas e lógicas de estar no mundo. Só cabe uma, de preferência aquela mais adaptada, a que gera mais produtividade e excelência: queremos que nossos filhos sejam a batata inglesa, aquela que sabemos que todos vão querer comprar.

As crianças, nesse sentido, são obrigadas a se tornarem mais produtivas e eficientes. Algumas conseguem se adaptar a essa expectativa e respondem à lógica escolar para caber no furinho da peneira, voltando a sonhar em se tornar uma criança premium, com selo de qualidade, enquanto outras vão se acostumando com os nomes que lhe são dados. O rótulo de inclusão vai gerando vários outros sub-rótulos, nomes, CIDs, terapias, acompanhamentos. A criança classificada como de inclusão passa a ter que trabalhar mais horas que as outras para, quem sabe, atingir o patamar que a escola vende aos pais. Organizam-se equipes multidisciplinares com cada vez mais adultos, cercando aquela pequena vida, com demandas claras da escola, do médico e da família, que querem que aquela criança se torne igual aos grãozinhos que aceitam e se organizam dentro da lógica produtiva. Na tentativa de corresponder às expectativas do universo do mundo adulto, acha que, se não o fizer, não será amada pelos pais, professores e amigos.

Os pais, por sua vez, precisam trabalhar mais e mais, se ausentar do dia a dia e do verdadeiro cuidado, para conseguir mais dinheiro para dar o “melhor” para seu filho. Quando era pequeno, lembro que uma criança saudável era elogiada por parecer alimentada com leite Ninho, considerado melhor que o leite materno, por ser refinado e enriquecido. Vimos, por amor, muitos pais darem leite ninho no lugar de leite materno, assim como hoje vemos pais se engajarem no sufocamento de seus filhos, pela busca do padrão de qualidade que a escola oferece.

Quando as crianças avançam nos primeiros processos de refinamento e peneiramento, a escola precisa garantir que elas performem adequadamente para cumprirem as promessas de resultados. Professores são levados a criar métodos “eficazes” que garantem que a maioria das crianças consiga responder corretamente a algumas perguntas para provar que entenderam, independentemente de terem realmente entendido ou não, o que de fato não é um problema da instituição. A escola precisa mostrar o resultado que vende e “provar” que possui a melhor metodologia e o melhor grupo de professores – entendendo-se o melhor como o grupo que faz a extração máxima dos alunos.

Algumas crianças começam novamente a se sentir perdidas. Não conseguem encontrar sentido no que estão fazendo e não apresentam o desempenho esperado. Isso representa outra oportunidade para o capital: novas profissões, mais dinheiro em circulação.

Outras crianças são “resgatadas” e, após sessões extras de Matemática ou Português, consultas com psicólogos, psiquiatras e fonoaudiólogos, conseguem se “recuperar”. Claro, não podemos esquecer a medicação e o treinamento intensivo, que exigem que essas crianças dediquem ainda mais tempo às demandas escolares, se convençam que tem alguma coisa errada com elas e façam o que mandam ela fazer. Assim, mesmo que elas não entendam o que os exercícios pedem, se conseguem fazê-los, são festejadas, aprendem a sobreviver nessa usina/escola e avançam. Muitas vão ficando no caminho, faz parte do processo de refino. Recentemente saiu uma pesquisa na Folha de São Paulo nos contando que cerca de 50% dos estudantes brasileiros não terminam o Ensino Fundamental na idade correta. Temos, portanto, nossa indústria escolar fazendo o que sabe fazer, peneirando e refinando crianças.

Assim como o açúcar que passa por vários processos de refino até atingir o padrão máximo, vemos a escola em suas infindáveis avaliações, medindo e remedindo para detectar qualquer irregularidade, qualquer diferença, e polindo cada vez mais. Todos têm que dar o mesmo resultado.

À medida que se aproximam das séries finais, após várias etapas de peneiramento e trituração, observamos grupos de crianças e adolescentes com medo, assustados. A maioria segue ou já seguiu algum tratamento medicamentoso, e não é raro vermos um aumento na narcotização entre os adolescentes. Não me refiro à experimentação de substâncias na tentativa de entender seu funcionamento e seus efeitos, mas ao uso frequente de álcool, energéticos, café (tem escolas que chegam a oferecer café livremente para seus alunos vestibulandos), cigarros eletrônicos, açúcar, entre outros. Essa narcotização funciona como um anestésico, ajudando-os a suportar a dor causada pelos processos de refino intensivo realizados nas escolas.

Nossos jovens se sentem diminuídos, assustados. Não sabem o que precisam fazer para serem amados, sabem apenas que precisam se destacar, serem os melhores. Afinal, como muitos dizem: -É a única coisa que fazem na vida.

Conforme se aproximam do final do ciclo escolar, começam as classificações. Algumas crianças são classificadas como tipo II, outras como tipo I, e existem aquelas poucas que conseguem o selo de exportação, sendo aceitas em qualquer faculdade, performam em qualquer vestibular. Elas dominaram a arte de se polir até ficarem em carne viva. Mesmo que não queiram os cursos mais competitivos, vão cursá-los, não podem descartar o talento e os anos de investimento em refino e processamento.

Embora esse fenômeno pareça ser mais comum em escolas particulares do que em escolas públicas, eu tenho minhas dúvidas.

Quando observo a expansão massiva dos sistemas de ensino e vejo algumas secretarias de educação tentando abolir livros, outras censurando livros, e várias tentando implementar um sistema que limita o professor a replicar slides e atividades prontas, percebo que as instituições que ainda chamamos de escola estão se modernizando e acelerando suas transformações em indústrias, proletarizando os professores e transformando as crianças em produtos de uma linha de montagem.

O pensamento crítico, a criatividade, a inovação, a relação leve com o saber e a curiosidade são aspectos descartados para gerar jovens adultos insensíveis, frágeis afetivamente, sempre em busca de aprovação e reconhecimento. Esses jovens buscam incessantemente entender o sentido de tudo isso, alguns não conseguem lidar com isso e recorrem ao suicídio. As escolas ficam chocadas por um tempo e, depois de algumas reflexões, contratam mais especialistas para ajudar diretores, coordenadores, professores e alunos a suportar tudo isso. Assim, mais acompanhamento, mais profissões, mais dinheiro circula. Mesmo em casos extremos, a tragédia se torna um bom negócio para a indústria escolar.

Estes processos multifacetados, que chamo de pedagogia da indiferença ou pedagogia da soberba, têm grande influência na construção da sociedade em que estamos vivendo. Ensinamos as crianças a ignorar a opinião dos outros, a menos que sejam autoridades com respostas “corretas”. Incentivamos cada um a ser o melhor, não importa o caminho a ser seguido, nem o que significa ser o melhor.

A empatia, a compaixão, a fraternidade e o vínculo, que nos permitiam ver o mundo pelos olhos dos outros, foram descartados nesta incrível máquina de refinamento. Temos, como consequência, uma sociedade em que aprendo a repetir o que alguém em quem confio diz. Assim Terra plana, cloroquina e outras sandices passam a ter espaço nessa sociedade em que se aprende a repetir o que pessoas em quem confiamos dizem. Aprendemos assim nas escolas. Repetimos isso na vida em sociedade. Ou seja, se vivemos na sociedade que essas escolas ajudaram a construir e podemos ter chance de mudá-la, mudando essa lógica escolar.

Antes de finalizar, gostaria de lançar luz a outro aspecto que esse processo gera. Sabemos que o estresse pode ser algo extremamente positivo para o ser humano. Enfrentar uma situação estressante, em condições de enfrentamento, e que ao final permite que o corpo retome sua homeostase, é algo muito positivo. O corpo, em situação de estresse, ativa diversos processos: Quando o sistema límbico e a amígdala cerebral entram em campo, o corpo passa a produzir cortisol, adrenalina e noradrenalina. O fígado libera maior quantidade de açúcar no sangue para nutrir o cérebro com energia rápida, o pulmão intensifica a respiração, diminui o sangue nas extremidades do corpo. Bocas secas e ampliação da pupila nos deixa com mais foco e atenção. Nosso corpo nos ajuda a reagir. Aprendemos muito com esse processo. Nos superamos. Nos reinventamos. Aprendemos a dar novas respostas. Mas para ser bom, esse processo precisa ser curto e o corpo precisa colocar em campo o sistema parassimpático, gerando, em seguida do estresse, uma sensação de relaxamento profundo, que nos acalma e nos desliga.

Por outro lado, viver o estresse crônico, em que o tempo todo está a prova, o tempo todo sob demanda, sem ao menos saber direito o que teria que fazer, gera muito malefícios de curto e longo prazo. O corpo vai perdendo a sua capacidade de se defender. O ser humano que vive esse estresse crônico inevitavelmente vai se tornando ansioso, depressivo, irritado, mal-humorado. Vai ficando cada vez mais recluso, com raiva. O sono começa a ficar comprometido, em várias pessoas percebemos um aumento de peso, normal pela compensação em comer muito, dores no corpo surgem. O sistema digestivo começa a entrar em crise, refluxos e azia passam a ser do dia a dia da pessoa estressada. Começamos a perder memória e capacidade de abstração. Ou seja, entramos em fadiga.

A escola impõe atualmente a nossas crianças esse segundo tipo de estresse, com demandas sufocantes e inviáveis. O suicídio entre os jovens é a segunda causa de morte nessa faixa de idade. A síndrome de Burnout passa a ser algo comum entre adolescentes.

Por fim, quero deixar claro que minhas críticas são dirigidas a um processo, a um sistema, e não a nenhum profissional ou profissão individualmente. O que me chama a atenção é. Gestores que utilizam crianças como produtos para atingirem metas de resultados, ganharem seus bônus e poderem se vangloriar de como são geniais, que suas escolas são as melhores e que mais performam. Isso tudo organizado em planilhas assépticas, perfeitas e cheirosas, que escondem as lágrimas abafadas dos corredores escolares.

*Rogério Giorgion é mestre Educação Matemática pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).

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