Por RENATO DAGNINO*
A esquerda aprendeu com essas trajetórias urbanas, e em especial com a da agricultura familiar, que para replicá-las era conveniente começar pelo seu final
A epígrafe do artigo “Novas brechas para a Reindustrialização Solidária” – “Lei da Economia Solidária, recém-aprovada, pode subsidiar outro projeto de desenvolvimento. Mas são necessários novos marcos legais. Para facilitar, por exemplo, a compra pública de produtos de movimentos populares e a recuperação de empresas falidas por seus trabalhadores” – situou o que eu esperançosamente visualizava em dezembro sobre o potencial da economia solidária para aumentar a governabilidade.
Referindo-me à indispensável “construção” de um ator capaz de nuclear interesses para a implementação da lei, eu salientava a necessidade de ações para. Inclusive, promover a Reindustrialização Solidária visando a incorporá-la à proposta da Nova Indústria Brasil.
Na conjuntura, em meio a “cartas-abertas”, resultados de pesquisa de opinião, receio de não punição de golpistas etc., tende a passar despercebida a recente divulgação do programa, designado com a palavra da moda “plataforma”, “Contrata mais Brasil”. Por dificultar aquela “construção” e reduzir o potencial da economia solidária para reverter a perda de governabilidade derivada de eventos dessa natureza, ele é aqui tratado no contexto em que se insere.
Todos os que ouviram falar de economia solidária já escutaram suas características de ser “de baixo para cima”. Entre elas, destaco aqui uma de tipo tecnoprodutivo ou tecnocientífico que incorpora aspectos conhecidos como de natureza cultural paradoxalmente pouco levados em conta.
A economia solidária se organiza em territórios onde existe um conhecimento tecnocientífico coerente com seus atributos de propriedade coletiva dos meios de produção, em vez de privada; solidariedade e cooperação em vez de competição; e autogestão em vez do controle da produção e do consumo capitalista.
Os recicladores de lixo, algo que, pelo menos até agora não é propriedade privada e cuja rentabilidade de exploração não interessa ao capital, é o exemplo mais claro no meio urbano. Eles são a rede solidária mais valorizada pelas lideranças de esquerda.
No meio rural, a agricultura familiar, herdeira entre outros atributos da propriedade coletiva familiar da terra, adquiriu ainda maior valorização e legitimidade. Foi capaz de alavancar o movimento social mais importante da nação, legitimar a agroecologia na universidade, captar uma parcela da compra pública etc.
O conhecimento tecnocientífico construído “de baixo para cima” da agricultura familiar, que inclui aspectos de hardware (instrumentos de trabalho), software (modelos mentais sobre como e o quê produzir) e orgware (formas de organização que incluem, entre outras, a maneira como defende seu direito à terra), é um reconhecido fator de sucesso.
Ainda que correndo risco de exagerar, é possível dizer que a esquerda aprendeu com a agricultura familiar o modo de impulsionar a economia solidária.
Caso fosse possível replicar no meio urbano essa trajetória paradigmática de consolidação, a esquerda teria condições de assegurar a implementação de seu projeto político. Afinal, é ali onde sobrevivem dezenas de milhões de pobres que nunca tiveram e nunca terão emprego. Aqueles para os quais, como se tem exaustivamente mostrado, a economia solidária é, senão a única, a melhor alternativa, do ponto de vista econômico, social, ambiental, e político, a essa condição.
O círculo virtuoso de conscientização, mobilização, organização, participação, empoderamento e governabilidade (expressada “na rua” ou “no voto”) do conjunto da classe trabalhadora poderia ser instaurado através da expansão da economia solidária.
Faltam no território urbano muitos dos atributos que, no meio rural, permitiram à agricultura familiar, ainda que de modo incipiente, lograr um muito significativo fator de sucesso: a alocação de uma parte do poder de compra do Estado. Entre eles, destaco o relativo ao conhecimento tecnocientífico.
Expulsadas de seus territórios, as famílias que vivem na cidade não dispõem de conhecimento tecnocientífico que lhes permita autonomizarem-se do circuito de exploração capitalista. Ali vigora a “lei” de que ninguém pode consumir o que produz e ninguém pode produzir o que consome: tudo tem que passar pelo mercado. O pouco que dele sobrevive, surpreendendo a classe proprietária, é a solidariedade que vigora entre as mães pobres; não é à toa que sejam elas as que impulsionam a economia solidária.
Essas famílias, enquanto unidades da economia popular, sobrevivem à custa do conhecimento tecnocientífico que puderam resgatar ao longo de sua miserável vida de inserção subordinada. Alguns de seus membros, absorvendo conhecimento tecnocientífico capitalista, logram sobreviver, enquanto indivíduos, realizando tarefas cuja escassa expectativa de lucro não interessa à empresa.
A esquerda aprendeu com essas trajetórias urbanas, e em especial com a da agricultura familiar, que para replicá-las era conveniente começar pelo seu final. Ou seja, pela resposta à pergunta acerca daquilo que redes de economia solidária poderiam produzir para atender a demanda estatal de bens e serviços, que hoje representa quase 18% do PIB, em condições competitivas em relação à empresa que hoje a captura quase totalmente.
A título de algo que me permite aludir à enorme quantidade de bens e serviços de intensidade tecnocientífica muito variada que essas redes podem produzir, recorro a uma metáfora: nosso próximo Minha Casa Minha Vida deve ter janelas de alumínio produzias numa cadeia solidária que começa quando, no país que é um dos líderes da reciclagem de alumínio, uma catadora recolhe uma latinha na rua.
A esquerda aprendeu que, em seguida, deveria selecionar dentre aqueles bens e serviços os passíveis de serem produzidos com os conhecimentos tecnocientíficos dos pobres urbanos. Em especial, aqueles que incorporam seu componente mais precioso e insubstituível para a economia solidária, a cooperação autogestionária. E que possam ser otimizados mediante ações de Adequação Sociotécnica da Tecnociência Capitalista na direção da Tecnociência Solidária implementáveis com o auxílio de profissionais de esquerda de nossas instituições de ensino e pesquisa.
Ao encomendar a produção desses bens e serviços mediante seus diferentes níveis e organizações, o Estado poderia organizar, em torno dos cerca de 20 milhões de pessoas que trabalham individualmente por conta própria no meio urbano, a Reindustrialização Solidária.
Mas, regressando ao fio da meada que deixei no artigo citado (e que retomo para saldar a dívida que contraí com o que menciono no título) indico como o Contrata mais Brasil modificou minha expectativa.
Conforme se depreende do expresso em site do governo (disponível aqui), ele parece ir no sentido contrário daquilo que a esquerda aprendeu a respeito de como atuar para expandir a economia solidária no meio urbano em benefício da implementação de seu projeto político.
“O Contrata+Brasil [que] é a plataforma de oportunidades de negócios do governo brasileiro que conecta, de forma simples e rápida, compradores públicos da União, estados e municípios e fornecedores em todo o país, inicialmente microempreendedores individuais (MEIs), para ampliar oportunidades de negócios locais e gerar mais emprego e renda” … “ amplia oportunidades para pequenos empreendedores nas contratações públicas” … “alcança mais de 30 adesões de prefeituras e outros órgãos públicos do país”.
O programa-plataforma implementa a seu modo “bandeiras” como a da compra pública que o movimento de economia solidária vem agitando junto às companheiras e companheiros que, hoje no governo, se encontram envolvidos com a elaboração da política pública. A maneira como o faz, entretanto, deixa de levar em conta até mesmo conceitos básicos como o do aumento de produtividade do trabalho derivado da cooperação entre os trabalhadores e dos ganhos de escala que ocorreram ao longo da história.
Mas, a alocação do poder de compra do Estado junto aos pobres urbanos que possuem qualificação para prestar serviços para atender à demanda das “quase 500 prefeitas e prefeitos [que] já manifestaram intenção de aderir à plataforma” se dará de modo muito distinto daquele que se esperava com a aprovação da Lei da economia solidária.
Os cerca de seis milhões de MEIs que trabalham por conta própria no meio urbano poderiam ser beneficiados com o programa-plataforma tenderão operar de modo individual e não associativo e, muito dificilmente, solidário. Entre outras coisas porque, além de estarem sob a influência do ideário neoliberal que induz à competição e a alegorias como o empreendedorismo e a meritocracia, serão sociotecnicamente induzidos a empregar o conhecimento tecnocientífico (associado à Tecnociência Capitalista) de que dispõem.
Ainda que o programa-plataforma esteja aquém de suas necessidades, por serem por ele beneficiados, esses pobres urbanos poderão aumentar, conjunturalmente, a governabilidade.
Mas com sua implementação corre-se o risco de frear o movimento da economia solidária urbana. Desaproveitando o aprendizado da esquerda, se estará desperdiçando o potencial de mobilização – “na rua”, mas também “no voto” – de um movimento que, à exemplo do que é o hoje MST, pode se tornar a vanguarda da sociedade que queremos.[i]
*Renato Dagnino é professor titular no Departamento de Política Científica e Tecnológica da Unicamp. Autor, entre outros livros, de A indústria de defesa no governo Lula (Expressão Popular). [https://amzn.to/4gmxKTr]
Nota
[i] Agradeço, sem incriminar, as companheiras Luciana Ferreira da Silva, Marcia Tait e Alzira Medeiros, e aos companheiros Gabriel Kraychete, Delso Andrade, Henrique Novaes, Antônio Cangiano, Marco Baleeiro Alves e Arthur Guimarães, as ideias que aportaram a este texto.
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