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A ciência das conexões singulares

Fritz Wotruba (1907-1975), Man, condemn war, 1932.
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Por MARILENA CHAUI e por VITTORIO MORFINO*

“Prefácio” e “Introdução” do livro recém-lançado.

Prefácio [Marilena Chaui]

Desde Aristóteles, sabemos que o acaso não é ausência de causa e sim o cruzamento de duas ou mais causalidades alterando a finalidade de cada uma delas. Em outras palavras, o acaso se refere à realização de uma finalidade inesperada que não estava presente na causa inicial do acontecimento – a teleologia perdida é o núcleo de tyché.

Ora, que dirá Lucrécio (na sequência de Epicuro)? Que o acaso nada tem a ver com a causa final e sim com o concursus, o encontro, que pode ou não entrelaçar coisas que, em si mesmas, não estavam relacionadas, que o entrelaço pode “pegar” ou não, e que o enlace que “pega” pode perdurar ou não. Passar do telos ao concursus: eis a ruptura gigantesca trazida pelo De rerum natura, ruptura que se exprimirá politicamente com a fortuna maquiaveliana como occasione.

Do encontro de Vittorio Morfino com Louis Althusser nasce o encontro de Espinosa com Lucrécio e com Maquiavel, isto é, uma nova e inesperada interpretação da filosofia espinosana, na qual a ideia de connexio determina o surgimento de uma ontologia da relação.

Para essa mudança de perspectiva, Morfino examina a diferença entre o Tractatus de Intellectus Emendatione e a Ethica, quando Espinosa passa de uma teoria da causalidade como sequência linear ou série em favor da compreensão da ordem e conexão dos seres ou do entrelaçamento que constitui o tecido da realidade.

Essa interpretação inovadora abre um percurso no qual será preciso: em primeiro lugar, repensar o conceito de substância para além do quadro da metafísica aristotélica, escolástica, cartesiana e leibniziana bem como das tentativas de Kant e Hegel de maneira a chegar ao que Vittorio denomina o primado da relação sobre a forma; em segundo, repensar o conceito de necessidade, assumindo uma nova concepção da contingência ou do aleatório, que só em aparência teriam sido afastados por Espinosa; em terceiro, repensar a ideia de individualidade como pluralidade estrutural das relações complexas interna e externas, portanto, como processo, encontro, conexão e transitividade, ultrapassando o De emendatione, isto é, o conceito do interior como essentia intima e do exterior como circunstantia, quando a Ethica introduz o conceito da potentia como relação regulada por um exterior e um interior que se constituem na própria relação; em quarto lugar, mostrar como essas ideias incidem diretamente na compreensão espinosana da história (no Tratado Teológico-Político), da afetividade (na Ética), da temporalidade plural e do acontecimento (no Tratado Político).

Trabalho histórico de firme e segura erudição, indo de Aristóteles e Lucrécio a Descartes, Leibniz, Kant, Hegel e Feuerbach, examinando interpretações correntes do espinosismo, como as de Kojève e Bloch, este livro é uma das mais importantes contribuições para o conhecimento da filosofia de Espinosa. Tê-lo agora traduzido para o português e publicado no Brasil num momento muito sombrio é ocasião de alegria. Vindo de um amigo como Vittorio, é, para nós, um feliz encontro.

Introdução [Vittorio Morfino]

Em novembro de 2004, Marilena Chaui convidou-me à Universidade de São Paulo a fim de que eu ministrasse um seminário de uma semana no interior do grupo Spinoza. O encontro fora intenso tanto do ponto de vista intelectual quanto do afetivo; estreitei relações de amizade que o passar dos anos apenas reforçou. Nos cinco dias do seminário, três horas por dia, expus as teses interpretativas que tinham orientado – e até hoje orientam – a minha leitura de Spinoza, trazendo daquelas discussões importantes sugestões para uma reelaboração e indicações para um trabalho ulterior.

Nas pesquisas que haviam precedido esse seminário, em particular na tese de doutorado sobre o encontro Spinoza-Maquiavel, tinha elaborado a hipótese interpretativa segundo a qual o encontro de Spinoza com o pensamento de Maquiavel, no contexto dos estudos histórico-políticos feitos em vista da composição do Tratado Teológico-Político, tinha produzido uma redefinição sobre seu conceito de causalidade: para dizê-lo muito sinteticamente, de um modelo de causalidade serial a um modelo de causalidade comandado pelo conceito de connexio.

