Por MARCOS FALCHERO FALLEIROS*
Prefácio do autor ao livro recém-publicado
Graciliano Ramos estreou na literatura aos onze anos de idade, com o conto “Pequeno pedinte”, publicado no jornalzinho da escola em Viçosa, O Dilúculo, que ele e o primo haviam criado sob orientação do professor de geografia Mário Venâncio, uma figura exótica que apareceu na cidade como novo agente do correio, literato e, em 1906, suicida. Foi esse amável profeta que, mais ou menos um ano antes de tomar ácido fênico, disse ao menino Graciliano que ele seria escritor – e o deixou aturdido com a novidade, andando pelas ruas, cego e surdo, aos tropeções.
Graciliano Ramos confessa que o conto de estreia e as outras publicações que apresentou no jornalzinho eram completamente refeitas pelo mestre, o que muito o envergonhava, pois era claro que todos perceberiam o embuste. Mas se dermos um desconto ao acirrado senso crítico do autor, podemos entender que os arrebiques e as interpolações no texto, praticados por Mário Venâncio, mais estragaram do que aprimoraram a história de meia página: nela vemos a voz narrativa condoída e irmanada à condição de desamparo de uma criança nas mãos da hipócrita caridade – um nível de percepção e sensibilidade que era o embrião das muitas manifestações do adulto que culminaram em Vidas secas.
Há antecedentes, entretanto, mesmo para a manifestação precoce do menino: trata-se de sua alfabetização torturada por palmatórias, gritos, impaciência do pai, grosseria generalizada de escolas precárias, que o pequeno superou ansiosamente para poder decifrar as histórias que o fascinavam.
Assim, há em sua vida um vínculo estreito entre alfabetização e literatura, de tal modo que, “quase analfabeto” aos nove anos, como conta em Infância, aos onze era um pequeno escritor jornalista e a partir dos quatorze publicava em revistas como O Malho, no Rio, e em jornais e revistas de Maceió, sonetos e outras formas poéticas com imagens muito bem elaboradas, revelando domínio de vocabulário erudito e de regras de versificação, além das manobras sintáticas impecáveis. Era o resultado de quem desistira das escolas infames para entregar-se com muita competência ao autodidatismo.
O evento “Graciliano Ramos” pode, portanto, encher a humanidade de entusiasmo, quando vemos a possibilidade do surgimento de um intelectual extremamente refinado saído de um ambiente tosco e brutal, tanto quanto um basbaque do século XXI, amamentado por internet, pode se espantar com o ambiente sertanejo sofisticado que Graciliano Ramos e seus amigos criavam nas brenhas, entre Viçosa e Palmeira dos Índios, providos de jornais e obras vindas longinquamente de carroça.
As cartas de sua juventude são tão intelectualizadas e fascinantes quanto o que se encontra de melhor na correspondência de grandes escritores pelo mundo afora – cheias de gaiatices, humildes e sem pedantismo. Depois da experiência frustrante de um ano no Rio de Janeiro, no segundo semestre de 1915, aos vinte e dois anos de idade, voltou para junto da família em Palmeira dos Índios, casou-se, assumiu do pai a loja de tecidos e de variedades, batizou-a “Loja Sincera”, teve quatro filhos, enviuvou.
Em 1921 participou durante três meses do jornal O Índio, que Padre Macedo havia inaugurado no início do ano – também nesse caso com produções literariamente históricas. E, após sete anos de viuvez, no início de 1928, tornou-se prefeito da cidade e casou-se novamente. Os dois relatórios de prefeito para prestação anual de contas ao governo estadual, escritos em 1929 e em 1930, entraram para a literatura, tal a qualidade inesperada desses textos que, como acontece normalmente, deveriam ser acanalhados, demagógicos, burocráticos e enfadonhos.
