“Corrupção Pública” versus “Corrupção Privada”

Blanca Alaníz, serie Cuadrados, fotografía digital y fotomontaje a partir de la obra Planos em Superficie Modulada de Lygia Clark no.2 (1957), Brasilia, 2016
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram
image_pdfimage_print

Por JOÃO CARLOS LOEBENS*

A corrupção como o maior problema do Brasil é mais um dos tantos mitos do contexto fiscal que circulam livre e fortemente no imaginário de boa parte da população brasileira

A corrupção é o maior problema do Brasil? É comum ouvirmos uma resposta afirmativa a essa pergunta nas rodas de conversa. Qual seria a fundamentação? Quando uma afirmação carece de fundamentação, trata-se de um mito[i], equiparável aos dogmas de fé religiosos. Seria essa afirmação (A corrupção é o maior problema do Brasil!) um mito? Nesse sentido, vamos buscar elementos para embasar uma avaliação.

Para avaliar essa questão, precisamos de 3 elementos:  definir o que entendemos por corrupção (delimitar o alcance), buscar estimativas de valor para corrupção (para efeitos de comparação maior/menor), e apontar/comparar com outro problema (o de valor inferior).

De forma concisa, no âmbito fiscal podemos definir corrupção como sendo o desvio de recursos públicos. Por tratar-se de desvio, precisamos levar em consideração o percurso que fazem os recursos públicos, visando abranger os diferentes momentos ou etapas onde os recursos públicos são ou podem ser desviados.

Vamos usar um exemplo prático para facilitar a explicação. Uma pessoa vai a uma loja e compra um celular por R$ 1.000,00. Nesse valor estão incluídos os impostos sobre o consumo (ICMS, IPI, COFINS etc.), que hipoteticamente podemos definir como sendo R$ 200,00.

A pessoa (consumidor) que comprou o celular, pagou R$ 800,00 pelo aparelho e R$ 200,00 de impostos, sendo que esses R$ 200,00 foram entregues ao lojista (pessoa jurídica), devendo este lojista depositar esses R$ 200,00 na conta do Estado no final do mês. Ou seja, esse lojista está com R$ 200,00 reais de recursos públicos no caixa de sua empresa até depositá-los na conta do Estado.

Passado o mês, o lojista deposita os R$ 200,00 na conta do Estado, momento a partir do qual os gestores públicos usam esse dinheiro para o pagamento dos diferentes serviços públicos, como salário de professores, policiais, aposentadorias, basicamente para pessoas físicas, ou obras públicas, como estradas, ou mesmo os benefícios fiscais, basicamente para pessoas jurídicas.

Nesse sentido, e visando atender a presente avaliação de desvio de recursos públicos, o importante é destacar dois fluxos:

1 – o primeiro fluxo, onde os recursos públicos circulam do contribuinte até o caixa do Estado (pessoas físicas e principalmente pessoas jurídicas), e

2 – o segundo fluxo, onde os recursos públicos circulam do caixa do Estado até os prestadores dos serviços públicos ou beneficiários finais (também pessoas jurídicas e pessoas físicas).

São nesses dois fluxos que ocorrem os desvios dos recursos públicos. No primeiro fluxo, usando o exemplo acima descrito, o lojista, em vez de depositar os R$ 200,00 na conta do Estado, desvia esse recurso público para sua empresa, em benefício próprio. No segundo fluxo, após os R$ 200,00 reais terem ingressado no caixa do Estado, o agente público desvia esse recurso para benefício próprio na forma de obra superfaturada por exemplo.

Apesar de, em ambas situações, tratar-se de desvio dos mesmos recursos públicos, o “mercado” (ou quem seria?), com o consentimento dos economistas, deu nomes diferentes a esses desvios. Quando os recursos públicos são desviados no segundo fluxo (após terem ingressado no caixa do Estado), chama-se de corrupção. Quando os recursos públicos são desviados no primeiro fluxo (antes de ingressarem no caixa do Estado), chama-se de sonegação. Independente dos motivos que embasaram essa diferenciação na nomenclatura, verifica-se que, na prática, essa diferenciação cria no imaginário das pessoas a impressão ou convicção de que a corrupção privada não existe.

Diria que essa decisão de dar nomes diferentes a idêntico desvio de recursos públicos dificulta o entendimento do fenômeno da corrupção, motivo pelo qual, e visando facilitar o entendimento, sugiro a adoção da seguinte nomenclatura:

1 – “Corrupção Pública” para o desvio de recursos públicos ocorridos após o ingresso dos recursos no caixa do Estado, e

2 – “Corrupção Privada” para o desvio de recursos públicos ocorridos antes do ingresso dos recursos no caixa do Estado.

Superada a etapa de definição do que entendemos por corrupção, passemos à segunda etapa, a da busca de estimativas de valores de corrupção no Brasil. Óbvio que é difícil mensurar a corrupção, mas há trabalhos nesse sentido que ajudam a embasar um melhor entendimento da questão.

Para a corrupção pública, por exemplo, no artigo “A corrupção não é o principal ralo do dinheiro público no Brasil”, baseado num estudo do economista Claudio Frischtak sobre superfaturamento em obras de infraestrutura, conclui-se: “Se dividirmos o maior valor pelos 45 anos pesquisados, dá uma média de R$ 6,66 bilhões por ano”.[ii]Para fins de comparação, mesmo sabendo que as obras de infraestrutura são conhecidas como a principal forma de desvio de recursos públicos, vamos multiplicar por 10 o valor apresentado, estimando os desvios de recursos públicos após ingressarem no caixa do Estado em 60 bilhões/ano.

Pelo lado da corrupção privada, o estudo mais relevante é o realizado pelo SINPROFAZ, conhecido como Sonegômetro, que estima a sonegação anual no Brasil (corrupção privada) em valores próximos aos 600 bilhões de reais por ano.[iii]

Dessa forma, o valor anual da corrupção pública seria de R$ 60 bilhões e o valor anual da corrupção privada seria de R$ 600 bilhões. Nesse momento, cabe uma última comparação macro: quanto representam esses desvios de recursos públicos na arrecadação total do país, somados os três níveis de governo? A Carga Tributária brasileira está ao redor de 33% do PIB (R$ 6 trilhões x 33%), aproximadamente 2 trilhões de reais. Comparando a corrupção pública (R$ 60 bilhões) e a corrupção privada (sonegação – R$ 600 bilhões) com a arrecadação total (R$ 2.000 bilhões), verifica-se que a corrupção pública representa aproximadamente 3% da arrecadação total e a corrupção privada representa aproximadamente 30% da arrecadação total do Brasil.

Dizendo de outra forma, se as corrupções pública e privada fossem eliminadas (sabe-se que na prática isso é impossível – todos os países possuem algum nível de corrupção) a arrecadação total passaria de 2.000 bilhões para 2.600 bilhões/ano (os R$ 60 bilhões de corrupção pública já foram arrecadados – não aumentariam a arrecadação total – seriam apropriadamente aplicados).

Considerando somente a eliminação da corrupção pública, praticamente a única atacada nos meios de comunicação, seriam apropriadamente aplicados os R$ 60 bilhões dos R$ 2.000 bilhões arrecadados anualmente (3%), o que, nas palavras do autor do artigo acima citado, “não traria maior equilíbrio às contas públicas, ou seria fonte relevante para novas necessidades públicas ou melhor cobertura para as demandas sociais’, de forma que, “ao contrário do que habita o imaginário popular, não basta devolver o que foi ‘roubado’ para atender às urgências da população mais pobre do país”. No entanto, se for somada a parcela da corrupção privada (sonegação – R$ 600 bilhões – 30%), esse quadro apresenta uma expressiva alteração com poder de influir de forma relevante no equilíbrio das contas públicas.

Concluindo: no âmbito da nomenclatura habitualmente usada, o desvio de recursos públicos representado pelo problema da sonegação (600 bilhões) é 10 vezes maior que o problema da corrupção (60 bilhões).A resposta à pergunta inicial é: a corrupção NÃO é o maior problema do Brasil, pois a corrupção é aproximadamente 10 vezes inferior à sonegação. Com base nos valores acima, pode-se concluir que a afirmação “a corrupção é o maior problema do Brasil” é mais um dos tantos mitos do contexto fiscal que circulam livre e fortemente no imaginário de boa parte da população brasileira, especialmente aquela parte da população que tem como principal ou única fonte de informação o praticamente monopólio de imprensa brasileira.

*João Carlos Loebens é doutorando em economia e auditor-fiscal da Receita Estadual do Rio Grande do Sul.

Publicado originalmente no Instituto Justiça Fiscal.

 

Notas


[i] Mitos são assim: alguém cria, outros repetem e os demais acreditam e passam adiante. E quanto mais a narrativa é ouvida sem reflexão, mais o mito se torna incontestável e se torna verdade.

[ii]A corrupção não é o principal ralo do dinheiro público no Brasil – https://www.conjur.com.br/2017-out-26/ricardo-lodi-corrupcao-nao-principal-ralo-dinheiro-publico#sdfootnote11sym

[iii]Sonegômetro – http://www.quantocustaobrasil.com.br/

Veja todos artigos de

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

A redução sociológica
Por BRUNO GALVÃO: Comentário sobre o livro de Alberto Guerreiro Ramos
O prêmio Machado de Assis 2025
Por DANIEL AFONSO DA SILVA: Diplomata, professor, historiador, intérprete e construtor do Brasil, polímata, homem de Letras, escritor. Como não se sabe quem vem à frente. Rubens, Ricupero ou Rubens Ricupero
Distopia como instrumento de contenção
Por GUSTAVO GABRIEL GARCIA: A indústria cultural utiliza narrativas distópicas para promover o medo e a paralisia crítica, sugerindo que é melhor manter o status quo do que arriscar mudanças. Assim, apesar da opressão global, ainda não emergiu um movimento de contestação ao modelo de gestão da vida baseado do capital
Aura e estética da guerra em Walter Benjamin
Por FERNÃO PESSOA RAMOS: A "estética da guerra" em Benjamin não é apenas um diagnóstico sombrio do fascismo, mas um espelho inquietante de nossa própria era, onde a reprodutibilidade técnica da violência se normaliza em fluxos digitais. Se a aura outrora emanava a distância do sagrado, hoje ela se esvai na instantaneidade do espetáculo bélico, onde a contemplação da destruição se confunde com o consumo
Tecnofeudalismo
Por EMILIO CAFASSI: Considerações sobre o livro recém-traduzido de Yanis Varoufakis
As origens da língua portuguesa
Por HENRIQUE SANTOS BRAGA & MARCELO MÓDOLO: Em tempos de fronteiras tão rígidas e identidades tão disputadas, lembrar que o português nasceu no vaivém entre margens – geográficas, históricas e linguísticas – é, no mínimo, um belo exercício de humildade intelectual
Na próxima vez em que encontrar um poeta
Por URARIANO MOTA: Na próxima vez em que encontrar um poeta, lembre-se: ele não é um monumento, mas um incêndio. Suas chamas não iluminam salões — consomem-se no ar, deixando apenas o cheiro de enxofre e mel. E quando ele se for, você sentirá falta até de suas cinzas
Conferência sobre James Joyce
Por JORGE LUIS BORGES: A genialidade irlandesa na cultura ocidental não deriva de pureza racial celta, mas de uma condição paradoxal: lidar esplendidamente com uma tradição à qual não devem fidelidade especial. Joyce encarna essa revolução literária ao transformar um dia comum de Leopold Bloom numa odisseia infinita
Economia da felicidade versus economia do bom viver
Por FERNANDO NOGUEIRA DA COSTA: Diante do fetichismo das métricas globais, o “buen vivir” propõe um pluriverso de saberes. Se a felicidade ocidental cabe em planilhas, a vida em plenitude exige ruptura epistêmica — e a natureza como sujeito, não como recurso
Não existe alternativa?
Por PEDRO PAULO ZAHLUTH BASTOS: Austeridade, política e ideologia do novo arcabouço fiscal
Mulheres matemáticas no Brasil
Por CHRISTINA BRECH & MANUELA DA SILVA SOUZA: Revisitar as lutas, contribuições e avanços promovidos por mulheres na Matemática no Brasil ao longo dos últimos 10 anos nos dá uma compreensão do quão longa e desafiadora é a nossa jornada na direção de uma comunidade matemática verdadeiramente justa
Veja todos artigos de

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES