Conde Daltinho irrompe caninos

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Por SAMUEL JORGE MOYSÉS*

Considerações sobre a vida e a obra de Dalton Trevisan

1.

No quarter. Sem clemência. No quarter. Sem piedade.

Conde Daltinho se foi. Por onde andará? Escrevendo contos em algum zepelim de chumbo?

Leio agora Daltinho, na sua última Antologia Pessoal publicada em 2023 pela Record, lembrando de músicas feitas por “então moços inquietos” … ora No Quarter do Led Zeppelin, ora Clara Crocodilo de Arrigo Barnabé. E, leitor curioso, interrogo sobre seus anos juvenis, a iniciação nas letras e nas artes da transfiguração, a obsessão por cortar, suprimir, refazer, insinuar, simplificar.

Daltinho simplificou. Adotou um inexcedível princípio de escrita concisa: pluralitas non est ponenda sine necessitate. Adotou a navalha de Occam, logo depois das primeiras obras renegadas. Entendeu que a forma mais simples é frequentemente a melhor, “a pluralidade nunca deve ser postulada sem necessidade”.

Essa não é uma arqueologia biográfica, senão um registro de algumas heterotopias formativas, espaços concretos e reais fora do lugar, pois a Curitiba de Daltinho é mais que um espaço geográfico, é o espaço do seu deslocamento para o íntimo criativo.

Em dezembro de 1934, Daltinho tinha nove anos e deve ter visto o Zeppelin passar sobre a praça Santos Andrade, centro de Curitiba. Poty Lazzarotto, o piá do bairro Capanema, tinha dez anos e também acompanhou seu voo, passando pelo Água Verde e Rebouças. Mais tarde, além de colaborar com a revista Joaquim e ilustrar obras de Daltinho, Poty também deixou registrada a gravura do Graf Zeppelin (1971), que retrata esse momento da infância dos artistas em Curitiba.

Em 1939, aos 14 anos, Daltinho já assinava crônicas para a revista estudantil O Livro. Em 1940, funda e dirige o jornal Tinguí (1940-43), impresso pelo Centro Literário Humberto de Campos e, posteriormente, pelo Centro Cultural General Rondon. Os tinguis eram indígenas hábeis na fabricação de armas de pau e pedra. Curiosamente, o nome do jornal reflete impregnações “paranistas”, o ideário passadista alvo do combate futuro de Daltinho, como se verá logo adiante. O jornal reproduz um texto no primeiro número (ai de mim, logo quem?), de Romário Martins, um dos principais ideólogos paranistas.

Mas, alto lá! O adolescente, que não era bobo nem nada, já se armou com porretes e machadinhas da crítica nessa experiência de colégio. Depois, bem mais avançado na idade, viu o povo tupi-guarani, de “nariz afinado” e que originalmente habitava Curitiba, ser homenageado com o nome de um bairro e um parque, onde se assenta a estátua do Cacique Tindiquera. Daltinho não poderia considerar outra coisa, senão uma homenagem mais fora de propósito!

2.

Em 1944, passa a trabalhar como repórter policial e crítico de cinema no Diário do Paraná, ao tempo em que passa a cursar Direito. Em onze de março de 1945, uma caldeira da “Fábricas de louça, refratário e vidro João Evaristo Trevisan” explode. Era a empresa fundada por seu pai em 1927, no endereço anexo da casa da sua infância. Memórias do que ocorreu indicam que foi forte a explosão, pois a própria chaminé construída com tijolos especiais tombou.

Entre os feridos, o jovem Daltinho, então auxiliar do pai no papel de “consultor jurídico” neste empreendimento familiar. Já foi dito que os trinta dias passados no hospital, em decorrência do crânio fraturado, produziu em Daltinho uma mudança de perspectiva, pois ele mesmo confidenciou em rara entrevista que “pela primeira vez se deparava com a morte… ali nascia o escritor”.

Em outra chave, já foi estabelecido na literatura científica médica que a exposição a uma onda de choque de origem explosiva pode causar estresse pós-traumático, com sintomas que incluem alterações cognitivas, de memória e de comportamento. O literato não nasce de um estresse pós-traumático, mas é partejado junto a uma explosão. Era como se o Zeppelin, retratado pelo amigo Poty como uma pandorga infantil, puxada por carretel de linha, agora lhe revelasse explosivamente a face implacável da tragédia comezinha, na ilíada cotidiana dos personagens de seus contos. Não mais infância, mas as angústias e dilemas do universo gótico do jovem adulto, em depuração literária e estilística progressiva com técnicas tais como fluxo de consciência.

Então, mal saído da puberdade (e do hospital), Daltinho afiou os caninos, tirando sangue do conservadorismo da província. No quarter, sem clemência!

Dos 20 para 21 anos, começa sua militância literária à frente da revista Joaquim (1946-48). O endereço da redação de Joaquim é o mesmo de onde dirigiu o jornal Tinguí: rua Emiliano Perneta, 476. Utilizou uma sala cedida pelo pai, do amplo imóvel de propriedade da família ocupando vários números da referida rua (Aquidabã na época da instalação familiar, e depois Emiliano Perneta). De fato, ali residiam e operavam sua fábrica na vizinhança da “igreja dos polacos”, tão citada em sua obra – endereço familiar parcialmente preservado em que hoje funciona um simpático café, só que na nova numeração 492.

Ironia, não é Joaquim? A antiga “Rua da Entrada” da Curitiba colonial e, depois, Rua Aquidabã do Daltinho menino até seus 10 anos, foi renomeada em 1935, em homenagem ao poeta paranista que ele esculachou. Pura revolta com a mudança do nome da rua de sua infância, de Aquidabã para Emiliano Perneta? Certamente não, pois a questão com Emiliano era de ordem programática e literária, mas ocorre perceber que no seu primeiro livro (renegado) de 1945, Sonata ao luar, o jovem autor escreve uma novela sobre sua rua só se referindo a ela como Aquidabã, embora já tivesse mudado de nome dez anos antes.

3.

No primeiro número de Joaquim, publica “Eucaris – a dos olhos doces”, conto ilustrado pelo sempre parceiro Poty. Aliás, toda a revista em suas 21 edições, dedica espaço significante às ilustrações, e Poty é o ilustrador das marcantes capas dos primeiros números. O periódico se aproveitava de uma técnica especial de zincogravura (gravura de metal em alto-relevo, adaptada diretamente ao clichê tipográfico).

Como Poty observou, os personagens [de Daltinho] têm algo a ver com a técnica da ponta-seca, com muitas tonalidades e camadas… é um processo direto de desenhar riscando com uma ponta de aço a placa de zinco. Desta forma, criam-se linhas com rebarbas, e as gravuras captam essa característica afiada, intensa e algo pungente da literatura dele. É o que já se lê, precocemente, e o que vai demarcar sua singularidade no universo dos contos, a partir de Eucaris.

Era o imediato pós II Grande Guerra. Não para Daltinho. Em Joaquim sua verve bélica juvenil, já treinada sob inspiração dos tinguis, da reportagem policial e da crítica jornalística, é exponenciada desde a segunda edição, demolindo o “príncipe dos poetas paranaenses” com a crítica Emiliano, Poeta Medíocre”. Cravou caninos: “Emiliano Perneta foi uma vítima da província, em vida e na morte. Em vida, a província não permitiu que ele fosse o grande poeta que poderia ser, e, na morte, o cultua como sendo o grande poeta que não foi”.

No quarter. Sem piedade!

E segue, iconoclasta, contra paranistas em geral e contra Monteiro Lobato em particular. Desafinando o coro dos contentes, Daltinho declara: “O sr. Monteiro Lobato, ainda em vida, é um autor póstumo. Um Cornélio Pires passado a limpo. Representa embora hoje, no Brasil, o tipo mais sórdido de escritor: o do que traiu. A traição foi a si mesmo, aos outros e a seu tempo.” E sobre o Paranismo: “Fortalece-se certa mentalidade reacionária (disfarçada pelo lindo adjetivo de ‘paranista’), que, em nome de santas tradições, amputou as mãos e furou os olhos dos jovens artistas.” Em tom de blague, já foi dito que ele apreciava expressões como “Emiliano e outros pernetas” ou epigramas satíricos contra desafetos, paranistas ou não.

No quarter, no quarter!

– Para cada gralha azul do Paranismo, o Conde Daltinho disparava uma arara bêbada. Ou uma corruíra disgracida.

– Para cada pinheiro do Paraná e suas pinhas e seus pinhões e suas grimpas, uma sórdida sarça ardente nas curvas da morena calipígia.

– Para cada cuia de erva-mate, uma gasosa de framboesa ou, quem sabe – mais ácida? -, oculta recreação nos paraísos artificiais da boate Marrocos?

– Para cada bocejo sonolento da província verbosa, mais uma elipse do texto insone parido às três da manhã, antecipando as broinhas de fubá mimoso do alvorecer.

– Para cada pico do Marumbi, uma baixada curitibana onde o flâneur walterbenjaminiano atravessava ruas incógnito, observando acontecimentos “como se atrás da porta”.

4.

Em 1953, já fazendo a transição para a maturidade etária, estilística e de deliberado isolamento paulatino, Daltinho se muda para o “castelinho” na 487, esquina da Ubaldino do Amaral com Amintas de Barros – o emblemático endereço inescrutável de Curitiba. Foi nessa casa que morou, recluso, o homem que hospedava sem restrições sua livre passarinhada. Dali só se mudou em 2021, já na pandemia da Covid, passando a morar no apartamento do edifício São Bernardo 839, da Alameda Dr. Muricy, na fraterna companhia dos fantasmas de Helena Kolody e Paulo Leminski – também ex-moradores deste endereço. Essa já é outra história, assim como é outra história o livro Novelas nada exemplares de 1959, ganhador do Jabuti, consolidando o contista maduro.

Desde sempre, Conde Daltinho seguiu perseguindo nas faces de transeuntes anônimos (ou nem tanto) e nos fragmentos de frases aleatórias entreouvidas, quase todas as (per)versões do humano. E nas ruas e praças com suas calçadas do centro de Curitiba Daltinho repisou o petit pavé mosaicado com os símbolos Paranistas que ele rechaçou.

Por onde andará nosso conde? Reescrevendo parlendas? “Hoje é domingo, pede cachimbo; O cachimbo é de chifre, não há quem decifre; A polaquinha no couro, trepa no touro; O touro é chifrudo, duplamente cornudo; O corno é fraco, cai no buraco; O buraco é fundo, acabou-se o mundo”.

O Conde seria você, hipócrita cidadão de bem, ou uma travestida Clara Crocodilo londrinense/paulistana/curitibana, no grito dodecafônico e atonal de outra amante serial killer… Onde andará? “Será que ela está adormecida em sua mente esperando a ocasião propícia para despertar e descer até seu coração?” … [leitor meu, meu irmão?]”

Pois Daltinho, assim como o jovem (e precocemente desaparecido) Newton Sampaio – por ele ocasionalmente saudado como “o maior contista paranaense” –, também atendeu “a meridianos que não passam pela rua 15 de Novembro”. Ainda assim, sua vida e obra vampirizaram a transilvânica rua 15, assim como vampirizaram o mundo. E não é misteriosa coincidência que ele tivesse devoção pelo tomazinense Newton Sampaio e pelo russo Tchekhov, ambos contistas parcimoniosos e precisos, ambos médicos, ambos mortos ainda jovens de tuberculose?

O epíteto vampiresco, longe de qualquer danação de personalidade amaldiçoada, camufla o generoso amigo de Poty, o recluso e bem-humorado confabulador, leitor voraz e apreciador de passarinhos.

No quarter, I hear the dogs of doom are howling more.

Uivem, cães da perdição, que nosso conde já sobrevoa a praça Santos Andrade no seu inexorável zepelim.

*Samuel Jorge Moysés é professor titular aposentado de saúde pública na PUC-PR e ativo na Universidade Federal do Paraná (UFPR).


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