Os meios da necropolítica

Imagem: ColeraAlegria

Por ANA AMÉLIA PENIDO OLIVEIRA* e EDUARDO MEI**

O enfrentamento da crise requer medidas excepcionais ou autoritárias e, sob o pretexto de combater a pandemia, promove-se um regime de exceção cujo inimigo seria não o vírus, mas o povo brasileiro

Em todo o mundo, o avanço da pandemia de covid-19 motivou o uso de termos militares para referir-se ao que seria uma guerra contra a disseminação do vírus.  Embora isso não cause surpresa, uma vez que a solução do problema envolve política, estratégia, táticas, logística, etc., em países de forte cultura autoritária e que têm na memória recente ditaduras militares, como o Brasil, convém debruçar-se sobre a ‘condução’ dessa guerra para evitar dois equívocos: o primeiro envolve uma compreensão errônea da guerra e, em decorrência disso, uma compreensão também equivocada da guerra à disseminação do vírus. O segundo, mais importante, é considerar que o enfrentamento da crise requer medidas excepcionais ou autoritárias e, sob o pretexto de combater a pandemia, promove-se um regime de exceção cujo inimigo seria não o vírus, mas o povo brasileiro. Deploravelmente, essas duas possibilidades estão na ordem do dia.

A guerra como metáfora[i]

A guerra à pandemia do Covid-19 não representa uma novidade. A imensa maioria da população brasileira luta uma guerra permanente pela sobrevivência. No Brasil, travam-se muitas guerras: contra a pobreza, contra as drogas, contra o analfabetismo, contra a dengue… e, não obstante isto seja em alguns períodos, dissimulado, os instrumentos de coação “legítima” do Estado brasileiro são continuamente empregados internamente sob a lógica do inimigo interno, em particular contra os considerados “indesejáveis”: o negro, o indígena, o pobre. Mortos e feridos/contaminados também contribuem para associarmos a pandemia à guerra e não é casual que o desenvolvimento de técnicas cirúrgicas e a profissionalização da enfermagem estejam relacionados aos confrontos bélicos. Medidas excepcionais, como as previstas no estado de calamidade pública, medidas orçamentárias e a restrição ao direito de ir e vir — as trincheiras e barreiras sanitárias — também evocam a lembrança da guerra, mesmo em países muito distantes no tempo das chamadas guerras interestatais, como é o caso do Brasil.[ii]

A guerra é a continuação da política por outros meios

No tratado Da guerra, o general prussiano Carl von Clausewitz definiu a guerra como a continuação da política por outros meios. Com isso, ele defendia que a política determina os fins visados na guerra e que tais fins eram eles mesmos a consequência de relações políticas, isto é, toda guerra ocorre em um contexto específico e irrepetível.[iii] Portanto, se consideramos que o enfrentamento à pandemia é uma guerra, cabe perguntar de que tipo de guerra se trata e quais são os fins visados por meio dela.

Como fenômeno eminentemente político, a guerra está sujeita a amplas interpretações histórico-sociais. Ressaltamos um aspecto: o confronto violento entre grupos politicamente organizados. Nesse sentido, só seria possível pensar em guerra entre grupos organizados da sociedade e o governo na disputa pelas táticas para enfrentar a crise, e não propriamente uma guerra contra o vírus.

Na impossibilidade de examinar os fins visados pelos vários atores envolvidos, concentraremos a análise no governo federal, pois é ele quem teria mais recursos para enfrentar e debelar a crise do coronavírus. Diante de situações de guerra, lideranças políticas chamam pela unidade e coesão nacional, conclamam o povo a um esforço em prol de um “bem maior”, e adotam um discurso belicista direcionado ao oponente. A atuação do Bolsonaro diante da crise é absolutamente outra. O presidente insiste na polarização política, adota um discurso belicista voltado para as instituições e até mesmo contra antigos parceiros de trincheira, e emite declarações confusas para a população, às vezes contrárias a outros membros do próprio governo, sobre as medidas a tomar frente à pandemia. Momentos de guerras e as pandemias exigem capacidade governamental para mobilizar a sociedade e as estruturas estatais (como as forças armadas[iv]) para responder conjuntamente um desafio de tal monta. Exigem comando, estratégia, planejamento e capacidade de execução, o que obviamente falta ao Brasil nesse momento.

Nos momentos de guerra, amplifica-se a identidade emocional nacional, e surgem iniciativas de solidariedade, mesmo entre classes sociais distintas. Já em epidemias, as classes sociais são afetadas de forma distinta, e gera-se um sentimento egoísta, seja por parte dos Estados (sabotagens comerciais para a compra de insumos médicos), seja por parte dos indivíduos (estigmatização de grupos mais vulneráveis, como idosos ou asiáticos). Cabe esclarecer que, se um segmento da população brasileira morre mais do que outro, não é prioritariamente por causa do vírus, mas sim devido às condições políticas, econômicas e sociais dos afetados.

Em entrevista ao Tutaméia, Fiori (2020)[v] aponta como traço comum entre a pandemia e as guerras os impactos econômicos de curto e médio prazo. “Mas, ao contrário das guerras, as epidemias não costumam destruir cidades, infraestruturas, equipamentos físicos, fábricas ou qualquer outra atividade econômica.” Embora menos destrutivas, as pandemias exigem respostas econômicas gerais e localizadas. A pandemia despertou o capital especulativo do sonho dogmático[vi] do capital fictício. O efeito óbvio da crise, como já anunciaram o FMI e o Banco Mundial, é uma recessão global em 2020, com aumento dos níveis já elevados de desemprego e pobreza. Nesse cenário, além das medidas sanitárias e de isolamento social, o enfrentamento da pandemia e da crise econômica demanda, necessariamente, medidas anticíclicas, como as adotadas em quase todo o mundo, inclusive investimentos estatais vultosos, mas também medidas que permitam sustentar um longo período de recolhimento social, como a renda mínima e garantias de abastecimento.

A pandemia é a continuação da necropolítica por outros meios

Examinada sob uma perspectiva estratégica, inspirada na teoria clausewitziana da guerra, cabe perguntar: quais são os fins visados pelo governo federal no enfrentamento da pandemia? Fins políticos, manutenção e ampliação do seu poder. Ao negar a gravidade da pandemia, e apresentar a defesa das vidas e da economia como atividades antagônicas, Bolsonaro fez uma aposta arriscada. Se as medidas estaduais tivessem êxito em controlar a pandemia, Bolsonaro validaria seu discurso de que a pandemia é um resfriado. Se não funcionassem, responsabilizaria os governos estaduais pela crise na economia, reforçando seu discurso de ‘antissistema’[vii] e declarando guerra contra outros poderes institucionais. Em sua aposta, o presidente perdeu. O Brasil caminha hoje para se tornar o epicentro da pandemia no mundo, e ele é fortemente responsabilizado. Deve-se dizer que a ortodoxia econômica que orienta a política governamental pouco se alterou. Trata-se do receituário neoliberal clássico: asfixia orçamentária e privatização do Estado.

Para Mbembe (2016), a expressão máxima da soberania do Estado deveria ser o cuidado com os seus cidadãos. No entanto, ele toma os cidadãos como inimigos e adota uma política de matar sistematicamente os cidadãos considerados indesejáveis, adotando a necropolítica[viii]. Destarte, se a guerra é a continuação da política por meios violentos, a pandemia é a continuação da necropolítica por meios sórdidos. Segundo o Relatório Lugano[ix], não há nada de novo nas hecatombes provocada pelas conquistas e guerras, fome e pandemias. “A dificuldade consiste em torná-las duráveis”. Ao que parece, quanto a isso o governo federal aprendeu a lição. Aproveita-se das mortes para ampliar seu poder, em uma guerra não contra a pandemia, ou o vírus, mas contra o próprio povo.

*Ana Amélia Penido Oliveira é pesquisadora de pós-doutorado no Instituto de Políticas Públicas e Relações Internacionais da UNESP e do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social.

**Eduardo Mei é professor de sociologia do Departamento de Relações Internacionais da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da UNESP (campus de Franca).

Notas:

[i]              https://blogs.scientificamerican.com/observations/military-metaphors-distort-the-reality-of-covid-19/

[ii]            https://elpais.com/elpais/2020/04/02/opinion/1585822472_869082.html – O vírus e a linguagem militar

[iii]           http://editoraunesp.com.br/catalogo/9788595463004,dicionario-de-seguranca-e-defesa?fbclid=IwAR1CGr6keJ6bTjnElSqpbr77dIaHbS6py9os-yURByAazEjARKFe1qdb47s

[iv]           https://jornal.usp.br/artigos/um-balanco-da-atuacao-dos-militares-brasileiros-na-pandemia-da-covid-19/?fbclid=IwAR0q0hLvc01P0jlDi69hfGmiwlt-9wH8P2nzZ-UsIrg0lSYrqS8VfY04ND0

[v]             https://www.youtube.com/watch?v=zU4uzpxTDcQ

[vi]           É sintomático do início acidental da crise econômica o fato de que outros fatores poderiam tê-la deflagrado. É notável que, em dezembro de 2019, Nouriel Roubini, que previu a crise de 2008, não considerava a pandemia como um fator econômico relevante. Ver https://www.theguardian.com/business/2019/aug/23/global-recession-immune-monetary-solution-negative-supply-shock e https://www.theguardian.com/business/2020/apr/29/ten-reasons-why-greater-depression-for-the-2020s-is-inevitable-covid

[vii]          https://www.thetricontinental.org/es/ba-research/amlatmar20/

[viii]         https://revistas.ufrj.br/index.php/ae/article/view/8993

[ix]           https://www.boitempoeditorial.com.br/produto/o-relatorio-lugano-38

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