Por JOSÉ RAIMUNDO TRINDADE*
Os golpes de Estado no Brasil são partes de uma contrarrevolução permanente
A história brasileira poderia ser comparar a uma sanfona, esse instrumento musical tão nordestino. Na maioria das vezes o “sanfoneiro” utiliza poucas notas musicais menos graves, porém de tempos em tempos ele flexiona ao máximo o instrumento para acomodar as notas mais altas. A burguesia brasileira parece uma sanfona: frequentemente é incapaz de dar conta das “notas mais graves” e requer seus “Bonapartes” de plantão, óbvio que a nota mais frequente é a do tom verde-oliva, força militar sempre necessária para impor a ordem republicana.
A cada conjunto de intervalos, um tanto quanto regulares, temos novos golpes de Estado, essa cronologia parece seguir um estranho ritmo vinculado aos interesses estadunidenses e ao agravamento das crises econômicas nacionais e internacionais, algo que diz muito da fragilidade institucional e do grau de subordinação da burguesia brasileira ao imperialismo norte-americano.
A partir da ideia de “contrarrevolução prolongada” cunhada por Florestan Fernandes e desenvolvida por Otávio Ianni, tratamos dos vários fenômenos históricos de golpes de Estado no Brasil, seja o de 1964, seja o de 2016. Muito já se escreveu sobre as relações entre grupos e classes sociais e como as alterações históricas são frutos de blocos de poder, porém trataremos aqui desde uma tese inusitada: os Golpes estão integrados, pois se trata de momentos próprios de contrarrevolução burguesa, o que estabeleceria um conceito mais amplo que o de Florestan que seria o de contrarrevolução permanente.
A contrarrevolução prolongada
Os interesses econômicos e sociais que se imiscuíram para definir a trajetória histórica brasileira contemporânea tem em abril de 1964 um ponto de inflexão central. Dois autores clássicos nacionais já analisaram profundamente aquele fenômeno, por mais que estejamos hoje suscetíveis a revisionismo histórico, mas tanto Florestan quanto Ianni tinham um ponto de vista comum: o golpe de 1964 constituía uma contrarrevolução prolongada.
A burguesia brasileira resulta de uma cocha de retalhos da aristocracia agrária. Os três fenômenos centrais que acabaram compondo a burguesia brasileira são elementos que definem o tipo de capitalismo dependente nacional: o escravismo-colonial definindo o racismo estrutural como parte de uma sociedade com senso de discriminação racial como marca perene; o latifúndio como condição patrimonialista, forte aspecto tanto de uma cultura “agrarista” conservadora, marcante pela ideia de que não há espaço para pequena produção; por fim o patriarcalismo enquanto essência de poder do masculino sobre o feminino.
Esses elementos se tornam algo tão preponderante no atual ciclo do “agronegócio”, mesmo que vendam a ideologia do “agro é pop”, mas a grande fazenda é o espaço do maquinário importado. Florestan considerava que as décadas iniciais do século XX maturaram a burguesia brasileira, porém uma classe formada em condições muito distintas das demais burguesias, e por conta dessa condição estrutural também estabelece uma sociedade de caráter dependente. A burguesia brasileira se constitui como apêndice histórico das classes latifundiárias.
A interação entre os interesses sociais e a própria capacidade de apreensão da disputa internacional em torno de um território tão amplo e abrangente como o brasileiro constitui uma das bases do autocratismo e da violência contratual da classe dominante brasileira.
O centro da dominação e da manutenção desse autocratismo se fez ao longo das últimas seis décadas como lógica de poder dos militares. Os militares assumiram uma condição permanente de poder bonapartista, sendo que sua assimilação a essa condição também levou a uma interação permanente de preparo dos quadros militares pelos interesses do império estadunidense. Aspecto chave é que esse preparo não implica em capacidade cognitiva e soberana e sim capacidade mínima de cognição social e máximo de empatia com seu próprio povo. A forma de interação do poder militar com a população brasileira sempre foi da máxima opressão.
As contrarrevoluções são formas de rupturas permanentes. Florestan pensava a noção de contrarrevolução prolongada, supondo que toda capacidade de organização social no Brasil seria interrompida por uma força contrária que aniquilaria no tempo-histórico os movimentos revolucionários ou reformistas. Cinco pontos relacionados a contrarrevolução:
i) formações sociais dependentes são constituídas pela lógica de transferência permanente de riquezas para o centro capitalista. As burguesias centrais acompanham e controlam os fluxos de transferência de riqueza e apontam transições e necessidades de alterações sistêmicas.
ii) a transferência de riqueza se dá mediante quatro formas principais: 1) recursos naturais; 2) tecnologias; 3) riquezas financeiras; 4) dívida pública. Convém assinalar que todas as formas de riqueza transferidas são resultantes da lógica de superexploração do trabalho. A visibilidade disso é a miséria da população brasileira.
iii) a opressão social requer grau de dominação ideológica cujos aparatos midiáticos se tornem parte fundamental do aparelho de Estado. Rede Globo não constitui algo menor e sim fundamental na manutenção de um processo contrarrevolucionário.
iv) sociedades dependentes que requerem instrumentos de forças militares locais. Assim, as Polícias Militares não são partes menores de um aparato de poder. As forças de ocupação são internas. Os militares como condição de disputa internacional são menores.
v) organizações contrárias aos poderes contrarrevolucionários são formas a serem combatidas permanentemente, o que constitui o centro da ideia de contrarrevolução permanente. Partidos políticos de esquerda são partes a serem combatidas e destruídos. O poder de mando imperial obriga as classes dominantes locais a destruírem toda força autônoma, daí não se ter sindicatos organizados, partidos organizados ou qualquer experimento social que divirja dos interesses e ideologia dominante.
