Da arte de não enxergar corpos no espaço público

Imagem: Cátia Matos
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por LEONARDO AVRITZER*

Considerações finais sobre a discussão com Vladimir Safatle

Finalizo minha contribuição à discussão sobre o episódio do fogo na estátua do Borba Gato, em São Paulo, que levou a uma polêmica com Vladimir Safatle – travada no site A Terra é Redonda –, respondendo a uma questão fundamental de sua tréplica: o problema da violência no espaço público.[1]

Retomo o meu argumento. Baseei-me em Hannah Arendt, na sua crítica à violência e nas suas discussões sobre espaço público, para argumentar que há perigo real de que as formas de violência para a destruição do velho contaminem o novo. Mobilizei também, para o meu argumento, Judith Butler e sua ideia de corpos no espaço público, abordada em seu livro Corpos aliados e luta política (Buenos Aires, Paidós, 2015). Meu argumento é que as formas de ação dos movimentos sociais e dos atores políticos no espaço público devem privilegiar a construção de novas formas do político e que há uma relação negativa entre o exercício da violência e as formas políticas que se formam depois do seu uso.

Estabeleci também uma dinâmica positiva entre a ideia de espaço público em Arendt e em Butler, através da ocupação do espaço público. Afirma Butler “Para Arendt, a ação política tem lugar, porque o corpo está presente. Apareço frente a outros e eles aparecem frente a mim, o que significa que algum espaço permite nossa aparição”. Não existe política sem corpos e o que Butler acrescenta a Arendt é a ampliação da pluralidade dos corpos que irão permitir a reapropriação e a “reconfiguração dos espaços materiais” (vide capítulo 2 corpos em aliança e política da rua).

Nesse veio, utilizei algumas interpretações do texto de Walter Benjamin sobre a violência que Safatle considerou socialdemocrata light. Existem de fato outras interpretações que o soreliano da USP talvez goste mais. Vale lembrar que o próprio Carl Schmitt mandou uma cartinha elogiosa ao texto, talvez por ter a mesma interpretação de Safatle (vide Jaques Derrida. A força da lei, p. 71). Sabemos onde esta via conduz.

Contrastei a análise feita por Safatle com as seguidas manifestações feitas no Chile em torno da estátua do general Baquerano durante o ano de 2019. Utilizando as ocupações da estátua e a colocação da bandeira Mapuche no seu topo, identifiquei a política com a instituição de uma nova forma de relação entre ressignificação do espaço público e direito. Conectei essas manifestações com a eleição de uma indígena Mapuche para a presidência da Assembleia Constituinte no Chile que esteve ligada a esse movimento de ressignificação. Não sem uma certa dose de jubilo, Safatle me respondeu mostrando que a estátua do general Baquerano foi incendiada no dia 05 de março deste ano, fato que eu desconhecia, e que, segundo ele, foi decisivo para a sua retirada pelo governo chileno. Ou seja, os quase dois anos depois dos primeiros atos de ocupação da estátua, as bandeiras e os corpos que a ressignificaram de nada serviram.

Só tem um problema com o argumento de Safatle: ainda que a estátua tenha sido incendiada, é difícil estabelecer qualquer conexão lógica entre esse fato e a eleição da indígena para a presidência da Assembleia Constituinte. Ou talvez o novo para Safatle seja apenas o monumento sem estátua e isso o satisfaça. Não é claro no argumento de Safatle o que se pode instituir de nova relação política com esse argumento. Na verdade, parece que ele abandonou esse argumento do seu primeiro artigo sem conseguir explicar para o leitor como se conecta ação coletiva, corpos no espaço público e a instituição de um novo direito.

Encerro minha participação nessa polêmica colocando para o leitor abaixo as duas fotos, a da estátua com os corpos que a ocuparam em praça pública e colocaram a bandeira Mapuche no seu topo e a da estátua pegando fogo. Peço ao leitor para que decida onde está a política: se ela está nos corpos que protestam e utilizam símbolos que apontam para o futuro, ou no entendimento de que o fogo é a continuação da política por outros meios.

*Leonardo Avritzer é professor titular do departamento de Ciência Política da UFMG. Autor, entre outros livros, de Impasses da democracia no Brasil (Civilização Brasileira).

Nota


[1] Eis a lista dos artigos, em ordem cronológica:

Vladimir Safatle, “A liberação do passado”: https://aterraeredonda.com.br/a-liberacao-do-passado/]

Leonardo Avritzer, “Bastilha e Borba Gato”: https://aterraeredonda.com.br/bastilha-e-borba-gato/

Vladimir Safatle, “Por favor, da próxima vez façam uma nota de repúdio”: https://aterraeredonda.com.br/por-favor-da-proxima-vez-facam-uma-nota-de-repudio/

Leonardo Avritzer, “Entre o fogo na estátua e soltar uma nota: a ressignificação do espaço público”: https://aterraeredonda.com.br/entre-o-fogo-na-estatua-e-soltar-uma-nota-a-ressignificacao-do-espaco-publico/

Vladimir Safatle, “Da arte de não enxergar o fogo”. https://aterraeredonda.com.br/da-arte-de-nao-enxergar-o-fogo/?doing_wp_cron=1628180853.4686450958251953125000

 

 

 

 

Veja neste link todos artigos de

AUTORES

TEMAS

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
Marcelo Guimarães Lima Luiz Eduardo Soares Jean Pierre Chauvin Érico Andrade Maria Rita Kehl José Micaelson Lacerda Morais Daniel Brazil Armando Boito Tales Ab'Sáber Eugênio Bucci Eleonora Albano Marcos Silva Henry Burnett Luiz Marques Daniel Afonso da Silva Carla Teixeira Caio Bugiato Celso Favaretto Manchetômetro Jorge Luiz Souto Maior Lucas Fiaschetti Estevez João Carlos Loebens Daniel Costa Ladislau Dowbor Marilena Chauí Chico Whitaker Gerson Almeida Plínio de Arruda Sampaio Jr. José Machado Moita Neto Igor Felippe Santos Salem Nasser Francisco de Oliveira Barros Júnior Eugênio Trivinho Heraldo Campos Alexandre de Lima Castro Tranjan Alexandre de Freitas Barbosa Berenice Bento Antonino Infranca Eduardo Borges João Carlos Salles Flávio Aguiar Michel Goulart da Silva Gilberto Lopes Benicio Viero Schmidt Everaldo de Oliveira Andrade José Raimundo Trindade André Márcio Neves Soares Chico Alencar Jean Marc Von Der Weid Marilia Pacheco Fiorillo Afrânio Catani Luiz Werneck Vianna Vladimir Safatle Celso Frederico Andrew Korybko José Costa Júnior Lorenzo Vitral Leonardo Avritzer Michael Löwy Fernando Nogueira da Costa Samuel Kilsztajn Anselm Jappe João Adolfo Hansen Eleutério F. S. Prado Thomas Piketty Eliziário Andrade Airton Paschoa Bruno Machado Mário Maestri Elias Jabbour Ronaldo Tadeu de Souza Francisco Pereira de Farias Tarso Genro Manuel Domingos Neto Leda Maria Paulani Vanderlei Tenório Tadeu Valadares Luciano Nascimento Rodrigo de Faria Paulo Nogueira Batista Jr Annateresa Fabris Leonardo Sacramento Flávio R. Kothe Henri Acselrad Luiz Roberto Alves Slavoj Žižek Bernardo Ricupero Carlos Tautz Paulo Martins Rafael R. Ioris Ricardo Fabbrini Remy José Fontana Luiz Renato Martins Dênis de Moraes Marcos Aurélio da Silva Juarez Guimarães Antônio Sales Rios Neto Dennis Oliveira Claudio Katz Julian Rodrigues Milton Pinheiro José Geraldo Couto Marjorie C. Marona Fernão Pessoa Ramos Boaventura de Sousa Santos Ronald León Núñez Luís Fernando Vitagliano Gilberto Maringoni João Sette Whitaker Ferreira José Dirceu João Lanari Bo Ricardo Antunes Leonardo Boff Mariarosaria Fabris Ari Marcelo Solon Michael Roberts Paulo Capel Narvai Kátia Gerab Baggio Paulo Fernandes Silveira Valerio Arcary Alexandre Aragão de Albuquerque Marcus Ianoni Valerio Arcary João Paulo Ayub Fonseca Fábio Konder Comparato Luiz Bernardo Pericás Ricardo Abramovay Ricardo Musse Sandra Bitencourt Denilson Cordeiro Rubens Pinto Lyra Lincoln Secco Gabriel Cohn Paulo Sérgio Pinheiro Otaviano Helene Andrés del Río Jorge Branco Sergio Amadeu da Silveira Bruno Fabricio Alcebino da Silva Luiz Carlos Bresser-Pereira Antonio Martins Ronald Rocha Luis Felipe Miguel Priscila Figueiredo Alexandre de Oliveira Torres Carrasco Walnice Nogueira Galvão Atilio A. Boron Alysson Leandro Mascaro Marcelo Módolo André Singer José Luís Fiori Bento Prado Jr. Renato Dagnino Matheus Silveira de Souza Liszt Vieira João Feres Júnior Osvaldo Coggiola Francisco Fernandes Ladeira Yuri Martins-Fontes Vinício Carrilho Martinez

NOVAS PUBLICAÇÕES