Da botica ao boteco

Imagem: Jan van der Zee
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por DANIEL BRAZIL*

Comentário sobre o livro recém-lançado da jornalista Néli Pereira

Um lançamento literário de 2022 delimita várias áreas de intersecção entre sociologia, história, cultura popular e folclore. Da botica ao boteco, da jornalista Néli Pereira, é um ensaio dedicado a “plantas, garrafadas e a coquetelaria brasileira”. A autora se propõe a investigar as relações entre a farmácia dos povos originários, dos europeus e dos africanos, ligados a tradições ancestrais e de fundo religioso – as tradicionais garrafadas – e o surgimento de bebidas laicas baseadas nessas misturas, os famosos licores e xaropes alcoólicos.

Em princípio, isso seria apenas um livro sobre coquetéis com ervas, cascas e raízes. Mas o que observamos é que a autora realiza um minucioso trabalho de pesquisa sobre a origem de várias bebidas famosas e globalizadas que estão lastreadas em receitas ancestrais, como licores famosos, bitters, amaros, gins e vermutes. Muitas vezes, essas misturas de ervas e álcool foram criadas por médicos em expedições europeias de colonização nos novos mundos, aproveitando-se de informações das culturas locais.

O naturalista Guilherme Piso (William Pies) compilou e publicou, em 1648, uma Medicinae brasiliensis com 110 plantas utilizadas aqui pelos indígenas. Von Martius escreveu, em 1844, Natureza, doenças, medicina e remédios dos índios brasileiros, onde, botânico que era, descreveu várias espécies hoje populares em qualquer bar, como catuaba, carqueja ou umburana.

Néli Pereira abre seu livro com uma epígrafe de Guimarães Rosa e uma oportuna citação ao trabalho da pesquisadora Maria Thereza Lemos de Arruda Camargo, uma etnofarmacobotânica. Essa especialidade “é um desdobramento da etnobotânica e visa resgatar de grupos humanos os saberes sobre as plantas medicinais e seus usos a partir de remédios populares simples e compostos e as respectivas indicações terapêuticas”.

Isso significa não apenas ir atrás de tribos indígenas na Amazônia, mas também pesquisar terreiros, quilombos e bancas de feiras rurais, conversar com benzedeiras e raizeiras, investigar o que vem da botica e vem parar no boteco, com todo o contexto cultural que o cerca.

Parece familiar? Claro, estamos no terreno de antropólogos e sociólogos como Câmara Cascudo (História da Alimentação no Brasil), ou Gilberto Freyre, que dedica um belo capítulo de sua obra mais divulgada, Casa Grande e Senzala, à descrição e análise das comidas e bebidas do Brasil colonial. Mais tarde, dedicaria um volume ao Açúcar e toda a cultura criada em torno da cana.

A autora de Da Botica ao Boteco bebe de forma respeitosa destas fontes, e também ousa criar ficcionalmente encontros com feiticeiras, pajés, curandeiros e monges europeus em sua busca pelas misturas de ervas com álcool. Informação necessária: não apenas é uma pesquisadora, mas coloca em prática o que aprendeu em um bar-ateliê de coquetelaria de São Paulo, o Zebra. Elabora cartas de drinques e compartilha no livro receitas clássicas e autorais. É mestra em estudos culturais latino-americanos pela University of London, tem vários artigos jornalísticos publicados sobre o tema.

Existe uma saudável tendência em livros sobre comidas ou bebidas a pesquisar fontes e origens históricas, criando uma sociologia toda própria. Para um leigo, como o autor dessas linhas, isso pode ora soar como um verniz acadêmico chancelador de qualidade, ora como uma real intenção de buscar as raízes culturais de hábitos, costumes e fazeres.

Quando Néli Pereira fala de jurubeba, butiá, sassafrás ou mastruz, quando descreve seus encontros com mestres e mestras das garrafadas numa aldeia indígena ou no mercado de Ver-O-Peso, quando cita sambas de Ney Lopes ou Arlindo Cruz, está demonstrando o quanto de cultura popular é destilada até chegar aos bares da moda. Vai da pesquisa, do aprendizado com livros e pessoas, à experiência iluminadora e criativa, de forma fluente e original.

Num mundo ideal, saberíamos de onde vem e como foi feito aquele drinque que tanto apreciamos, não importa a origem. Isso seria cultura. No mundo acadêmico, suposto repositório de toda a cultura formal, seria ideal retomarmos em doses imoderadas o projeto de Gilberto Freyre, Câmara Cascudo e outros pesquisadores, nunca deixando de lado os sabores, cores e perfumes que estão presentes na formação de qualquer povo, qualquer nação.

*Daniel Brazil é escritor, autor do romance Terno de Reis (Penalux), roteirista e diretor de TV, crítico musical e literário.

Referência


Néli Pereira. Da Botica ao Boteco – plantas, garrafadas e a coquetelaria brasileira. São Paulo, Companhia de Mesa, 2022, 208 págs (https://amzn.to/3YxUuHS).

O site A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
Clique aqui e veja como

Veja neste link todos artigos de

AUTORES

TEMAS

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
José Geraldo Couto Jean Pierre Chauvin Francisco de Oliveira Barros Júnior Lorenzo Vitral Paulo Martins Antonino Infranca João Lanari Bo José Machado Moita Neto Fábio Konder Comparato Alysson Leandro Mascaro Marilena Chauí Alexandre de Freitas Barbosa Slavoj Žižek Heraldo Campos Matheus Silveira de Souza João Adolfo Hansen Chico Alencar Rubens Pinto Lyra Atilio A. Boron João Paulo Ayub Fonseca Otaviano Helene Gilberto Lopes Michael Löwy Marcelo Módolo Berenice Bento Carlos Tautz Marcus Ianoni Maria Rita Kehl Afrânio Catani José Dirceu Everaldo de Oliveira Andrade Ronald Rocha Manchetômetro Ari Marcelo Solon Marcos Silva Luiz Marques Leonardo Avritzer Priscila Figueiredo Lucas Fiaschetti Estevez Juarez Guimarães André Márcio Neves Soares José Luís Fiori Annateresa Fabris João Sette Whitaker Ferreira Vanderlei Tenório Eleonora Albano Leda Maria Paulani Fernão Pessoa Ramos Chico Whitaker Eugênio Bucci Sergio Amadeu da Silveira Osvaldo Coggiola Flávio R. Kothe Paulo Nogueira Batista Jr Boaventura de Sousa Santos Paulo Sérgio Pinheiro Manuel Domingos Neto Flávio Aguiar Bruno Fabricio Alcebino da Silva Lincoln Secco André Singer Bernardo Ricupero Renato Dagnino Jorge Branco Ronald León Núñez Milton Pinheiro Tales Ab'Sáber Ricardo Musse Denilson Cordeiro Vinício Carrilho Martinez Bruno Machado Marcelo Guimarães Lima Luiz Bernardo Pericás Thomas Piketty Carla Teixeira Eleutério F. S. Prado Luiz Roberto Alves Valerio Arcary Leonardo Sacramento Kátia Gerab Baggio Vladimir Safatle Antonio Martins Luiz Renato Martins Marilia Pacheco Fiorillo Eliziário Andrade Remy José Fontana João Carlos Loebens Ricardo Abramovay Alexandre Aragão de Albuquerque Luciano Nascimento Elias Jabbour Luis Felipe Miguel Benicio Viero Schmidt Marjorie C. Marona Paulo Fernandes Silveira Luís Fernando Vitagliano Plínio de Arruda Sampaio Jr. Ricardo Antunes Caio Bugiato Antônio Sales Rios Neto Érico Andrade Daniel Afonso da Silva Daniel Costa Celso Favaretto José Costa Júnior João Feres Júnior Tadeu Valadares Samuel Kilsztajn Liszt Vieira Ricardo Fabbrini Armando Boito Jorge Luiz Souto Maior Marcos Aurélio da Silva Bento Prado Jr. Gerson Almeida Francisco Fernandes Ladeira Anselm Jappe Rafael R. Ioris Paulo Capel Narvai Walnice Nogueira Galvão Henri Acselrad Tarso Genro Andrew Korybko João Carlos Salles Igor Felippe Santos Yuri Martins-Fontes Luiz Eduardo Soares Leonardo Boff Mário Maestri Michel Goulart da Silva Claudio Katz Henry Burnett José Raimundo Trindade Daniel Brazil Celso Frederico Michael Roberts Dennis Oliveira Andrés del Río Jean Marc Von Der Weid Fernando Nogueira da Costa Gilberto Maringoni Ladislau Dowbor Mariarosaria Fabris José Micaelson Lacerda Morais Francisco Pereira de Farias Ronaldo Tadeu de Souza Luiz Carlos Bresser-Pereira Eduardo Borges Dênis de Moraes Airton Paschoa Salem Nasser Gabriel Cohn Alexandre de Lima Castro Tranjan Valerio Arcary Alexandre de Oliveira Torres Carrasco Eugênio Trivinho Luiz Werneck Vianna Rodrigo de Faria Julian Rodrigues Sandra Bitencourt

NOVAS PUBLICAÇÕES