A dependência como essência
A economia mundial capitalista tem o caráter de desenvolvimento desigual e combinado, o que se materializa em um padrão internacional de divisão do trabalho na qual a economia mundial se divide em três grandes zonas de soberania e de arranjos tecnológicos, geopolíticos e de controle financeiro: o centro, a semiperiferia e a periferia, sendo que essa divisão aparece funcional para garantir a apropriação de mais-valor pelos centros e novos-centros, permitindo o acumulo do poder econômico nas regiões de liderança tecnológica, militar e financeira e o subdesenvolvimento (em condições de dependência) nas regiões de menor progresso tecnológico, subordinação geopolítica e financeira.
As relações entre economias capitalistas centrais e periféricas se mantém pela transferência ou vazão líquida de valor para os países centrais, seja pelos mecanismos clássicos de remessas de dividendos, juros e ordenados pagos aos diretores das grandes companhias imperialistas e aos débitos crescentes dos países subdesenvolvidos, mas também pelo agravamento da troca desigual, especialmente estabelecidos desde o crescente hiato tecnológico consolidado a partir dos anos 2000.
Considerando, por exemplo, o caso brasileiro, temos magnificado o sentido da manutenção da dependência e da restrição da soberania nacional: em termos tecnológicos temos uma dependência estrutural aos EUA; no caso financeiro, o sistema de crédito brasileiro constitui um biombo do sistema estadunidense. Visível no sistema de dívida pública, que basicamente funciona como um meio de transferência de riqueza nacional para os controladores externos ou internacionais da dívida, algo em torno de 5% do PIB anual; quanto aos aspectos geopolíticos, plenamente vinculados as relações exteriores do império norte-americano; por fim o aspecto da qualidade de vida, onde a lógica de superexploração do trabalho impõe precárias condições de vida para a maior parte da população brasileira.
A dependência constitui a essência estrutural do capitalismo, diversas nações somente existem enquanto formas subordinadas aos interesses do capital central. Essas nações existem como um corredor de esteiras, gastam o máximo de energia, mas permanecem no mesmo lugar. Essa energia cinética produzida não se dispersa é colhida. No mundo natural ela vira suor que pinga e escorre, mas no mundo capitalista essa energia é coletada na forma de gigantesca massa de riqueza liquida, seja juros coletados, seja amortizações de dívidas públicas, seja de pagamentos os mais diversos. A dependência se impõe como uma necessidade estrutural do capitalismo contemporâneo.
O Brasil é um amplo espaço de exploração cinético, a incapacidade da classe dominante local de interpor limites a exploração nos levará a uma espoliação sem limites da população e da natureza. No limite somente a ruptura radical com a condição de dependência estabelecerá um Brasil soberano.
Contrarrevolução permanente
A lógica da dependência integra o capitalismo central e o periférico, sendo que não há vários capitalismos, existe somente o capitalismo mundial que se impõe sob as formas centrais e periféricas. A dependência a partir da segunda metade do século XX estaria fundada numa situação de compromisso entre os interesses que movem as estruturas internas dos países dependentes e as do grande capital internacional, o que implica numa profunda internalização dos interesses das empresas transnacionais e nova limitação ao grau de autonomia das economias e sociedades periféricas no que diz respeito aos componentes de soberania já assinalados.
O que se tem agora é uma nova interação mundial, sendo que o padrão brasileiro se enquadra sem nenhuma resistência nacional no estabelecimento de um padrão de acumulação de especialização primário-exportador. A ordem capitalista internacional estabelece e aprofunda a dependência brasileira.
A economia mundial capitalista tem o caráter de desenvolvimento desigual e combinado, o que se materializa em um padrão internacional de divisão do trabalho na qual a economia mundial se divide em três grandes zonas de soberania e de arranjos tecnológicos, geopolíticos e de controle financeiro: o centro, a semiperiferia e a periferia, sendo que essa divisão aparece funcional para garantir a apropriação de mais-valor pelos centros, permitindo o acumulo do poder econômico nas regiões de controle tecnológico, militar e financeiro e o subdesenvolvimento (em condições de dependência) nas regiões de menor progresso tecnológico, subordinação geopolítica e financeira. A lógica de subordinação se impõe como contrarrevolução permanente aos periféricos.