No primeiro texto, ponho em relação este modelo de causalidade com a questão dos três gêneros de conhecimento, seguindo a hipótese que havia me sugerido Balibar, a partir da qual as outras causas, além da matemática, capazes de romper com o preconceito finalístico, do qual fala Spinoza no Apêndice da Primeira Parte da Ethica, possam ser uma forma de racionalidade política inspirada em Maquiavel, forma de racionalidade que produz uma torção histórico-política do modelo de causalidade (do segundo gênero) e que põe como objeto do terceiro gênero as connexiones singulares, no exemplo do Tratado Teológico-Político, a história do povo hebraico. Das questões soerguidas no primeiro texto, ramificam-se aquelas desenvolvidas nos demais: é, de fato, a fim de precisar o modelo de causalidade pela connexio que enfrentei as questões do primado da relação sobre a substância, do primado do encontro sobre a forma e da temporalidade plural.[1]

Como dizia, as discussões daqueles dias influenciaram a minha pesquisa subsequente. Contudo, aquelas discussões não foram apenas o formidável começo de um percurso: a amizade que me ligou a Marilena e ao seu grupo levou-me no curso dos anos a retornar muitas vezes a São Paulo para aulas, colóquios e participações em defesas de tese de doutorado. Não só isso. As relações com o grupo de Marilena levaram-me, ademais, a estreitar relações com o grupo spinozista de Córdoba e, em seguida, com o grupo althusseriano de Buenos Aires e Santiago.

Em suma, Marilena literalmente abriu-me as portas de um continente que eu tinha começado a amar um ano antes de tudo isso, quando fora ao colóquio CEMARX de Campinas. Os trabalhos que publiquei desde então trazem todos o sinal profundo desse diálogo e, ainda que o polo de meus interesses tenha se deslocado de Spinoza para Marx e para o marxismo, na realidade, as questões que enfrentara naquele seminário de 2004 estão ainda no centro de minhas pesquisas, embora desenvolvidas através de novos confrontos teóricos.

Todavia, o encontro com o grupo spinozista de Marilena não pode se restringir ao âmbito acadêmico. Julho de 2001 marcara para Itália e para Europa uma passagem de fase decisiva, as violências da polícia nas jornadas de Gênova tinham posto um brutal freio às esperanças do dito “povo de Seattle”, os efeitos do atentado de 11 de Setembro e a instauração de um regime policialesco global haviam feito o restante. Nesse quadro desolador, a que se pode acrescentar que, em novembro de 2004, o presidente do conselho italiano era Berlusconi (e ainda continuaria sendo-o por dois anos e, em seguida, novamente), meu encontro com o Brasil foi o encontro com uma experiência política extraordinária, aquela da presidência de Lula.

É difícil mensurar a que ponto fora fundamental para meu percurso teórico esse encontro, que me abriu outros tantos, daquele com a Argentina dos Kirchner àquele com a Bolívia de Evo Morales e Garcia Liñera, mas fundamentalmente com a história e a experiência política de todo o continente latino-americano. Certa vez disse a Marilena que me sinto um membro ultramar do departamento de filosofia da USP, invertendo de sinal a expressão de Arantes.

E isso não só pelas ligações de amizade que aí me vinculam, mas pela estupefata experiência de pensamento que estes vínculos produziram: o projeto que há alguns anos levo adiante sobre a questão da temporalidade plural na tradição marxista não teria sido nem ao menos concebível no interno de uma prospectiva eurocêntrica. É precisamente o fato de ter-me encontrado no pensar entre a Europa e a América Latina que me abriu a via de uma pesquisa capaz de problematizar o olhar da tradição marxista, varrendo-a, por assim dizer, a contrapelo.

Todavia, dessa experiência há uma implicação política mais imediata. O Brasil da presidência de Luiz Inácio Lula da Silva fora não só um material para o pensamento, mas uma potente injeção de entusiasmo político, um respiro para quem, como eu, se encontrava na Itália defronte a um governo Berlusconi, do qual faziam parte forças racistas e neofascistas.

Por essa razão, a grande ofensiva neoliberal que transtornou o inteiro continente latino-americano e, no Brasil, levou ao encarceramento de Lula na prisão de Curitiba e à eleição de Bolsonaro para presidente do Brasil, constitui uma ferida aberta para todos aqueles que respiraram aqueles ares, aquele entusiasmo, aquela esperança. Uma ferida aberta sobre a qual vem disseminado o sal do fascismo, do racismo, da homofobia, do sexismo, do anti-ecologismo e de um anti-comunismo tão visceral que devém caricatural. Por isso, o grito “Lula livre!” significa muito mais que a liberação de um homem, significa “Brasil livre!”, através de uma luta por aqueles valores que Bolsonaro representa como um negativo fotográfico.

*Marilena Chaui é professora Emérita da FFLCH-USP. Autora, entre outros livros, de Contra a servidão voluntária (Autêntica).

*Vittorio Morfino é professor de história da filosofia na Universita Degli Studi de Milano. Autor, entre outros livros, de Il tempo e l’occasione. L’incontro Spinoza-Machiavelli (LED Edizioni Universitarie).

Referência


Vittorio Morfino. A ciência das conexões singulares. Tradução: Diego Lanciote. São Paulo, Contracorrente, 2021, 180 págs.

Nota


[1] Nesse sentido, o leitor encontrará algumas repetições que decidi não remover justamente por faltar o sentido e o lugar teórico destas ramificações. O primeiro texto acena para algumas questões a propósito do primado da relação sobre a substância, do primado da contingência sobre a forma e da temporalidade plural que serão desenvolvidas com amplitude nos textos sucessivos.

 

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