Criação de moeda sul-americana pode acelerar integração regional

Imagem: Roman Odintsov
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por FERNANDO HADDAD & GABRIEL GALÍPOLO*

Países da América do Sul ampliariam soberania com moeda compartilhada com maior liquidez internacional

Em modelos de precificação de ativos, os juros pagos por títulos de dívida emitidos pelo governo são denominados de risco soberano ou livres de risco de crédito, justamente pela capacidade da autoridade monetária emitir o meio de pagamento capaz de liquidar suas obrigações e dívidas, dentro de suas próprias economias.

Se, dentro de cada nação, o Estado e sua moeda são soberanos, nas relações internacionais a lógica é distinta. Há, no sistema financeiro internacional, uma hierarquia entre moedas nacionais, com o dólar no topo conferindo aos Estados Unidos o privilégio de emitir a moeda internacional.

O recente conflito entre a Rússia e a Ucrânia reacendeu velhos temores que haviam arrefecido ao final da Guerra Fria. A possibilidade de uma guerra envolvendo potências nucleares segue ameaçando a existência humana, e o desrespeito à soberania nacional assombra Estados que não possuem o mesmo poderio bélico.

Os EUA e a Europa se valeram do poder de suas moedas para impor severas sanções contra a Rússia, confiscando reservas internacionais e excluindo-a do sistema de pagamentos internacionais (Swift). Diante da impossibilidade (e insanidade) de um enfrentamento militar com outra potência nuclear, Joe Biden e seus aliados buscam no poder de suas moedas modos para isolar e enfraquecer o inimigo.

Não que seja um exercício de poder inédito. Em 1979, a elevação da taxa de juros nos EUA para reafirmar o poder do dólar como moeda global levou diversos países (inclusive o Brasil e boa parte da América Latina) a uma situação de insolvência. Na crise de 2008, foi a força do dólar que permitiu ao FED (Banco Central americano) sustentar os preços no mercado financeiro, ofertando liquidez e demandando ativos.

A utilização do poder da moeda em âmbito internacional renova o debate sobre sua relação com a soberania e a capacidade de autodeterminação dos povos, em especial para países com moedas consideradas não conversíveis. Por não serem aceitas como meio de pagamento e reserva de valor no mercado internacional, seus gestores estão mais sujeitos às limitações impostas pela volatilidade do mercado financeiro internacional.

Durante os anos 1990, sucessivas crises globais levaram diversos países latino-americanos a recorrer ao FMI (Fundo Monetário Internacional) para poder honrar seus pagamentos em moedas internacionais. O apoio do FMI era usualmente condicionado à adesão ao receituário econômico “sugerido”.

No último 25 de março, o FMI aprovou um novo acordo com a Argentina, o 22º desde 1956. Outros países apostaram na dolarização como forma de estabilização macroeconômica, renunciando à soberania monetária e de autonomia na execução de políticas macroeconômicas. A partir de 2003, o Brasil acumulou reservas internacionais e reverteu sua posição de devedor para credor líquido internacional.

Como nas ameaças bélicas, as reservas internacionais funcionam como uma defesa das moedas domésticas, inclusive para desencorajar ataques. Porém, como países emergentes ou em desenvolvimento, em diferentes graus, todos ainda sofremos limitações econômicas decorrentes da fragilidade internacional de nossas moedas.

Um projeto de integração que fortaleça a América do Sul, aumente o comércio e o investimento combinado, é capaz de conformar um bloco econômico com maior relevância na economia global e conferir maior liberdade ao desejo democrático, na definição do destino econômico dos participantes do bloco, pela ampliação da soberania monetária.

A situação não é simples, dada a profunda heterogeneidade estrutural e macroeconômica dos países da região. As tentativas de fortalecer e acelerar a integração regional contaram até o momento com a criação de áreas de livre comércio e acordos no campo do crédito e da infraestrutura. No entanto, o ritmo desse processo é lento, marcado por diversos momentos de recuo.

O início de um processo de integração monetária na região é capaz de inserir uma nova dinâmica à consolidação do bloco econômico, ao oferecer aos países as vantagens do acesso e gestão compartilhada de uma moeda com maior liquidez, válida para relações com economias que, juntas, representam maior peso no mercado global.

A experiência monetária brasileira, como o êxito na operacionalização da URV (Unidade Real de Valor), pode subsidiar um paradigma à criação de uma nova moeda digital sul-americana (SUR), capaz de fortalecer a região.

A moeda seria emitida por um Banco Central Sul-Americano, com uma capitalização inicial feita pelos países-membros, proporcional às suas respectivas participações no comércio regional. A capitalização seria feita com reservas internacionais dos países e/ou com uma taxa sobre as exportações dos países para fora da região. A nova moeda poderia ser utilizada tanto para fluxos comerciais quanto financeiros entre países da região.

Os países-membros seriam creditados com uma dotação inicial de SUR, em regras claras convencionadas, e teriam liberdade para adotá-la domesticamente ou manter suas moedas. As taxas de câmbio entre as moedas nacionais e a SUR seriam flutuantes. Direitos financeiros, como reservas internacionais, também forneceriam contrapartida para emissão equivalente de SUR.

É também fundamental um mecanismo de ajustes simétricos entre países superavitários e deficitários. Os recursos vindos desse mecanismo serão utilizados para capitalizar um fundo da Câmara Sul-Americana de Compensação, vocacionado a financiar a redução de assimetrias entre as economias e o fomento das sinergias entre elas.

Os países-membros poderão comprar SUR para compor suas reservas internacionais, sem que os valores adquiridos sejam taxados. Devem ser criados mecanismos para taxar e desincentivar ataques especulativos.

A criação de uma moeda sul-americana é a estratégia para acelerar o processo de integração regional, constituindo um poderoso instrumento de coordenação político e econômico para os povos sul-americanos. É um passo fundamental rumo ao fortalecimento da soberania e da governança regional, que certamente se mostrará decisivo em um novo mundo.

*Fernando Haddad, professor e advogado, foi candidato à Presidência da República pelo PT em 2018, prefeito de São Paulo (2013-2016) e ministro da Educação (2005-2012).

*Gabriel Galípolo, mestre em economia política pela PUC-SP, foi presidente do banco Fator (2017-2021).

Publicado originalmente no jornal Folha de S. Paulo.

 

Veja neste link todos artigos de

AUTORES

TEMAS

MAIS AUTORES

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
Francisco de Oliveira Barros Júnior Celso Favaretto José Luís Fiori Luiz Bernardo Pericás Antônio Sales Rios Neto Elias Jabbour Marcelo Guimarães Lima Samuel Kilsztajn Manchetômetro Luis Felipe Miguel Antonino Infranca Manuel Domingos Neto Annateresa Fabris Ricardo Abramovay Fernão Pessoa Ramos Matheus Silveira de Souza Leonardo Boff Slavoj Žižek Walnice Nogueira Galvão Jean Marc Von Der Weid Yuri Martins-Fontes José Dirceu Alexandre de Lima Castro Tranjan Marcus Ianoni Rubens Pinto Lyra Ronald León Núñez Henri Acselrad Eleutério F. S. Prado Daniel Brazil Leonardo Sacramento João Adolfo Hansen Sandra Bitencourt Daniel Costa Luiz Eduardo Soares Leonardo Avritzer Ricardo Musse Vanderlei Tenório Anselm Jappe Vladimir Safatle Paulo Martins Carla Teixeira Benicio Viero Schmidt Eduardo Borges Airton Paschoa Eugênio Bucci Valerio Arcary Paulo Sérgio Pinheiro Eugênio Trivinho Gilberto Maringoni Luciano Nascimento Leda Maria Paulani Alexandre de Oliveira Torres Carrasco Everaldo de Oliveira Andrade Carlos Tautz Jorge Branco Afrânio Catani Flávio R. Kothe José Geraldo Couto Celso Frederico Denilson Cordeiro Andrés del Río Priscila Figueiredo João Paulo Ayub Fonseca Marcelo Módolo Michel Goulart da Silva Henry Burnett Armando Boito João Carlos Salles Bruno Machado Lucas Fiaschetti Estevez Liszt Vieira João Sette Whitaker Ferreira Marilena Chauí Thomas Piketty Gilberto Lopes Lincoln Secco Vinício Carrilho Martinez José Costa Júnior Juarez Guimarães José Machado Moita Neto Caio Bugiato Bento Prado Jr. Gerson Almeida Eliziário Andrade Daniel Afonso da Silva Luiz Roberto Alves Dennis Oliveira Renato Dagnino Luiz Carlos Bresser-Pereira Heraldo Campos Eleonora Albano João Feres Júnior Bernardo Ricupero Sergio Amadeu da Silveira Fernando Nogueira da Costa Tadeu Valadares Alexandre Aragão de Albuquerque Marjorie C. Marona Antonio Martins Alexandre de Freitas Barbosa Kátia Gerab Baggio Francisco Pereira de Farias Otaviano Helene Chico Whitaker Osvaldo Coggiola Plínio de Arruda Sampaio Jr. Paulo Nogueira Batista Jr Ricardo Antunes Luiz Renato Martins Julian Rodrigues Lorenzo Vitral Claudio Katz Ari Marcelo Solon Remy José Fontana Marilia Pacheco Fiorillo Luiz Marques Chico Alencar Salem Nasser Jorge Luiz Souto Maior Luís Fernando Vitagliano Fábio Konder Comparato Ronaldo Tadeu de Souza Luiz Werneck Vianna Érico Andrade Ronald Rocha Michael Roberts Mariarosaria Fabris André Singer Gabriel Cohn Ricardo Fabbrini Dênis de Moraes Valerio Arcary Paulo Capel Narvai Rafael R. Ioris Rodrigo de Faria Marcos Aurélio da Silva Jean Pierre Chauvin Alysson Leandro Mascaro André Márcio Neves Soares Igor Felippe Santos Maria Rita Kehl Atilio A. Boron Boaventura de Sousa Santos Michael Löwy Ladislau Dowbor João Carlos Loebens Marcos Silva José Micaelson Lacerda Morais Paulo Fernandes Silveira João Lanari Bo Berenice Bento Francisco Fernandes Ladeira Mário Maestri Flávio Aguiar Andrew Korybko Tarso Genro José Raimundo Trindade Milton Pinheiro Bruno Fabricio Alcebino da Silva Tales Ab'Sáber

NOVAS PUBLICAÇÕES