Considerações sobre a tática da esquerda

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Por HERICK ARGÔLO*

Resistir contra o neoliberalismo, isolar o fascismo

Há quem pense que o melhor caminho para derrotar Bolsonaro seja a condescendência da esquerda com o neoliberalismo, para assim supostamente isolá-lo da burguesia. Quem assim pensa ainda ignora a essência e as tendências das contradições entre Bolsonaro e a grande burguesia.

Bolsonaro assenta sua força sobre uma base social que está situada principalmente na classe média, na pequena burguesia, nas polícias, nas forças armadas, nas igrejas neopentecostais, etc. Naturalmente, os interesses do seu movimento divergem dos interesses da grande burguesia. Entretanto, entre os dois foi selada uma aliança em 2018, através do “casamento” (para usar uma expressão então empregada por Bolsonaro) com o ministro da Economia, Paulo Guedes.

Ocorre que, justamente porque os interesses da grande burguesia não coincidem inteiramente com os do movimento bolsonarista, essa aliança é bastante conflituosa. Por um lado, para que veja aplicado seu programa neoliberal, a grande burguesia precisa deixar Bolsonaro nas cordas o tempo inteiro. Há de se recordar, por exemplo, que Bolsonaro chegou a se declarar, inicialmente, contrário à Reforma da Previdência. Assim como, neste momento, dá sinais de que não deseja apoiar a Reforma Administrativa. O presidente ensaiou, ainda, furar o teto de gastos. Como, também, no ajuste do preço do óleo diesel, tentou favorecer os caminhoneiros em detrimento dos acionistas internacionais da Petrobras.

Não é que Bolsonaro busque governar para as classes populares em geral, ou se oponha integralmente a essas medidas neoliberais. A crescente exploração do trabalhador, o genocídio, o machismo, o racismo e a homofobia, a destruição de organizações populares, etc., são componentes do seu ideário. O que acontece é que, em todos esses episódios citados, dentre outros, os interesses da burguesia chocavam-se com interesses econômicos específicos do núcleo mais ativo do movimento bolsonarista ou prejudicavam a capacidade de reeleição de Bolsonaro. E, só sob forte pressão burguesa, Bolsonaro cedeu, muitas vezes obtendo conquistas parciais para os policiais, o exército, etc.

Por outro lado, o objetivo maior do bolsonarismo de instaurar um regime ditatorial no Brasil, de natureza fascista, tem se chocado com a burguesia. Esta, em grande parte, não vê o bolsonarismo como confiável para garantir o seu programa de redução do chamado “custo Brasil”, de privatizações, etc. Na contramão do ajuste fiscal, o próprio general do exército, Walter Braga Netto, atual ministro da Defesa e antes ministro-chefe da Casa Civil, chegou a apresentar uma proposta denominada “Plano Pró-Brasil”, que se contrapunha ao neoliberalismo ortodoxo de Paulo Guedes. Até aqui, essas contradições entre a burguesia e o movimento fascista têm se resolvido por recuos desse, ao passo que a burguesia impede a tramitação dos diversos pedidos de impeachment contra Bolsonaro no Congresso Nacional, sem chegar ao antagonismo entre os dois.

Reconhecendo a essência da contradição entre Bolsonaro e a grande burguesia, qual deve ser a tática da esquerda para derrotar o fascismo?

A esquerda disputa diretamente com o fascismo a representação da classe média, da pequena burguesia, dos camponeses, da massa de trabalhadores informais e, em certa medida, até do proletariado. Todas essas classes sofrem com a política neoliberal. É preciso, em primeiro lugar, lutar contra as medidas antipovo da burguesia e de Bolsonaro. Não fazer a devida resistência ao neoliberalismo é jogar para o colo do fascismo parcela importante das classes populares.

Em segundo lugar, deve-se perceber que quanto maior for a resistência popular ao avanço neoliberal, menores serão as possibilidades de arranjo entre a grande burguesia e a base social que sustenta Bolsonaro. Pressionado, a contradição entre ambos tende a se tornar mais aguda. Por outro lado, sem esse tipo de resistência popular, as chances de um impeachment de Bolsonaro são remotas. E, ainda que derrotado eleitoralmente em 2022, o movimento fascista tende a sobreviver, inclusive ocupando postos no Estado, e seguindo como uma grave ameaça.

É certo que sempre que houver choques entre a burguesia e o fascismo, seja nas disputas entre eles por espaço político, ou na questão da vacinação, ou nas tentativas desse de suprimir a democracia e avançar para uma ditadura das milícias, nós devemos prestar apoio às representações burguesas. Mas, nesse caso, dado o caráter das contradições entre ambos, esses momentos tendem a ser limitados e pontuais, e não podem gerar ilusões entre nós.

Nas lutas contra o golpe, muitos dos que hoje pregam que nos subordinemos ao neoliberalismo para, supostamente, derrotar o fascismo, defenderam o ajuste fiscal de Joaquim Levy em 2015, não defenderam ou não priorizaram os atos de rua até perto do impeachment em 2016, apostaram todas as fichas em articulações com o Parlamento e o STF, deixaram de chamar o golpe de golpe para “evitar melindres”, no último momento até sugeriram que Dilma oferecesse ao Senado o seu cargo em troca de novas eleições, etc. Assim, muitos desses, que esperavam que a burguesia cumprisse o papel que cabia à luta popular, seguem insistindo no erro até hoje.

Essa concepção já reapareceu recentemente, por exemplo, por trás de embates sob o nome de “frente ampla”, na disputa da presidência das casas do Congresso no início desse ano e, mais recentemente, contra a realização do ato de 29 de maio, escondida sob o falso pretexto da justíssima preocupação com a pandemia. Renunciar a resistir ao neoliberalismo, esperando assim isolar Bolsonaro da burguesia, é na verdade isolar cada vez mais a esquerda do povo

A unidade que deve ser buscada dentre as forças de esquerda neste momento deve se dar em torno de um programa e de uma orientação política anti-neoliberal e anti-fascista. Mesmo setores vacilantes do pequeno e médio capital, esmagados pelo ultraliberalismo, podem assim ser atraídos.

Ontem, a Rede Globo deu uma reviravolta na sua linha do telejornal de sábado e exaltou os atos da esquerda. Mas fez questão de delimitar que eram manifestações pelo impeachment de Bolsonaro e pelas vacinas, sem citar reivindicações contra as reformas neoliberais e contra as privatizações. Luciano Huck, dentre outros, comemorou as manifestações nas redes sociais, mas defendeu que elas deveriam se vestir de “verde e amarelo”, que fossem manifestações do “Brasil do bem”, etc. Representantes da grande burguesia parecem, assim, ensaiar uma possível disputa das ruas.

Sim, precisamos levar as cores do Brasil para manifestação, afinal somos nós que representamos as lutas anti-imperialistas. Porém, sem renunciar em momento algum ao vermelho das nossas organizações, dos nossos símbolos e das nossas palavras de ordem. Se, em outras oportunidades de ir às ruas, fizermos como feito em Junho de 2013, renunciando-se a lutar por uma ideologia e uma linha política bem delimitadas nas manifestações, o resultado inescapável é a sua captura pelos meios de comunicação, que não cometerão o erro de fazer essa mesma renúncia.

Em atos futuros, as palavras de ordem contra as reformas e as privatizações merecem muito mais destaque do que demos no ato de 29 de maio. Seguidas das reivindicações pelo auxílio emergencial, pela vacinação e pelo impeachment.

Rejeitar o desvio que prega a cumplicidade com o neoliberalismo para supostamente isolar o fascismo, e adotar a orientação: Resistir contra o neoliberalismo, isolar o fascismo. É essa a política que deve guiar a esquerda neste momento.

*Herick Argôlo é militante da Consulta Popular.

 

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