Uma história social do conhecimento

Lincoln Seligman, Garrafas de Vinho Envolto, Número 1, 1995.
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Por FERNANDO NOGUEIRA DA COSTA*

Comentário sobre o livro de Peter Burke

Em Uma história social do conhecimento – II – da Enciclopédia à Wikipédia, Peter Burke distingue entre uma “história intelectual do conhecimento” concentrada em debates e uma “história social” concentrada em grupos sociais, como o clero, e em instituições, como bibliotecas e universidades.

O papel do clero na produção e na disseminação do conhecimento, no período 1750-2000, perdeu gradualmente sua importância. As bibliotecas foram secularizadas desde a segunda metade do século XVIII, no sentido de ser transferidas de instituições religiosas, como os colégios jesuítas, para instituições laicas, como as universidades.

No domínio das instituições do conhecimento, a secularização, isto é, “uma transição de um domínio religioso para um mundano ou leigo”, se apresenta como a tendência dominante. Mesmo assim, há reacionários defensores de contrassecularização, quando, além das pressões políticas, os estudiosos sofrem também pressões religiosas.

Por exemplo, o criacionismo – a crença de a humanidade, a vida, a Terra e/ou o universo são a criação de um ser sobrenatural onipresente, onipotente e onisciente – continua vivo e forte nos Estados Unidos e em outros lugares retrógrados. Em contrapartida, uma série de julgamentos em tribunais americanos entre 1975 e 2005 declarou inconstitucional ensinar nas aulas de Ciências das escolas públicas o mundo ter sido criado por Deus, ou seja, rejeição da evolução biológica por motivação religiosa.

Burke se pergunta: quais são os grandes pontos de inflexão no período 1750-2000? Alguns historiadores gostam de dividir o passado em gerações, mas, a união de uma geração se dá por uma experiência comum de algum tipo de guinada, como uma guerra, uma revolução ou uma crise.

Vários estudiosos alegam ter descoberto várias crises e revoluções na história do conhecimento. Por exemplo, o historiador da ciência Thomas Kuhn identificou toda uma série de revoluções científicas com mudanças de paradigmas dominantes.

O volume anterior desta História Social do Conhecimento terminou com a publicação da Enciclopédia (1751-66) de Diderot. O período posterior se caracteriza pelo uso do conhecimento a serviço da reforma.

Foi uma época da “reforma do conhecimento”, em duplo sentido: não só reformas sociais com base no conhecimento, mas também tentativas de remodelar a organização do próprio conhecimento. “Reforma” era uma palavra-chave daquela época, tal como “avanço”, “melhoramento” etc. Era uma versão secular de um conceito religioso, utilizado nesse período em vários contextos ou campos, inclusive da educação.

O conhecimento era usualmente visto como um auxílio para a tarefa de empreender reformas sociais, econômicas e políticas. A reforma das enciclopédias pode ser entendida como resposta ou expressão de uma reforma mais ampla do conhecimento, inclusive a sistematização. Além de “melhoramento” e “pesquisa”, outra palavra-chave do período foi “sistema”.

Em inglês, o verbo systematize foi cunhado nos anos 1760. A Enciclopédia britânica (1771) abordava sistemas científicos e artísticos. Definia o sistema como “uma reunião ou cadeia de princípios e conclusões, ou o conjunto de qualquer doutrina, cujas várias partes estão ligadas e se seguem ou dependem umas das outras, sentido este no qual falamos de um sistema de filosofia, um sistema capitalista etc.”.

Hoje, na fronteira do conhecimento da ciência da complexidade, um sistema complexo é definido como aquele emergente de interações entre seus múltiplos componentes. A partir de uma visão holista ou abordagem sistêmica, observa-se o todo ser distinto das partes e pondera-se a importância dessas partes com pesos diferenciados.

Por exemplo, em economia, a fronteira é uma abordagem sistêmica financeira. Nela se integram as finanças pessoais, corporativas, públicas, bancárias e internacionais.

As mudanças ocorridas a partir de 1750 podem ser entendidas mais como uma reorganização em vez de uma revolução do conhecimento. A revolução propriamente dita apareceria após as revoluções políticas americana (1783) e francesa (1789), com mudanças radicais no sistema do conhecimento.

Houve a destruição de um antigo regime do conhecimento e sua substituição por um novo. O antigo regime era hierárquico, tendo a teologia como liderança, seguida pelo direito e pela medicina, depois vindo as humanidades ou artes liberais, e por fim as artes mecânicas, como a agricultura e a construção de navios. No começo do século XIX, porém, os defensores da tecnologia e das ciências naturais contestaram o predomínio das humanidades tradicionais.

Os historiadores da ciência consideram os anos em torno de 1800 como a era da “segunda revolução científica”. A queda da velha hierarquia veio associada a um maior reconhecimento da pluralidade dos conhecimentos, eruditos e populares, abrangendo o “o quê” e o “como”.

A percepção da existência de outros conhecimentos, sobretudo de fontes de conhecimento fora da tradição culta europeia, foi como uma descoberta do “outro”, tanto no tempo (o historicismo) quanto no espaço (o Oriente) ou na sociedade (a descoberta do povo pelas classes médias e altas). Houve uma percepção mais profunda da mudança e da distância cultural entre o passado e o presente, “o passado visto como um país estrangeiro”, na ótica eurocêntrica.

Por trás do entusiasmo das classes médias pela cultura popular, tal como no entusiasmo pela Idade Média e pela “sabedoria oriental”, havia uma reação contra o Iluminismo. O povo era considerado misterioso, descrito como o contrário da autorreferência dos descobridores: as pessoas do povo eram naturais, simples, instintivas, irracionais, sem individualidade própria, arraigadas na tradição e no solo de seus rincões.

Os anos em torno de 1850 não são tão definidos como as eras da reforma e da revolução. Mas a segunda metade do século XIX foi um período fundamental na história da especialização por a ciência ocidental ter se transformado em uma série de disciplinas densamente profissionalizadas, altamente centralizadas dentro de cada nação, e muitas vezes subvencionadas por um apoio comercial e estatal direto.

Criou-se o doutorado (ph.D.) como uma qualificação acadêmica e várias disciplinas passaram a ocupar, em número crescente, departamentos autônomos. Na época do positivismo, as ciências naturais eram tomadas como modelo de qualquer trabalho intelectual, estudiosos das mais variadas disciplinas diziam fazer trabalhos “científicos”.

Um segundo grande aspecto define esse período: a popularização. Explicava-se a ciência aos leigos em uma infinidade de publicações, inclusive periódicos criados para esse fim.

A segunda das ondas econômicas de Kondratiev começou na Era Mecânica, de meados dos anos 1840 em diante. A tecnologia da Era do Vapor – os trens e os navios – transformou a comunidade do saber, permitindo a realização periódica de conferências internacionais de várias disciplinas, além de ciclos de palestras eruditas e de divulgação nos dois lados do Atlântico.

Os anos em redor de 1900, no entanto, foram apresentados como uma época de crise em muitas disciplinas. Esta crise era definida como “revolta contra o positivismo”, um sistema criado por Auguste Comte (1798-1857) com a proposta de ordenar as ciências experimentais, considerando-as o modelo por excelência do conhecimento humano, em detrimento das especulações metafísicas ou teológicas.

O “perspectivismo” de Nietzsche dizia não existir nenhuma maneira verdadeira de enxergar o mundo, mas apenas uma variedade de perspectivas ou pontos de vista. Nossas suposições sobre o mundo externo deveriam ser substituídas por, em seu lugar, uma análise da experiência vivenciada no mundo.

A célebre “Teoria geral da relatividade” de Albert Einstein (1915) incentivou o relativismo, enquanto “o princípio de incerteza”, em relação à mecânica quântica, solapou a certeza de maneira generalizada. As pretensões de objetividade foram se corroendo em diversos campos, junto com a confiança em leis gerais e em métodos de aplicação geral.

Por exemplo, entre os historiadores profissionais, a convicção de “a história ser uma ciência” cedeu lugar à ideia de “a história ser uma arte”, um ramo da literatura, sendo inevitável o ponto de vista pessoal. Arte se relaciona à habilidade de construir narrativas.

A Primeira Guerra Mundial trouxe muitas consequências para o conhecimento, além de ajudar a corroer as velhas certezas. De ambos os lados do conflito, houve o recrutamento de várias habilidades acadêmicas e dos próprios acadêmicos para auxiliar no esforço de guerra. Ela chamou a atenção para a importância nacional da ciência e da pesquisa.

A guerra foi um grande estímulo à indústria e, assim, a determinadas formas de conhecimento. A terceira onda de Kondratiev já se iniciara nos anos 1890, Era da Revolução elétrica e de inovações na tecnologia da informação.

*Fernando Nogueira da Costa é professor titular do Instituto de Economia da Unicamp. Autor, entre outros livros, de Brasil dos bancos (EDUSP). [https://amzn.to/3r9xVNh]

Referência


Peter Burke. Uma história social do conhecimento – II. Da Enciclopédia à Wikipédia. Rio de Janeiro, Zahar, 2003, 416 págs. [https://amzn.to/3R0p4GL]


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