Crônica da imobilidade

Imagem: Dave Garcia
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Por ANA CAROLINA DE BELLO BUSINARO*

Lula reencena a escuta, mas cala a mobilização; condena o bolsonarismo, mas abraça seu legado neoliberal. Sua frente amplíssima não contém a direita e dilui a esquerda em tons de cinza. Restaura-se o passado como museu: vitrine brilhante, conteúdo emancipador esvaziado

1.

O ressurgimento de Lula no Mano a Mano explicita não apenas uma tentativa de resgatar a comunicação direta com o povo – marca emblemática dos anos de ouro do lulismo –, mas também uma estratégia de contenção política.[1] A repetição do formato e dos símbolos de um passado idealizado revela mais do que nostalgia: trata-se de uma reafirmação calculada do conhecido, diante de um cenário em que a base social orgânica do lulismo se esgarça e a popularidade presidencial enfrenta forte erosão.[2] A performance na sua segunda dose reencena uma escuta que não resulta em enfrentamento, apenas reforça a paralisia.

Lula atribui a turbulência atual à extrema direita, responsabilizando o bolsonarismo por desorganizar a institucionalidade e o pacto democrático. O diagnóstico é parcialmente justo, mas revela a insistência em idealizar a social-democracia dos anos 2000 como horizonte político. O petismo ainda vê naquele curto período de estabilidade e expansão do consumo a plenitude democrática possível – mesmo que hoje a conjuntura seja outra, marcada por um colapso contínuo das condições materiais de vida.

A proposta não é avançar: é restaurar um passado esvaziado de conteúdo emancipador. O anúncio de novas versões de políticas assistenciais – como programas para o gás de cozinha ou crédito para reforma de casas – ilustra bem essa estratégia que busca mitigar efeitos sem transformar causas.

O antibolsonarismo aparece aqui não como horizonte de transformação, mas como estratégia discursiva de pacificação e legitimação do próprio projeto neoliberal em curso.

O discurso se ancora no repúdio ao negacionismo da extrema direita, mas não apresenta qualquer proposta de mobilização nacional ou local para a construção de uma nova correlação de forças – como, por exemplo, eleger um legislativo de esquerda ou organizar bases populares. A “frente amplíssima”, composta por dezenas de tons de direita, é naturalizada como necessária para conter o bolsonarismo, ao mesmo tempo em que serve de escudo para justificar medidas como a PEC da Transição, o novo arcabouço fiscal e as metas de responsabilidade imposta.

Assim, o antibolsonarismo, em vez de se constituir como base de um projeto contra-hegemônico, converte-se na retórica central de um governo que não confronta o neoliberalismo – apenas o amansa, o administra e o renova.

Questionado sobre as críticas que apontam o PT como um projeto de centro-direita, Lula refugia-se na retórica da governabilidade. Justifica alianças com setores conservadores sob a lógica do “mal menor” e da responsabilidade fiscal. O argumento se repete: “não se governa como se quer, mas como se pode”. No entanto, não há esforço real para modificar essa correlação de forças. O Congresso conservador é aceito como dado natural, e a ausência de mobilização popular antes, durante e após as eleições sequer é mencionada. O lulismo aceita os limites institucionais como destino, renunciando a qualquer horizonte de ruptura.

A retórica antibolsonarista serve como álibi político para a manutenção de pactos com as elites – inclusive no campo da segurança pública. Quando Mano Brown questiona a violência policial e o medo cotidiano da população negra, Lula não só desvia do problema como elogia Geraldo Alckmin – vice-presidente e figura diretamente associada a décadas de repressão nas periferias paulistas. Em tom de mudança de comportamento dos policiais, o presidente ignora que a letalidade não é um desvio, mas uma engrenagem da política de segurança. A esquerda institucionalizada, ao buscar apaziguar a direita por meio da frente ampla, incorre na despolitização da dor popular.

2.

Ainda que cite medidas como o uso de câmeras nos uniformes, Lula reforça a inoperância do Estado ao afirmar que “é difícil” desmontar os dispositivos herdados do bolsonarismo. Ao mesmo tempo, justifica políticas federais de segurança com foco em impunidade, reforçando a lógica punitivista ao invés de enfrentá-la.

Em um gesto simbólico e programático, o presidente sugere que combater a criminalidade passa pela ampliação de escolas de tempo integral. Mas essa solução, além de superficial e funcionalista, reforça a lógica da educação como mera instrução mínima, ignorando a problemática da hiper-extracurricularização dos currículos na educação pública e solapando o potencial emancipador da escola como crítica à desigualdade estrutural.

Ao afirmar que “se os trabalhadores gritarem 100% ou nada, ficarão com nada”, Lula revela o descompasso entre a moderação do governo e a realidade concreta de um povo que já vive com quase nada. O que está em jogo não é apenas a crise da esquerda institucional – mas sua desconexão afetiva, simbólica e material com os desejos de transformação social profunda. Ninguém deseja viver de auxílios: o que se reivindica é dignidade, tempo de vida, emancipação. A política que se oferece, no entanto, permanece limitada ao gerenciamento técnico da escassez.

A insistência no discurso da verdade, da reconstrução e da moderação tem pouco impacto quando a própria experiência cotidiana revela o contrário – como no relato pessoal trazido por Semayat Oliveira durante a entrevista. A democracia formal já não é percebida como garantia de direitos, e a proposta de convencimento do povo sobre sua eficácia revela uma desconexão consciente da realidade. É como se o governo quisesse restaurar a crença sem reformar as estruturas que a esvaziam. O problema, aqui, não é apenas de comunicação – é de projeto.

A construção da imagem de Lula como cristão, pacificador, torneiro e não-comunista opera como estratégia deliberada de despolitização. Ao se esquivar do campo da esquerda radical, afirma que é grosseiro ser chamado de comunista – e não apenas recusa esse campo como também o equipara, em tom depreciativo, ao extremismo da direita.

Há aqui uma tentativa de homogeneização discursiva em torno da conciliação como única via legítima. Ao apagar a existência da luta de classes como motor da política, o presidente terceiriza essa disputa simbólica, naturalizando a criminalização dos comunistas e contribuindo, assim, para o esvaziamento simbólico da própria esquerda.

Seu discurso oscila entre a promessa de avanços e a aceitação resignada da governabilidade restrita, como se evitasse assumir plenamente a responsabilidade por mudar a correlação de forças política. Essa ambivalência sinaliza que, para as eleições de 2026, dificilmente Lula será o candidato, apostando-se em uma figura moderada e ultraconciliatória do próprio governo para representar esse projeto.

Enquanto anuncia ações e se apresenta como articulador, ele parece consciente –e deliberadamente silencioso – sobre as reais possibilidades de mobilização social e transformação estrutural, repetindo um padrão de contenção que, até aqui, não conseguiu responder às demandas populares mais profundas.

Diante de tudo isso, a pergunta que emerge é: por que a extrema direita – às vezes travestida de moderação, às vezes enfática – continua sendo mais eficaz na disputa de corações e mentes do que o projeto da esquerda institucional? A resposta parece estar na prática radicalizada que a extrema direita soube operar.

Enquanto isso, a esquerda moderada aposta, mais uma vez, na conciliação pacífica como saída – num tiro no escuro que, quando se pergunta entre reforma ou revolução, insiste em tomar a reforma não como meio, mas como fim, e acaba por acertar a própria cabeça.

*Ana Carolina de Bello Businaro é graduanda em Ciências Sociais pela Universidade Estadual Paulista (UNESP).

Notas


[1] Podcast Mano a Mano (Spotify) com Presidente Lula. Entrevista concedida a Mano Brown e Semayat Oliveira. Publicado em 19 de junho de 2025.

[2] Datafolha. “Estável, governo tem avaliação positiva de 28%, e 40% o avaliam negativamente”. Folha de S. Paulo, 16 de junho de 2025.


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