Democratização como valor universal

Imagem: Alexander Suhorucov
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Por LUIZ MARQUES*

Existe vida além do “presidencialismo” e do “parlamentarismo”: a “participação cidadã” para gerir as receitas públicas com ética na política

Na Segunda Guerra Mundial, a democracia foi apresentada como a guardiã das liberdades frente a ofensiva autoritária do nazifascismo, o que a tornou um sonho de consumo para a paz, bem como um álibi manipulado pelas “elites” por conveniência. Na América Latina, as ditaduras civis-militares nos anos de chumbo torturavam nos porões e acenavam uma volta à normalidade, pois não ousavam repudiar os predicados democráticos. Por ora, o conluio jurídico-midiático-político arquiva a manu militari. Os novos golpes estudam a função de cada talher na mesa, para resguardar as aparências.

A célula de Ipanema

No célebre ensaio A democracia como valor universal (1979), Carlos Nelson Coutinho (1943-2012) intervém no PCB para denegar a ortodoxia do Comitê Central e também o personalismo de Luís Carlos Prestes que, na Carta aos Comunistas, acusava a linha partidária de reformista como se não o fosse com o Cavaleiro da Esperança. O autor mescla Antonio Gramsci à insurgência do ABC paulista para rebater a instrumentalização da democracia, opondo a questão democrática ao transformismo. Teoricamente sublinha a ligação orgânica entre a demokratia e o projeto de sociedade socialista.

Em Carlos Nelson Coutinho e a renovação do marxismo no Brasil, Marcelo Braz homenageia o ensaísta: “Postula uma associação entre a transição socialista e a democracia, como ponto de partida e ponto de chegada”, embora andasse a reboque do MDB. Somente depois de dez invernos, já nos estertores do velho Partidão, o insigne intelectual da UFRJ abandona de vez a estratégia do partido-ônibus. Na data que une a Queda do Muro de Berlim e o Consenso de Washington, enfim, a célula de Ipanema filia-se ao PT na defesa de alianças com a hegemonia das classes populares. A agenda política etapista se desmancha e enterra a “fase democrático-burguesa”. Paciência tem limite.

Nos anos 1990, a modernização dos Fernandos (Collor e Cardoso) apoia-se no lema thatcheriano: “o povo não existe, o que existe são os indivíduos e as famílias”, o que desobriga o Estado de formular políticas públicas. O voluntariado converte a condição dos pobres, de credores, em carentes de uma generosidade. Começa a marcha da desindustrialização, o desemprego cria um exército de reserva e a privataria saqueia o patrimônio estatal. Com o caminho aberto, o neoliberalismo festeja o “fim da história – a vitória da economia de mercado e da democracia liberal”; os supostos tetos do possível.

Carlos Nelson Coutinho admite que o título do libelo foi uma escolha ruim. Seria mais adequado intitulá-lo “A democratização como valor universal”. Evitaria a pecha de ilusionista por ignorar a análise concreta da realidade concreta. Se a democracia transcende os horizontes de classe, a tese do esgotamento capitalista espontâneo exagera na dose de otimismo. Erguer barreiras contrárias às mobilizações antissistêmicas e aos eventos insurrecionais de massas, para não provocar um putsch civil e/ou militar, é crer em Papai Noel. Desejar mudanças profundas na sociedade, com a suposição de que elas não serão notadas nem suscitarão uma contraofensiva, é uma imperdoável ingenuidade. O habitus da tolerância não é a regra na trajetória do patriarcado e do colonialismo, no Ocidente.

Equilíbrio de forças

Em priscas eras, se a direita pisava com coturnos os direitos humanos, para a esquerda a democracia tinha um caráter tático. A dimensão estratégica amadurece no contato com os cadernos gramscianos. O polêmico ensaio auxilia oprimidos e explorados a assimilarem o vetor da emancipação. Leandro Konder subscreve a reflexão do camarada de utopias e chopes cremosos no boêmio bairro carioca: “A democracia não é um caminho para o socialismo; é o caminho para o socialismo”, sintetiza.

Mas os desafios aumentam no século XXI. O arco atual de alianças democrático-policlassista é uma resposta em meio às adversidades. As contradições econômicas e extraeconômicas assomam sem que os sindicatos, os partidos e os movimentos avancem na conversão da palavra de ordem “vida, trabalho e dignidade” em uma unidade de ação, para implantar as políticas redistributivas, conscientizar e arregimentar os grupos vulneráveis. Eis o complicador no combate à extrema direita e à mídia corporativa, que flerta com o demônio nas páginas amarelas da cumplicidade e do ódio.

Não obstante, o campo civilizatório imprime uma democratização nas relações sociais, políticas, econômicas, culturais e institucionais. Basta citar a declaração sobre “a defesa da democracia, pela construção de políticas públicas de interesse do povo e a reinserção soberana do país no mundo, dentre outros avanços”. Ver a Resolução do Diretório Nacional do PT (dezembro de 2023). Como enalteceu o presidente Lula 3.0 no discurso de posse: “O Brasil quer a democracia para sempre”.

A empreitada reatualiza as ideias de um ícone do austro-marxismo sobre a junção das formas direta e representativa da democracia, na “Viena Vermelha” do decênio 1920. “A vantagem dos conselhos obreiros sobre o Parlamento é evidente: as ligações entre eleitores e eleitos são mais estreitas pela fusão do poder legislativo e o poder executivo”, frisa Max Adler, na antologia coletada por Ernest Mandel, Control obrero, consejos obreros, autogestión. A articulação da “democracia política”, fundada em interesses particulares, com a “democracia social” baseada no interesse coletivo reflete o equilíbrio de forças – enquanto durar. Não é um fim, per se, mas um momento da luta de classes.

O espírito jacobino

A peculiaridade do Orçamento Participativo porto-alegrense é haver transcorrido numa conjuntura não revolucionária para acumular forças, na contramão do neoliberalismo. Uma situação que se repete na institucionalização das Conferências Nacionais oficializadas pelo governo federal hoje. O mecanismo bota num bico de sinuca o clientelismo e o fisiologismo característicos do Congresso brasileiro. O Orçamento Participativo celebra a forma de governo que dormitava (sem roncar) na Constituição de 1988. Os prêmios internacionais das gestões petistas revelam competência, criatividade, compromisso, visão de futuro e solidariedade na decisão da coletividade organizada – o melhor técnico é o povo.

Existe vida além do “presidencialismo” e do “parlamentarismo”: a “participação cidadã” para gerir as receitas públicas com ética na política. Segundo Montesquieu, o melhor regime é a República; difícil é achar republicanos para ampará-lo. A alteração do modelo tradicional de governabilidade tem apologistas da res publica na periferia, dispostos a acatar os interesses gerais dos trabalhadores. O grau de escolaridade não é um empecilho, e sim a retração da soberania popular pela tecnocracia.

A transparência no Erário empodera os sujeitos que não têm oportunidade para exercer as funções deliberativas, no teatro da política moderna. O Orçamento Participativo condensa a dialética governantes / governados para: (a) atender o anseio igualitário de acesso a equipamentos urbanos – escolas, postos de saúde, saneamento, transporte, iluminação e; (b) democratizar o planejamento para reduzir o caos e as iniquidades que acompanham a marcha do livre mercado. O povo não é um simples adereço do governo, mas a sua alma. O espírito jacobin emana da rebeldia contra todas as antigas injustiças.

La participation citoyenne serve de bússola-guia para a superação da gramática de dominação e subordinação e, em simultâneo, a constituição do humanismo socialista. No neoconservadorismo, no neoliberalismo e no neofascismo, traçar o próprio destino é um sopro em prol da igualdade e da liberdade. Com Carlos Nelson Coutinho, o Brasil aprendeu que democratizar é verbo no gerúndio. O processo de democratização em curso no país é a chance de construir uma verdadeira nação. A façanha incide no animus da resiliência do Sul global ao declinante imperialismo, para edificação de uma ordem multipolar. Afinal, o “direito a ter direitos” possui uma dinâmica internacionalista.

*Luiz Marques é professor de ciência política na UFRGS. Foi secretário estadual de cultura do Rio Grande do Sul no governo Olívio Dutra.


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