A expansão mundial do capital e a configuração do capitalismo enquanto economia-mundo se processa desigualmente em termos territoriais, não havendo “convergência” como processo econômico, mas o estabelecimento de diferentes hierarquias geoeconômicas, em conformidade a referida dinâmica de desenvolvimento desigual e combinado. A economia mundial se estabelece, portanto enquanto diversos circuitos reprodutivos de capital superpostos e integrados, sendo que essa relação é o que constitui a lógica imperialista, por um lado, e de dependência por outro. O que se denomina de soberania nacional deve ser entendido como o maior ou menor grau de autonomia nacional em relação a quatro eixos centrais: tecnológico, financeiro, geopolítico e de reprodução social das populações.
O Brasil é parte central da configuração espacial periférica dos EUA, sendo que em função sua soberania é limitada em quatro pontos que constituem ou determinam a soberania nacional:
i) Quanto a capacidade de domínio tecnológico e de controle sobre os principais segmentos da reprodução técnica do capital. Neste aspecto, tanto a dependência de plantas industriais transplantadas, quanto pelo fato da não neutralidade da tecnologia e de sua razão antropocêntrica, observa-se uma série de consequências negativas ao Brasil, inclusive nos aspectos de formação de bolsões de pobreza, desocupação e informalidade.
ii) A crescente menor influência sobre o circuito financeiro internacional, e como se estabelece as condições de controle nacional sobre seu sistema de crédito e base monetária, componente de soberania financeira. Este fator implica a capacidade, em termos de moeda nacional de conseguir fazer tanto as trocas comerciais internacionais tendo como base sua moeda nacional, como também o controle sobre os fluxos de capitais (Investimento Externo Direto) e as consequentes transferências de rendas (lucros e juros) para os países centrais, no caso da América Latina centralmente para os EUA.
iii) O controle geopolítico do território e a capacidade de intervenção extraterritorial. Aqui três elementos se integram de um lado o poder militar autônomo que apresenta maior ou menor capacidade de dissuasão de ofensivas de outros Estados beligerantes, o uso autônomo e soberano do território em conformidade aos interesses de um projeto nacional e, por fim, a capacidade de arbítrio e influência na ordem de decisão multilateral internacional. O Brasil apresenta enorme dependência e subordinação neste aspecto, seja pela incapacidade de se colocar nos acordos multilaterais internacionais, seja pela própria gestão dos seus territórios, em grande medida sujeitos a intervenção do poder imperial estadunidense.
iv) Por fim, mais central e de grande consequência, os fatores de ordenamento social considerando a qualidade econômica, educacional e de saúde da população, o exercício da cidadania enquanto poder de organização e convívio coletivo, o poder de exercício de interação democrática nas decisões do Estado.
Considerando o ocaso brasileiro, temos magnificado o sentido da manutenção da dependência e da restrição da soberania nacional: em termos tecnológicos temos uma dependência estrutural aos EUA; no caso financeiro, o sistema de crédito brasileiro constitui um biombo do sistema estadunidense. Visível no sistema de dívida pública, que basicamente funciona como um meio de transferência de riqueza nacional para os controladores externos ou internacionais da dívida, algo em torno de 5% do PIB anual; quanto aos aspectos geopolíticos, plenamente vinculados as relações exteriores do império norte-americano; por fim o aspecto da qualidade de vida, onde a lógica de superexploração do trabalho impõe precárias condições de vida para a maior parte da população brasileira.
As relações entre economias capitalistas centrais e periféricas se mantém pela transferência ou vazão líquida de valor (riqueza) para os países centrais, seja pelos mecanismos clássicos de remessas de dividendos, juros e ordenados pagos aos diretores das grandes companhias imperialistas e aos débitos crescentes dos países subdesenvolvidos, mas também pelo agravamento da troca desigual, especialmente estabelecidos desde o crescente hiato tecnológico consolidado a partir dos anos 2000.
Convém lembrar que a dependência a partir da segunda metade do século XX estaria fundada numa situação de compromisso entre os interesses que movem as estruturas internas dos países dependentes e as do grande capital internacional, o que implica numa profunda internalização dos interesses das empresas transnacionais e nova limitação ao grau de autonomia das economias e sociedades periféricas no que diz respeito aos componentes de soberania.
Os golpes de Estado no Brasil são partes de uma contrarrevolução permanente, sendo que os movimentos contínuos do povo brasileiro são dispersados pela classe dominante e transferido as riquezas nacionais para o centro capitalista. A ruptura com essa lógica somente se dará destruindo o capitalismo.
*José Raimundo Trindade é professor do Programa de Pós-graduação em Economia da UFPA. Autor, entre outros livros, de Crítica da Economia Política da Dívida Pública e do Sistema de Crédito Capitalista: uma abordagem marxista (CRV)
Referências
Florestan Fernandes. A Revolução Burguesa no Brasil. Editora Guanabara, 1979.
Octavio Ianni. A ditadura do grande capital. Civilização Brasileira, 1981.
José Trindade. Agenda de debates e desafios teóricos. Paka-tatu, 2020.