O conformista

Imagem: Zachary DeBottis
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram
image_pdfimage_print

Por JOÃO LANARI BO*

Comentário sobre o filme dirigido por Bernardo Bertolucci

Fascismo: das palavras que a cultura política do século XX forjou, essa é sem dúvida uma das mais contundentes, carregada de significações e acusticamente poderosa. A etimologia confirma a contundência: o termo é derivado do latim fasces, feixe de varas amarradas em volta de um machado, símbolo do poder conferido aos magistrados na Roma antiga de flagelar e decapitar cidadãos desobedientes.

Hoje, associamos o fascismo à filosofia política que exalta a nação e a raça acima do indivíduo e que defende, no limite, governos autocráticos e centralizados, liderados por ditadores propensos à supressão forçada da oposição. No século XXI, a palavra (e o conceito) se atualizaram no ambiente digital das redes sociais, e passaram também a designar comportamentos e ações que estão à nossa volta: seu uso político, que ganhou com Mussolini e sua turma expressão institucional lá pelos idos de 1919, na Itália, retornou com força total.

O cinema, em particular o italiano, aventurou-se pelos meandros da psique fascista com destreza, sobretudo nos anos produtivos de 1950 a 70, quando era, nas palavras de Martin Scorcese, um dos melhores, senão o melhor, cinema do mundo. O conformista, que Bernardo Bertolucci realizou em 1970, é uma das joias dessa cinematografia: composições impressionantes de luz, sombra e linhas diagonais, aliadas a um exuberante design de produção que recria a arquitetura e as artes decorativas da Itália fascista, resultam numa conexão entre a mentalidade que produziu esse mundo e a interioridade do personagem que nele habita, o conformista. Um homem que queria ser um fascista anônimo e perfeito: para enfatizar esse ambiente mental, é preciso contê-lo em espaços singularmente fascistas, construídos por composições exemplarmente fascistas.

Baseado no livro de 1951 de Alberto Moravia, O conformista é quase um filme de gângsteres – Orson Welles dizia que o fascismo era o gangsterismo na política. Marcello Clerici (Jean-Louis Trintignant, num de seus melhores papéis), é a âncora que narra os acontecimentos, passados e futuros, como num fluxo de consciência. Em flashbacks cronologicamente erráticos, grandes saltos de uma cena para outra, muitos deles irrealistas ou oníricos, refazemos a formação do caráter fascista que distingue o personagem.

Ainda pré-adolescente teve um encontro traumático com o motorista da família, Lino (Pierre Clementi), que o seduz e termina sendo morto pelas mãos de Marcelo: culpa e repugnância. Um casamento oportuno e emocionalmente vazio com Giulia (Stefania Sandrelli) se segue, até que recebe a incumbência de matar seu antigo mentor, Professor Quadri (Enzo Tarascio).

O Professor, que vive exilado em Paris, foi seu orientador na tese que escreveu sobre a alegoria da caverna de Platão – presos que conheceram apenas as sombras na parede, sombras que são a verdadeira versão da realidade. A menção da tese pelo Professor dá ensejo a Vittorio Storaro de produzir um dos melhores momentos fotográficos do filme – que é, claro, pleno de enquadramentos rigorosos e imprevistos, reflexos e tons saturados, sobretudo azuis e vermelhos, capturando a insegurança e o terror que se instalam na alma dos transeuntes.

Marcello torna-se obsessivo com a esposa de Quadri, Anna (Dominique Sanda): os detalhes exatos da missão só se revelam lentamente, causando infelicidade a Marcello. Sua consciência é espacial: trafegamos entre os vastos vazios dos prédios fascistas-modernistas, um hospital psiquiátrico ao ar livre onde seu pai está internado e um salão de baile lotado de dançarinos parisienses, onde sua esposa dança de rosto colado com sua amante.

Todo esse imaginário é pontuado pela visão a um só tempo freudiana e marxista de Bernardo Bertolucci: o fascismo é matriz histórica de pulsões libidinais e violentas, atomizadas na prática dos indivíduos que a exercem, institucionalmente ou não, como Marcello – mesmo que ele tenha passado a vida escondendo a identidade na fachada anódina de um perfeito conformista, comportando-se da maneira menos aberrante possível, em uma palavra, normal.

Para o público brasileiro, um instante especial: uma breve e fugaz aparição de Joel Barcelos, ator emblemático do Cinema Novo, no grupo de pupilos do Professor Quadri. O conformista é um filme sobre a passagem do tempo e a força do destino, mas, como ressalta seu diretor, não converge para uma catarse positivada, como nas tragédias gregas: em lugar do destino, sobressai o inconsciente histórico de Marcello. Perto do fim, ele olha para sua filha pequena e em seguida entra na Roma devastada que ajudou a criar.

*João Lanari Bo é professor de cinema da Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília (UnB).

Referência


O conformista
Itália\França\Alemanha, 1970, 107 minutos
Direção: Bernardo Bertolucci
Roteiro: Alberto Moravia, Bernardo Bertolucci
Fotografia: Vittorio Storaro
Elenco: Jean-Louis Trintignant, Pierre Clementi, Stefania Sandrelli, Enzo Tarascio, Dominique Sanda.

Disponível na plataforma MUBI, em cópia restaurada

Veja todos artigos de

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Régis Bonvicino (1955-2025)
Por TALES AB’SÁBER: Homenagem ao poeta recém-falecido
Os véus de Maya
Por OTÁVIO A. FILHO: Entre Platão e as fake news, a verdade se esconde sob véus tecidos por séculos. Maya – palavra hindu que fala das ilusões – nos ensina: a ilusão é parte do jogo, e desconfiar é o primeiro passo para enxergar além das sombras que chamamos de realidade
Distopia como instrumento de contenção
Por GUSTAVO GABRIEL GARCIA: A indústria cultural utiliza narrativas distópicas para promover o medo e a paralisia crítica, sugerindo que é melhor manter o status quo do que arriscar mudanças. Assim, apesar da opressão global, ainda não emergiu um movimento de contestação ao modelo de gestão da vida baseado do capital
Aura e estética da guerra em Walter Benjamin
Por FERNÃO PESSOA RAMOS: A "estética da guerra" em Benjamin não é apenas um diagnóstico sombrio do fascismo, mas um espelho inquietante de nossa própria era, onde a reprodutibilidade técnica da violência se normaliza em fluxos digitais. Se a aura outrora emanava a distância do sagrado, hoje ela se esvai na instantaneidade do espetáculo bélico, onde a contemplação da destruição se confunde com o consumo
Na próxima vez em que encontrar um poeta
Por URARIANO MOTA: Na próxima vez em que encontrar um poeta, lembre-se: ele não é um monumento, mas um incêndio. Suas chamas não iluminam salões — consomem-se no ar, deixando apenas o cheiro de enxofre e mel. E quando ele se for, você sentirá falta até de suas cinzas
Síndrome da apatia
Por JOÃO LANARI BO: Comentário sobre o filme dirigido por Alexandros Avranas, em exibição nos cinemas.
A fragilidade financeira dos EUA
Por THOMAS PIKETTY: Assim como o padrão-ouro e o colonialismo ruíram sob o peso de suas próprias contradições, o excepcionalismo do dólar também chegará ao fim. A questão não é se, mas como: será por meio de uma transição coordenada ou de uma crise que deixará cicatrizes ainda mais profundas na economia global?
Alcançando ou ficando para trás?
Por ELEUTÉRIO F. S. PRADO: O desenvolvimento desigual não é acidente, mas estrutura: enquanto o capitalismo promete convergência, sua lógica reproduz hierarquias. A América Latina, entre falsos milagres e armadilhas neoliberais, segue exportando valor e importando dependência
A cúpula dos BRICS de 2025
Por JONNAS VASCONCELOS: O Brasil da presidência dos BRICS: prioridades, limitações e resultados diante de um cenário global turbulento
Veja todos artigos de

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES