Crise energética e transições na China

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Por ELIAS JABBOUR*

Para os dirigentes chineses, no momento, é mais importante a mudança nos esquemas de propriedade no país do que garantir uma determinada taxa de crescimento

Tenho sido muito procurado para opinar sobre a atual “crise energética” na China. Tenho conversado bastante sobre isso com Marco Fernandes, editor da Dongs heng News. Morador da China, ele tem me passado informações e opiniões. Estou em fase de elaboração de uma opinião mais de fundo. Quando falo de “mais de fundo”, penso que devemos fugir dos esquemas de oferta/demanda/preços que nos impõem para analisar situações deste tipo. “Tudo se relaciona com tudo”. A China passa por um momento especial e decisivo de sua história que se espelha no aparecimento contradições de múltiplas determinações.

Existe, sim, uma crise de oferta de energia na China. Essa crise tem relação direta com a retomada pós-pandemia e a alta impressionante dos preços de carvão. De acordo com a Morgan Stanley, a demanda chinesa cresceu 15% esse ano e oferta somente 5%. A solução imediata passaria pela permissão de aumento dos preços dos custos de energia por parte do governo. Deverá ser de 10%, resolvendo assim boa parte do problema – já pensando no estoque ao inverno próximo. Mas está aí somente a ponta de um iceberg, a cada dois anos a China precisa acrescentar o equivalente a toda capacidade de geração de energia do Brasil. O refúgio ao carvão deve ser evitado diante da crise ambiental internacional.

Temos que tomar cuidado com a tentativa de justificativa da falência neoliberal no mundo e no Brasil que tem utilizado desta crise na China e na Grã-Bretanha para justificar a crise energética diferente. São três problemas totalmente diferentes. Os investimentos no Brasil só caem desde 2016, enquanto a China não para de investir. Resultado disso foi a descoberta de imensos campos de gás na Mongólia Interior (em um momento de crise de oferta de gás) e ontem de um imenso campo de petróleo em Dongbei.

A questão é que também o governo chinês impôs às províncias do país metas draconianas de redução de emissão de carbono, anunciou o fechamento de minas de carvão fora do país e cancelou importações da Austrália (a China responde por 90% de sua própria oferta). É aí que mora o nó. Honestamente acredito que em questão de semanas essa questão se resolve na China. Aliás, o governo já anunciou que “pagará o preço que for” para garantir o suprimento de energia. Os meios para solucionar esse fim são imensos. O leque de opções não é pequeno. Mas devemos observar isso tudo como parte de um todo.

A China está nesse exato momento passando por uma série de transições simultâneas, entre tais: (1) transição energética; (2) transição de esquemas internos de propriedade e (3) transição de dinâmica de acumulação. Tais transições ocorrem em meio a uma crescente pressão imperialista sobre o país, impondo um ritmo e um tempo político a essas transições que não estavam nos planos dos policy makers chineses há dez anos, por exemplo.

A transição energética é sintetizada na meta de reduzir a zero a emissão de dióxido de carbono para o ano de 2060, alcançando em 2030 o pico de 2030. O governo chinês tem trabalhado sério nesta tarefa. Os dados são abundantes na internet. A China investe mais do que os Estados Unidos e a Europa juntos, na busca por fontes de energia renováveis. Cidades-piloto “inteligentes” têm sido construídas e movidas por fontes renováveis de energia. Nos últimos 20 anos 40.000 km de trens de alta velocidade foram construídas no país. Mas a dependência do carvão ainda é imensa (60% da fonte primária de energia do país). Uma transição dessa não é tranquila.

Um novo ciclo de crescimento econômico no país não será mediado mais por ondas de inovações institucionais que recolocam, ciclicamente, o lugar do Estado e do setor privado na economia – com privatizações seguidas por estatizações. Já não existe mais uma fronteira entre as diferentes formas de propriedade no país, mas o setor privado da economia, ainda poderoso em setores fundamentais da vida chinesa (vide o setor imobiliário) já não responde mais às suas próprias demandas históricas. O que está ocorrendo na China neste momento, aliás desde o final do ano passado, é um novo ciclo de inovações institucionais no país onde formas novas e superiores de estatização estão ocorrendo, o caso da Evergrande e a regulação dos monopólios privados (bigtechs e fintechs) são angulares.

Trata-se de uma operação com alto custo político com impactos ainda a serem verificados. Na verdade, o momento em que a China vive é mais importante a mudança nos esquemas de propriedade no país do que garantir uma determinada taxa de crescimento.

Já a transição na dinâmica de acumulação é algo já em andamento. Os esquemas keynesianos de “demanda agregada” (consumo, investimento e setor externo) apenas nubla, e separa em partes, algo que é uma totalidade. Como Michael Roberts tem apontado, a principal contradição da economia chinesa não é entre mais consumo e menos investimento. A relação entre investimento e consumo não é um jogo de soma zero. Segundo relatórios da Organização Internacional do Trabalho, os salários médios na China aumentaram em média 280% nos últimos dez anos. Isso não ocorreu às expensas da queda da taxa de investimentos.

A grande contradição da economia chinesa reside na necessidade de elevação da produtividade do trabalho, alcançar os países capitalistas neste ponto. Para isso a manutenção de altas taxas de investimentos é fundamental. Entra nesse cálculo o desafio imposto pelo imperialismo que decidiu cancelar a China do mercado internacional de insumos de semicondutores – sabidamente o calcanhar de Aquiles da economia chinesa.

O concreto é expressão de múltiplas determinações. Acredito que cada uma dessas dimensões enseja, em cada momento, um ponto de desequilíbrio à governança chinesa com necessidade de rápida capacidade de intervenção e solução. Até aqui tudo tem sido bem administrado. Com um atraso de dez anos os economistas do mercado financeiro no Brasil anunciam que a China manda um recado de “menos crescimento” (ver a “live do Valor” de comandada pela competente Olivia Bulla).

O recado que a China nos manda e que poucos percebem é que o país está passando por verdadeiras dores do parto de não somente uma transição, mas de múltiplas, ocorrendo de forma simultânea.

*Elias Jabbour é professor dos Programas de pós-graduação em Ciências Econômicas e em Relações Internacionais da UERJ. Autor, entre outros livros, de China Hoje – Projeto Nacional Desenvolvimento e Socialismo de Mercado (Anita Garibaldi).

 

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