Ao contrário, os textos dos dois relatórios são diretos, de um humor que soma a sátira à picaretagem que o cerca com a precisão da honestidade produtiva e dinâmica. Northrop Frye mostra a dificuldade de definir o que é literatura devido às duas direções da linguagem: a direção interna, para a literatura, e a direção externa, para a referência das coisas. O crítico observa que os textos externos às vezes sobrevivem em razão de seu estilo depois que sua funcionalidade para a representação dos fatos se perdeu.
No Brasil temos os exemplos dos sermões de Vieira e, com Euclides da Cunha, Os sertões, instalado inegavelmente na literatura como não romance. Podemos considerar assim também os relatórios do prefeito Graciliano. Fizeram sucesso.
O poeta Augusto Frederico Schmidt, com editora no Rio, leu os relatórios e adivinhou que o prefeito deveria ter algum romance pronto. De fato, entre 1924 e 1925, Graciliano Ramos, viúvo e acabrunhado, tinha retomado a elaboração ou iniciado a escrita de três contos: “A carta” – serviria de ponto de partida para S. Bernardo, ainda que descartado o texto inicial; “Entre grades” – seria desdobrado em Angústia; o terceiro conto espichou-se e virou Caetés. Esse era o romance que, em 1930, Graciliano Ramos tinha para apresentar a Augusto Frederico Schmidt, em resposta ao contato que o editor adivinho estabelecera com o prefeito desconhecido.
Graças à demora na publicação, Graciliano Ramos pôde desfazer o negócio, com alívio. A vida inteira ele manifestou ojeriza por essa “porcaria”, para usar seus termos ao referir-se especialmente a Caetés. Ainda que insistente nesse comportamento, Graciliano Ramos nunca deu sinais de encenações de falsa modéstia. Bem pensadas, suas observações revelam um espírito crítico qualificado, que localiza com clareza os problemas de seus livros.
Como disse Antonio Candido, Caetés é um livro “temporão”, nascido tarde: cheira a Eça de Queiroz do século XIX, sendo um misto: vê-se nele a cópia da cópia que o português fez de Madame Bovary, filiando-se à família dos romances de adultério, e, com um traço próprio muito significativo, mostra-se fundamentalmente baseado em A ilustre casa de Ramires. No entanto, é modernamente límpido, posto em linguagem direta e bruta.
Antonio Candido considera que a obra tem um ar de treinamento, como se fosse um exercício para que o escritor se preparasse para a grande obra que realizaria a seguir. No entanto, Caetés é um romance cheio de atrativos e aspectos inquietantes de novidade em meio a sua velhice – se emprestarmos de Manuel Bandeira o que ele disse sobre os poemas inaugurais de Mário de Andrade, podemos dizer que Caetés é de um “ruim esquisito”.
Antes de enviar a Augusto Frederico Schmidt o livro, Graciliano Ramos renunciou ao cargo de prefeito nos inícios de 1930, vendeu a Loja Sincera e mudou-se com a mulher e filhos para Maceió, convidado pelo governador para o cargo de Diretor da Imprensa Oficial. Lá retrabalhou bastante o texto do romance em meio à Revolução de 1930. Assim, as andanças da história da modernização conservadora no Brasil deixavam sua obra de 1925 mais ainda para trás.
No final de 1931, demitiu-se do cargo em que tinha sido mantido apesar dos tenentes de Getúlio Vargas, mas que não conseguiu suportar. Voltou para Palmeira dos Índios e, no final de 1932, S. Bernardo já estava pronto, ao mesmo tempo em que ele pedia ao editor do Rio que cancelasse a publicação e devolvesse a cópia de Caetés.
Entretanto, Jorge Amado havia lido os originais na livraria de Augusto Frederico Schmidt e, jovem autor entusiasmado pelo aparecimento de um novo colega, foi a Maceió, em 1933, para conhecê-lo. Com a ajuda da esposa de Graciliano, Heloísa, sequestrou o Caetés de volta para Schmidt. O ambiente intelectual de Maceió era na época uma concentração de talentos, não só dos locais, como também daqueles que haviam chegado: por exemplo, José Lins do Rego e Rachel de Queiroz.
É engano considerar que as características marcantes da obra de Graciliano Ramos foram sendo desvendadas ao longo de sua produção pelos anos seguintes. As resenhas surgidas imediatamente à publicação de Caetés, no final de 1933, já mostravam o grande autor, a quem as casualidades da história ofereceram um ninho primoroso de acolhimento em Maceió. Jorge Amado destacou seu estilo geométrico. Aurélio Buarque de Holanda disse que o amigo escrevia com a economia de quem passa telegrama.
Graciliano Ramos foi convidado no início de 1933 para ser Diretor da Instrução Pública de Alagoas. Assim, enquanto começava a escrever Angústia, ao mesmo tempo realizava uma pequena revolução educacional no estado – o que certamente influiu para sua prisão em 1936, quando foi levado para os presídios do Rio de Janeiro, durante a grande caçada que o fascismo de Getúlio Vargas lançou, enchendo as prisões do país com todo tipo de cabeça pensante e pensamento crítico, após o chabu da tentativa revolucionária comunista de 1935.
Mas a exposição clara e cruel do que é a propriedade privada em S. Bernardo, publicado no final de 1934, também deve ter entrado nas considerações doentias dos algozes ao elaborar sua listagem dos que mereciam cadeia. S. Bernardo, portanto, é o achado, o começo e o ponto de partida de sua grande obra, afinal equacionada por um marxismo refinado e independente, verdadeiramente materialista e dialético – uma saída que não lhe permitiu o mundo estagnado de Caetés.
No Rio de Janeiro, em meio aos dez meses e dez dias de prisão, foi publicado Angústia, em agosto de 1936. Após sair da cadeia, enquanto Heloísa voltava para Maceió para organizar a mudança, Graciliano Ramos foi para uma pensão, onde ficou escrevendo Vidas secas paralelamente à produção de artigos para ganhar uns cobres. Com a chegada da esposa e das duas filhas menores, ficaram todos no quartinho, onde elas ouviam a leitura do pai e acompanhavam a sina dos retirantes.
Escrevia os capítulos e, para a sobrevivência, publicava-os nos jornais como contos, de tal modo que seu colega de pensão, Rubem Braga, chamou Vidas secas, afinal publicado em 1938, de “romance desmontável”, sem dar-se conta de sua organicidade – pois além dos capítulos inteiriços, para vendê-los isolados como contos, Graciliano Ramos os escreveu cronologicamente fora da ordem final, enquanto mentalmente organizava sua futura distribuição, indesmontável, ainda que possamos ler os capítulos com sentidos coerentes cada um por si.
Com isso ele fechou sua ficção principal. Seu modernismo brutalista assimila na economia gráfica do texto o chão rachado da seca, que se retrai em sulcos negros, para falar claro contra a “bruma obsoleta e antidemocrática, a dissipar, fraudulenta no fundo” – como nos termos de Roberto Schwarz ao tratar da poesia de Oswald de Andrade. Disse Álvaro Lins que o estilo de Graciliano Ramos tem algo de hierático.
É que, em parelha com o feitio gráfico acima mencionado, soma-se o aspecto do deserto bíblico em sua textualidade, que tanto impressionou o menino ao ouvir histórias do Velho Testamento, associando-asao sertão pernambucano onde viveu na tenra infância de Buíque. Mas no seu deserto sem Deus, a vontade-de-ordem como vontade-de-justiça equaciona-se nessa cabeça prodigiosa por meio de uma imaginação limitada ao que foi vivido com os pés no chão, sob a geométrica racionalidade de seu construtivismo.
Trata-se de um estilo de retábulos, de quadros que parecem irmanados ao corte seco e áspero das xilogravuras nordestinas dos cordéis – o que explica a via-crúcis do “romance desmontável” de Vidas secas, o “caos organizado”, que Antonio Candido viu em Angústia, e a confissão de Leon Hirzsman de que encontrou, ao filmar S. Bernardo, o roteiro pronto no livro – e assim, ao se estender a caracterização do retábulo para o estilo de fotograma, confirma-se a grande vocação cinematográfica da obra de Graciliano Ramos, que fez Alfredo Bosi ver em S. Bernardo uma “série de tomadas cortantes”.
Se o essencial de sua obra, que até aqui percorria o trajeto da ficção, já trazia marcas inescapáveis da biografia do autor, a seguir ele passa, como diz Antonio Candido, da necessidade de inventar à necessidade de depor. Sua literatura se desdobrará de maneira imediata no memorialismo, formando um todo fluido em que ficção e confissão se confundem nas ranhuras da verdade realista.
Antes de ser preso, enquanto escrevia Angústia com tantos aspectos de sua vida, veio-lhe a ideia de tratar diretamente dela e vários títulos de capítulos que seriam do futuro livro, Infância, foram anotados. Depois, no Rio, ao sair da prisão, passou a escrevê-los de 1938 até 1945, quando o livro foi publicado. Como já comentavam na época as resenhas, não se trata de um memorialismo pitoresco, mas de um estudo de caso sob demorada prospecção – isto é, o que temos na verdade é a gênese de sua obra.
Indo à outra ponta da biografia, a partir de 1946, Graciliano finalmente conseguiu escrever rotineiramente – até o final da vida – Memórias do cárcere, a sua projetada denúncia da prisão em 1936 – não só testemunho, mas outra prospecção, como em Infância, agora ampliada por tantas interrogações subjacentes que fazem estremecer o que se constata com solidez. Sendo um dos documentos mais importantes da história do Brasil, foi escrito com independência humanista e sem atrelamentos políticos por este militante do Partido Comunista a partir de 1945.
Mesmo o conjunto completo de sua produção desde os onze anos de idade, apesar de todas as vicissitudes que poderiam tornar a obra dispersiva, mantém uma organicidade que vai da poesia à crônica, da crítica literária ao manifesto, do conto à tentativa (abandonada, é certo) de teatro, da literatura infantil ao folclore, e se encerra com a esperança ressabiada de Viagem, a narrativa de sua visita à URSS e ao mundo comunista dos anos 1950. Mas, desse amplo conjunto, ressalta a obra principal, a essência do evento “Graciliano Ramos”: S. Bernardo, Angústia, Vidas secas, Infância e Memórias do cárcere.
Vê-se então o mapeamento do que se eleva substancialmente acima do todo. Sem planejamentos esquemáticos, sem intenções proselitistas, avesso a forçar teorizações de linha política, a conceptualização marxista de Graciliano deu uma das respostas mais importantes às aporias da arte engajada. As cinco obras revelam sua orgacidade construtivista alcançada pelo autor, mais por consequência lógica que por uma premeditação programática.
Essa mente sistemática percorreu na ficção, com sua genialidade distraída, o trajeto das três classes, de modo descendente: iniciou revelando a “construção do burguês”, como Carlos Nelson Coutinho qualificou S. Bernardo, que Graciliano Ramos adaptou ao enfoque rural frente a seu contexto não industrializado; no mundo urbano de Maceió, abordou a falta de saída do “parafuso”, como o próprio autor qualifica a condição de pequeno-burguês de Luís da Silva – ou a classe “anexa”, por ele assim definida em carta ao filho; encerra, então, o ciclo ficcional, com a proletarização a caminho, em Vidas secas, apontando no final da narrativa o caminho para o Sul industrializado como um inchaço-bomba, profecia comprovada nas décadas seguintes pelos movimentos operários de um povo que tinha amadurecido seu nível de consciência. Restava, assim, as balizas da autoria: a gênese da obra, em Infância, e sua consequência na história, com Memórias do cárcere.
*Marcos Falchero Falleiros é professor aposentado da Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
Referência
Marcos Falchero Falleiros. Cronologia de Graciliano Ramos. Natal, Editora do Autor, 2024, 1222 págs.
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