Dia dos pais – as marcas do patriarcado

Imagem: David McEachan
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por JOSÉ MACHADO MOITA NETO*

Parece que a cada geração os pais enfrentam o dilema de Maquiavel entre escolher ser amado ou temido

Para esta data comercial, até o sistema capitalista gostaria de retirar as marcas do patriarcado pois as vendas dos dias do Pais estão longe de empatar com o do dia das Mães. Qualquer tentativa de análise do fenômeno comercial, por qualquer ângulo que se deseje ou imagine, por qualquer das ciências ou técnicas disponíveis chegaremos em causas que direta ou indiretamente apontam para o patriarcado e as marcas por ele deixados em nossa cultura.

Nem todo mundo pode reconstruir uma genealogia paterna e isto é uma marca do machismo consentido pelo patriarcado. No atestado de óbito de Trajano de Alcântara Moita encontrei o nome de seu pai: Manoel Coelho Moita. Entre os nomes de seus filhos está o do meu avô, o mais velho da primeira núpcias, com 52 anos na época. A filha mais nova da segunda núpcias, neste registro de óbito, tinha apenas 10 anos quando Trajano faleceu. Portanto, meu bisavó Trajano teve carreira de pai bastante longa para os padrões da época constando 20 filhos neste atestado de óbito.

Trajano quis ser um pai diferente de Manoel, José quis ser um pai diferente de Trajano, Edson quis ser um pai diferente de José, José Neto quis ser um pai diferente de Edson. Todos conseguiram e, ao mesmo tempo, fracassaram nesse projeto. É muito difícil identificar e lutar contra as novas formas do patriarcado para saber exatamente onde e como ele se entranhou em nossa alma, em nossa vida. Talvez esta seja a essência dos versos de uma Canção de Belchior (Como Nossos Pais):

Minha dor é perceber
Que apesar de termos feito
Tudo, tudo, tudo, tudo, tudo, tudo que fizemos
Ainda somos os mesmos e vivemos
Ainda somos os mesmos e vivemos
Ainda somos os mesmos e vivemos
Como os nossos pais

Parece que a cada geração os pais enfrentam o dilema de Maquiavel entre escolher ser amado ou temido. É uma sina do patriarcado que precisa ser rompida. As mães querem ser amadas e os pais hoje se distribuem entre os que querem ser amados, temidos ou apenas estarem ausentes. Na média, talvez, a cada nova geração também os pais são menos temidos e um pouco mais amados. No fim do patriarcado, as datas do dia dos pais e do dia das mães terão o mesmo peso comercial, mas talvez ambas terão menos importância que o dia do Pet ou qualquer coisa que venha superar comercialmente estas datas.

 Quando bate a nostalgia por um pai que já partiu, a música Naquela mesa, composta por Sérgio Bittencourt em homenagem póstuma para Jacob do Bandolim (seu pai), parece expressar como a memória é mais lúcida e sábia que a de história. Cada filho, rememora como um momento marcante, em casa, durante a refeição a presença paterna, sem bandolin ou histórias contadas, mas com uma saudade do que pode ter acontecido, mesmo por um dia, durante a convivência.

Cada história de pai é muito particular, vivenciado de modo diferente por cada filho. Como professor, acostumado a avaliar, posso atribuir notas a paternidade por fases da vida: papai esteve na nota sete durante muito tempo, enquanto dele dependi financeiramente. Após esse tempo, sua nota foi elevada para oito. Quando me tornei pai, elevei a sua nota. Porém a nota máxima ele atingiu a após a morte. A saudade, o vazio, a orfandade de um adulto traz até a memória virtudes antes não computadas.

Sobre mim tenho toda a pesada herança do patriarcado, de um modo único de ser, de ter e de poder que me distingue de uma afetuosa mãe. Quero mudar e quando o faço, mais coisas se exigem desse novo homem (pai ou não) para abrigar no coração todas as identidades do mundo que diferem do pesado fardo do patriarcado. Apesar dos fracassos pessoais como pai, já me foi anunciado o presente desse dia especial. Creio que obtive, até o momento, uma nota baixa como pai, porém aprovativa. Não tenho esperança de chegar a nota 10, nem após a morte, mas me basta a tranquilidade de hoje me sentir mais amado do que temido.

*José Machado Moita Neto é professor aposentado da Universidade Federal do Piauí (UFPI) e pesquisador da UFDPar.


A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
CONTRIBUA

Veja neste link todos artigos de

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

__________________
  • Um estudo do caso Ailton Krenak1974__Identidade ignorada 21/07/2024 Por MARIA SILVIA CINTRA MARTINS: Prefiro sonhar com Krenak o parentesco com a natureza e com as pedras do que embarcar na naturalização do genocídio
  • Clarice Lispector no cinemacultura a paixão segundo g.h. 22/07/2024 Por LUCIANA MOLINA: Comentário sobre três adaptações cinematográficas da obra de Clarice Lispector
  • O princípio de autodestruiçãoLeonardo Boff 25/07/2024 Por LEONARDO BOFF: Qual ciência é boa para a transformação mundial?
  • Filosofia da práxis como poiésiscultura lenora de barros 24/07/2024 Por GENILDO FERREIRA DA SILVA & JOSÉ CRISÓSTOMO DE SOUZA: Fazer filosofia é, para o Poética, fazer filosofia contemporânea, crítica e temática
  • Que horas são no relógio de guerra da OTAN?José Luís Fiori 17/07/2024 Por JOSÉ LUÍS FIORI: Os ponteiros do “relógio da guerra mundial” estão se movendo de forma cada vez mais acelerada
  • Apagão digitalSergio Amadeu da Silveira 22/07/2024 Por SÉRGIO AMADEU DA SILVEIRA: A catástrofe algorítmica e a nuvem do “apagão”
  • A disputa de Taiwan e a inovação tecnológica na ChinaChina Flag 20/07/2024 Por JOSÉ LUÍS FIORI: A China já é hoje a líder mundial em 37 das 44 tecnologias consideradas mais importantes para o desenvolvimento econômico e militar do futuro
  • A produção ensaística de Ailton Krenakcultura gotas transp 11/07/2024 Por FILIPE DE FREITAS GONÇALVES: Ao radicalizar sua crítica ao capitalismo, Krenak esquece de que o que está levando o mundo a seu fim é o sistema econômico e social em que vivemos e não nossa separação da natureza
  • A radicalidade da vida estéticacultura 04 20/07/2024 Por AMANDA DE ALMEIDA ROMÃO: O sentido da vida para Contardo Calligaris
  • A questão agrária no Brasil — segundo Octávio IanniJose-Raimundo-Trindade2 19/07/2024 Por JOSÉ RAIMUNDO TRINDADE: As contribuições de Ianni podem auxiliar a reformular o debate agrário brasileiro, sendo que as obras do autor nos apontam os eixos para se repensar a estrutura fundiária brasileira

PESQUISAR

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES