Conclave

Frame de "Conclave", dirigido por Edward Berger/ Divulgação
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por JOÃO LANARI BO*

Comentário sobre o filme dirigido por Edward Berger, em exibição nos cinemas

Habemus Papam, ou “Temos Papa”: há dois mil anos e pouco essa é a frase-fetiche que anima os católicos espalhados pelo planeta, proclamada logo depois do conclave que decide quem será o novo Santo Padre. Em 2016, a Igreja Católica contava aproximadamente com 1,3 bilhão de fiéis – ou seja, 19% da população mundial e mais de metade de todos os cristãos. Certo, as diversas orientações evangélicas têm avançado, sobretudo no novo milênio, mas a sagrada instituição em Roma continua firme – para o bem e para o mal, diriam os céticos.

Conclave é o título do filme dirigido por Edward Berger que trata exatamente disso, a eleição mais esperada de todas, aquela cujo vencedor é suposto ser investido de nada menos, nada mais – santidade.

Baseado no livro homônimo do escritor britânico Richard Harris, conhecido artesão de suspenses, o roteiro de Peter Straughan é milimetricamente construído para segurar a respiração da audiência – as intrigas palacianas dos cardeais, a disputa pelo manto excelso, a microfísica de poder que se instala nos ambientes reclusos do Vaticano onde se dá a eleição, são os ingredientes da trama.

Um casting também formado à perfeição – Ralph Fiennes, o Decano Lawrence carregando a narrativa, Stanley Tucci e John Lithgow, atores veteranos e rivais no Conclave, Isabella Rossellini e Sergio Castellitto, em papéis pequenos, também excelentes, além de vários coadjuvantes, todos muito bem – é o arremate final dessa produção onde tudo parece estar no lugar certo.

Sim, é entretenimento, um entretenimento papal, que sem dúvida tem um charme especial. O Papa, aliás, morre logo na primeira sequência, deflagrando a corrida sucessória – e desvelando a cisão política entranhada na Igreja, liberais versus conservadores, para enunciar de uma forma bastante reduzida (são muitas nuances nesse binômio).

Instituição global há milênios, fundada em pleno Império Romano, a Igreja possui uma densidade histórica única na humanidade. Atravessou cismas, outras instituições espirituais foram criadas a partir dela – os ortodoxos, os protestantes – assimilou corrupções, excessos e guerras fratricidas, e resistiu. Hoje o Vaticano administra uma diversidade de fiéis e uma igualmente diversa base de apoio – a hierarquia católica – sem par entre as organizações que atendem às demandas de inspiração religiosa da população.

Todo esse universo está implícito quando os cardeais se reúnem para votar, no filme em tela – são cento e poucos votantes, o escolhido precisa receber dois terços do total, sendo que nenhum cardeal pode se abster do voto, nem votar em si mesmo. Alguns cardeais são destacados em Conclave, representando diferenças geográficas e de mentalidades vigentes na Igreja.

Estamos em um thriller político, com edição aguda e precisa, e trilha sonora à altura do clima tenso. O Decano Lawrence manobra nesse labirinto, imbuído da autoridade que o Papa morto – cujo legado sugere algo do atual Papa Francisco – lhe concedeu. Não é tarefa fácil.

O enredo é ficcional, mas os conflitos são reais. Nas conversas dos prelados, vem à tona o passado recente traumático – o Papa Bento XVI, por exemplo, foi membro da Juventude Hitlerista e lutou na guerra. João Paulo II, seu predecessor, encobriu graves e patéticos casos de abuso sexual. O roteiro de Straughan menciona esses aspectos, mas evita entrar em debate mais profundo, como foi o caso de Dois Papas, de Fernando Meirelles.

Isso não quer dizer que temas polêmicos sejam evitados: o Cardeal Tedesco, um dos candidatos mais ativos, vocifera contra os muçulmanos como se estivesse na Idade Média. As artimanhas do seu ambicioso competidor, Cardeal Tremblay, aproximam-se escabrosamente do inverossímil – seja lá o que Deus quiser.

Uma fala da Irmã Agnes, que gerencia o apoio das freiras – quer dizer, a tradicional posição subserviente das mulheres na Igreja católica – subverte por um instante a hierarquia de gêneros: “somos supostas sermos invisíveis, mas não podemos deixar de ter olhos e ouvidos”.

Nesse mundo estático, evoluir sem perder a relevância é um enorme desafio. Um personagem de fala mansa, surgido na última hora graças a uma nomeação extemporânea do Papa recém-falecido, é o cardeal Benitez, de Cabul – sim, a capital do Afeganistão. Ele é mexicano, neófito no Vaticano, atravessou mares bravios em seu sacerdócio – Congo, Bagdá – e sua fala pode iluminar a congregação.

Alta voltagem política, portanto, em ritmo de diversão. Saudável, certamente – e o twist final fecha com chave de ouro a transição papal.

*João Lanari Bo é professor de cinema da Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília (UnB). Autor, entre outros livros, de Cinema para russos, cinema para soviéticos (Bazar do Tempo). [https://amzn.to/45rHa9F]

Referência


Conclave
EUA, Reino Unido. Irlanda do Norte, 2024, 120 minutos.
Direção: Edward Berger.
Roteiro: Richard Harris e Peter Straughan
Elenco: Ralph Fiennes, Stanley Tucci, John Lithgow, Isabella Rossellini, Sergio Castellitto.


A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
CONTRIBUA

Veja todos artigos de

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

O forró na construção do Brasil
Por FERNANDA CANAVÊZ: A despeito de todo preconceito, o forró foi reconhecido como manifestação nacional cultural do Brasil, em lei sancionada pelo presidente Lula no ano de 2010
Arquétipos e símbolos
Por MARCOS DE QUEIROZ GRILLO: Carl Jung combinou a literatura, a narração de histórias e a psicanálise para chegar às memórias inconscientes coletivas de certos arquétipos, promovendo a reconciliação das crenças com a ciência
O humanismo de Edward Said
Por HOMERO SANTIAGO: Said sintetiza uma contradição fecunda que foi capaz de motivar a parte mais notável, mais combativa e mais atual de seu trabalho dentro e fora da academia
O marxismo neoliberal da USP
Por LUIZ CARLOS BRESSER-PEREIRA: Fábio Mascaro Querido acaba de dar uma notável contribuição à história intelectual do Brasil ao publicar “Lugar periférico, ideias modernas”, no qual estuda o que ele denomina “marxismo acadêmico da USP
Incel – corpo e capitalismo virtual
Por FÁTIMA VICENTE e TALES AB´SÁBER: Palestra de Fátima Vicente comentada por Tales Ab´Sáber
Sofia, filosofia e fenomenologia
Por ARI MARCELO SOLON: Considerações sobre o livro de Alexandre Kojève
Mudança de regime no Ocidente?
Por PERRY ANDERSON: Qual é a posição do neoliberalismo no meio do atual turbilhão? Em condições de emergência, foi forçado a tomar medidas – intervencionistas, estatistas e protecionistas – que são anátemas para sua doutrina
A “bomba atômica” do tarifaço de Donald Trump
Por VALERIO ARCARY: Não é possível compreender o “momento Trump” do tarifaço sem considerar a pressão de mais de quarenta anos dos déficits comercial e fiscal gigantescos e crônicos nos EUA
O novo mundo do trabalho e a organização dos trabalhadores
Por FRANCISCO ALANO: Os trabalhadores estão chegando no seu limite de tolerância. Por isso não surpreende a grande repercussão e engajamento, principalmente dos trabalhadores jovens, ao projeto e campanha pelo fim da escala de trabalho de 6 x 1
O capitalismo é mais industrial do que nunca
Por HENRIQUE AMORIM & GUILHERME HENRIQUE GUILHERME: A indicação de um capitalismo industrial de plataforma, em vez de ser uma tentativa de introduzir um novo conceito ou noção, visa, na prática, apontar o que está sendo reproduzido, mesmo que de forma renovada
Veja todos artigos de

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES