O contexto histórico da reforma do ensino médio

Imagem_ColeraAlegria
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por DANIEL BRAZIL*

Ou a educação é para todos ou não é educação, mas mecanismo de perpetuação de desigualdades

Para entender as circunstâncias e o contexto histórico da Reforma do Ensino Médio, cuja implantação tem causado revolta e protestos em todo o país, é preciso recuar até o governo Lula, de 2002 a 2008.

O ex-metalúrgico instituiu uma política de Conselhos em várias áreas, onde reunia representantes de classe, especialistas, estudiosos e profissionais do ramo. O que nos interessa aqui é o Conselho Nacional de Educação, que ouviu centenas de profissionais da educação e apontou linhas de modernização do sistema educacional brasileiro. Em consonância com outras frentes de ação do governo, aprovou as cotas, raciais e para os estudantes advindos da escola pública. O governo petista também ampliou as Universidades federais e escolas técnicas, em todo o país, além de criar sistemas de financiamento para estudantes carentes e estimular bolsas científicas no exterior.

O resultado imediato foi a inclusão de uma grande parcela de jovens pobres no ensino superior. E parte da classe dominante, horrorizada, viu que a filha da empregada ocupava a vaga que historicamente era destinada a seu filhinho. Não há melhor ilustração deste quadro que o filme Que horas ela chega?, de Anna Muylaert (2014).

Após o golpe de 2016 assumiu Michel Temer, que desmontou todos os conselhos. As centenas de sugestões que estavam sendo compiladas e organizadas para uma verdadeira reforma do ensino médio, foram ignoradas ou deturpadas. Em poucos meses, foi formado um pequeno grupo de “especialistas” em educação que formularam as novas regras da BNCC (Base Nacional Comum Curricular), implantada sem consulta aos principais interessados: estudantes, pais e professores. Presenciei a patética “consulta pública” realizada no Memorial da América Latina, em 8 de junho de 2018, com dezenas de “selecionados” pelo governo vindo de todo o Estado para dizerem “sim”. Felizmente o movimento social organizado, junto com estudantes e professores, impediu a farsa da consulta.

Mas, infelizmente, a chamada Reforma do Ensino Médio foi incrementada sob o desgoverno do miliciano, com os pitorescos episódios de ministros da Educação com currículo falso, processos na justiça, barras de ouro negociadas com pastores evangélicos e total desprezo pelas reivindicações dos profissionais de educação. Cortes de verbas, de bolsas, de vagas nas Universidades. O resultado é um desastre pedagógico, mas que faz parte de um projeto, como dizia o visionário Darcy Ribeiro.

E que projeto é esse, nunca explicitado, mas difusamente semeado? Primeiro: precarizar a escola pública, cortar verbas, sucatear equipamentos, deixar de fazer concursos públicos, até o ponto em que bradem “está um lixo, melhor privatizar!” E há grandes corporações internacionais interessadas nessa privatização, claro, além de muitos empresários tupiniquins. A Educação, juntamente com a Saúde, responde constitucionalmente pela maior fatia dos orçamentos municipais, estaduais e federal.

Segundo: eliminar matérias básicas do ensino médio, que caem em qualquer vestibular. Retire filosofia e sociologia, desidrate história e geografia, diminua carga horária de português e matemática. Pronto! Você terá jovens semi-alfabetizados, incapazes de entrar em uma Universidade pública, mas aptos a engrossar as fileiras do trabalho precário. É sempre bom lembrar que a Reforma do Ensino Médio veio acompanhada de uma “reforma trabalhista”, que retirou direitos e institucionalizou a informalidade.

Criaram os “itinerários”, sem preparar professores ou dar escolha aos alunos. Aí o infeliz tem, na sua escola pública em Xiririca da Serra ou numa grande capital, aulas de como cuidar de seu pet, ou de como fazer brigadeiro. E chamam isso, de forma cínica, de empreendedorismo! Aulas dadas, muitas vezes, por EAD (Ensino à Distância), porque não há professores na escola treinados para essas “especialidades”. E alguém está lucrando vendendo essas vídeo-aulas para a rede pública, não tenha dúvida.

Qual é o truque para que isso funcione? Escolas privadas não precisam seguir a reforma! Reforçam aulas de português, matemática, inglês, história, sociologia, etc., e adequam os tais itinerários às reais necessidades: informática, computação, análise de dados, linguagem audiovisual, etc. Para que o projeto se complete, empobreça a escola pública a ponto de não contar com esses recursos. Pronto! Novamente, em pleno século XXI, somente os privilegiados entrarão na Universidade pública, como no século XIX. Como diz o ex-deputado José Genoino, instituiu-se o apartheid no ensino brasileiro.

A Apeoesp, maior sindicato do país, que congrega os mais de 300 mil professores da rede oficial do estado de SP, tem denunciado a precarização do ensino desde 2017. A implantação de PEI (Programa de Educação Integral) com professores despreparados, eliminação de cursos noturnos e exclusão de alunos que trabalham; a maléfica criação de escolas cívico-militares, bico para oficiais da reserva darem aulas de “educação moral e cívica”, história, etc., sem concurso, por “notório saber”; a tentativa de impor uma “Escola sem partido” absolutamente persecutória e inimiga da liberdade de cátedra; tudo isso faz parte de um projeto, como dizia o sempre lúcido Darcy Ribeiro.

Em audiência pública realizada na Assembleia Legislativa no dia 16 de março de 2023, convocada pela presidenta da Apeoesp, professora Bebel, depoimentos de especialistas, professores e estudantes reforçaram, com dezenas de exemplos, o desastre implantado nas escolas públicas. No mesmo dia, estudantes realizaram um ato na avenida Paulista, com a palavra de ordem Revoga Já! Um bom resumo dos dois eventos pode ser visto aqui.

Vamos colocar um grão de sal nesse angu. É necessário reformar o ensino médio? Sim! Não podemos prosseguir como em meados do século XX, na base da lousa, giz e saliva. O mundo se transforma, o mercado de trabalho tenta se adequar, a comunicação hoje é instantânea e universal, novas ferramentas surgem e urge estabelecer outros parâmetros. Isso estava no horizonte do Conselho Nacional de Educação que foi desmontado pelo governo de Michel Temer.

Exigir a imediata revogação desta reforma do ensino médio (ou deforma, como dizem os estudantes) e instauração de um Conselho realmente democrático para trabalhar em regime de urgência novas diretrizes curriculares adequadas aos tempos em que vivemos é crucial. Já perdemos uma geração, e disso depende o futuro das próximas. Ou a educação é para todos ou não é educação, mas mecanismo de perpetuação de desigualdades.

*Daniel Brazil é escritor, autor do romance Terno de Reis (Penalux), roteirista e diretor de TV, crítico musical e literário.


Veja neste link todos artigos de

AUTORES

TEMAS

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
Henry Burnett Julian Rodrigues Gilberto Lopes Heraldo Campos Walnice Nogueira Galvão Rafael R. Ioris Sandra Bitencourt João Lanari Bo Everaldo de Oliveira Andrade José Machado Moita Neto Remy José Fontana Atilio A. Boron Manuel Domingos Neto Marcos Silva Mariarosaria Fabris José Micaelson Lacerda Morais Renato Dagnino Tadeu Valadares Daniel Afonso da Silva Liszt Vieira Chico Whitaker André Singer André Márcio Neves Soares José Dirceu José Raimundo Trindade Airton Paschoa Jean Marc Von Der Weid Leda Maria Paulani Paulo Capel Narvai Celso Favaretto Eduardo Borges Alexandre Aragão de Albuquerque Fernão Pessoa Ramos Antonino Infranca Claudio Katz Gerson Almeida Daniel Brazil Marcelo Guimarães Lima Francisco Pereira de Farias Osvaldo Coggiola Paulo Martins Mário Maestri Marcelo Módolo Valerio Arcary Yuri Martins-Fontes Eliziário Andrade Fábio Konder Comparato Maria Rita Kehl Luiz Carlos Bresser-Pereira Michael Roberts João Feres Júnior Eugênio Trivinho Bernardo Ricupero Bento Prado Jr. Gilberto Maringoni Luiz Bernardo Pericás Eugênio Bucci Berenice Bento Alysson Leandro Mascaro Rodrigo de Faria Michael Löwy Afrânio Catani Dênis de Moraes João Carlos Salles Vinício Carrilho Martinez Ricardo Abramovay Luiz Werneck Vianna Vanderlei Tenório Érico Andrade Rubens Pinto Lyra José Luís Fiori João Paulo Ayub Fonseca Marilena Chauí Paulo Sérgio Pinheiro Igor Felippe Santos Luiz Eduardo Soares Kátia Gerab Baggio Boaventura de Sousa Santos Alexandre de Oliveira Torres Carrasco Leonardo Boff Luis Felipe Miguel Andrés del Río Valerio Arcary Bruno Machado Chico Alencar Bruno Fabricio Alcebino da Silva Eleutério F. S. Prado Tales Ab'Sáber Luís Fernando Vitagliano Fernando Nogueira da Costa Plínio de Arruda Sampaio Jr. Marjorie C. Marona Daniel Costa João Carlos Loebens Paulo Fernandes Silveira Sergio Amadeu da Silveira Lucas Fiaschetti Estevez Jorge Branco Dennis Oliveira Leonardo Sacramento Manchetômetro Carla Teixeira Francisco Fernandes Ladeira Luciano Nascimento Alexandre de Lima Castro Tranjan Elias Jabbour Antonio Martins Flávio Aguiar Ronald Rocha Andrew Korybko Slavoj Žižek Antônio Sales Rios Neto Paulo Nogueira Batista Jr Gabriel Cohn Ronald León Núñez Anselm Jappe José Geraldo Couto Carlos Tautz Otaviano Helene Armando Boito Luiz Marques Michel Goulart da Silva Ricardo Musse Matheus Silveira de Souza Caio Bugiato Luiz Renato Martins Jorge Luiz Souto Maior Ari Marcelo Solon Salem Nasser Leonardo Avritzer Priscila Figueiredo João Adolfo Hansen Flávio R. Kothe Jean Pierre Chauvin Samuel Kilsztajn Luiz Roberto Alves Benicio Viero Schmidt Marcos Aurélio da Silva Celso Frederico Milton Pinheiro Henri Acselrad João Sette Whitaker Ferreira Ricardo Antunes Marcus Ianoni Eleonora Albano Tarso Genro Ricardo Fabbrini José Costa Júnior Annateresa Fabris Vladimir Safatle Ronaldo Tadeu de Souza Ladislau Dowbor Francisco de Oliveira Barros Júnior Juarez Guimarães Denilson Cordeiro Lorenzo Vitral Alexandre de Freitas Barbosa Marilia Pacheco Fiorillo Lincoln Secco Thomas Piketty

NOVAS PUBLICAÇÕES