Crítica da lei penal

Imagem: Marina Gusmão
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por SILVANE ORTIZ*

O direito penal de um país nos apresenta um vislumbre das condições evolutivas de sua sociedade

Dizem popularmente que o direito penal de um país nos apresenta um vislumbre das condições evolutivas de sua sociedade. Ao prescrutamos seu ordenamento, temos a possibilidade de entender como os poderes postos tratam, estruturalmente, as diferenças e a diversidade de seu contingente social. No Brasil, a vida, bem fundamental como definido em nossa Constituição de 1988, e a dignidade que deve lastrear tal proposição, são diuturnamente vilipendiadas, institucionalmente, pelo sistema penal positivado e aplicado. A função da pena, desde de seu imemorial advento é, precipuamente, proteger bens, não vidas. Podemos, inclusive, verificar o quanto essa proposição se asseverou com o advento das codificações de tipos que funcionam, em verdade, como um menu de opções para o controle social.

A política penal traz em seu arcabouço a premissa de pautar a sociedade, por meio de sanções, de modo a tornar a convivência humana pacífica ou, ao menos, menos belicosa, sendo assim parte do contrato social que nos tornamos signatários, obrigatoriamente, ao nascer. Porém, algumas questões surgem quando começamos a compreender a forma como esse apaziguamento é pensado e aplicado. Ele se impõe a todos da mesma maneira? Os bens protegidos e as sanções impostas são correlacionados coerentemente?

Quando nos debruçamos sobre tal problemática, verificamos uma completa inversão de valores (não monetários, por óbvio). Os princípios limitadores ao poder de punir do Estado, que deveriam conferir segurança social, como o da igualdade, ou o da proporcionalidade, acabam por converter-se em completas falácias discursivas. A desproporcionalidade é calcada e, simultaneamente, uma das motivadoras da desigualdade que atravessa, desfazendo em frangalhos, o tecido social.

Devemos manter nossa capacidade crítica para que possamos enxergar as falhas desse sistema autopoiético, onde a capacidade de reprodução da desigualdade parece se alimentar de um “punitivismo” que não deixa a diferença, mas sim a desigualdade, ser a métrica da diversidade de nossa sociedade. Enquanto não houver igualdade real nas condições de reprodução da vida, não há de se falar em isonomia, ou termo que o valha, como principiologia para a aplicação de um direito moldado e exercido para punir o comportamento, ou melhor, os indesejáveis e não os – agora de fato – comportamentos inaceitáveis.

Ainda que na atual condição evolutiva de nossa sociedade, permeada pelo ideal de progresso, a ordem seja o fim último do direito, esse deve ser encarado como uma salvaguarda do ser, antes de como um garante ao mero direito a ter. A tarefa que se impõe a quem luta por uma sociabilidade minimamente digna, dentro de um sistema que prima pela sujeição à ignobilidade, é não se deixar prostrar ante as barreiras erigidas para a contenção do incorrigível, indesejável. É através da constante crítica e ação propositiva que forçaremos esses entraves evolutivos no caminho de uma sociedade justa, pois diversa, não desigual.

*Silvane Ortiz é graduanda em direito na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

 

Veja neste link todos artigos de

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

__________________
  • Um estudo do caso Ailton Krenak1974__Identidade ignorada 21/07/2024 Por MARIA SILVIA CINTRA MARTINS: Prefiro sonhar com Krenak o parentesco com a natureza e com as pedras do que embarcar na naturalização do genocídio
  • Clarice Lispector no cinemacultura a paixão segundo g.h. 22/07/2024 Por LUCIANA MOLINA: Comentário sobre três adaptações cinematográficas da obra de Clarice Lispector
  • O princípio de autodestruiçãoLeonardo Boff 25/07/2024 Por LEONARDO BOFF: Qual ciência é boa para a transformação mundial?
  • Filosofia da práxis como poiésiscultura lenora de barros 24/07/2024 Por GENILDO FERREIRA DA SILVA & JOSÉ CRISÓSTOMO DE SOUZA: Fazer filosofia é, para o Poética, fazer filosofia contemporânea, crítica e temática
  • Que horas são no relógio de guerra da OTAN?José Luís Fiori 17/07/2024 Por JOSÉ LUÍS FIORI: Os ponteiros do “relógio da guerra mundial” estão se movendo de forma cada vez mais acelerada
  • Apagão digitalSergio Amadeu da Silveira 22/07/2024 Por SÉRGIO AMADEU DA SILVEIRA: A catástrofe algorítmica e a nuvem do “apagão”
  • A disputa de Taiwan e a inovação tecnológica na ChinaChina Flag 20/07/2024 Por JOSÉ LUÍS FIORI: A China já é hoje a líder mundial em 37 das 44 tecnologias consideradas mais importantes para o desenvolvimento econômico e militar do futuro
  • A produção ensaística de Ailton Krenakcultura gotas transp 11/07/2024 Por FILIPE DE FREITAS GONÇALVES: Ao radicalizar sua crítica ao capitalismo, Krenak esquece de que o que está levando o mundo a seu fim é o sistema econômico e social em que vivemos e não nossa separação da natureza
  • A radicalidade da vida estéticacultura 04 20/07/2024 Por AMANDA DE ALMEIDA ROMÃO: O sentido da vida para Contardo Calligaris
  • A questão agrária no Brasil — segundo Octávio IanniJose-Raimundo-Trindade2 19/07/2024 Por JOSÉ RAIMUNDO TRINDADE: As contribuições de Ianni podem auxiliar a reformular o debate agrário brasileiro, sendo que as obras do autor nos apontam os eixos para se repensar a estrutura fundiária brasileira

PESQUISAR

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES