Dia mundial da liberdade da imprensa

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Por VENÍCIO A. DE LIMA*

Em tempos de BigTechs, Inteligência artificial, redes digitais, “influencers” e notícias falsas, é incontornável que se enfrente o desafio de repensar a liberdade de expressão e a liberdade da imprensa

O Dia mundial da liberdade da imprensa constitui uma excelente oportunidade para se refletir sobre os direitos e princípios que fundamentam as intenções originais da ONU e da UNESCO. Celebrado anualmente em 3 de maio, ele foi criado por decisão da Assembleia Geral das Nações Unidas, em 1993. A intenção é lembrar o Artigo 19 da Declaração Universal dos Direitos Humanos e também a Declaração de Windhoek (Namíbia), firmada pela UNESCO, em conjunto com jornalistas africanos, em 1991.

O Artigo 19 reza: “Todo ser humano tem direito à liberdade de opinião e expressão; esse direito inclui a liberdade de, sem interferência, ter opiniões e de procurar, receber e transmitir informações e ideias por quaisquer meios e independentemente de fronteiras”.

Já a Declaração de Windhoek reafirma, em seus primeiros artigos, os seguintes princípios e conceitos: “(1). (…) O estabelecimento, manutenção e promoção de uma imprensa independente, pluralista e livre é essencial para o desenvolvimento e manutenção da democracia em uma nação, e para o desenvolvimento econômico; (2). Por imprensa independente entende-se uma imprensa independente do controle governamental, político ou econômico ou do controle de materiais e infraestrutura essenciais à produção e divulgação de jornais, revistas e periódicos; e (3). Por imprensa pluralista entendemos o fim dos monopólios de qualquer tipo e a existência do maior número possível de jornais, revistas e periódicos que reflitam a mais ampla gama possível de opiniões dentro da comunidade”.

Quais são o significado e as implicações dos direitos e princípios celebrados no Dia mundial da liberdade da imprensa?

Duas noções de liberdade

Antes de responder à questão proposta é necessário fazer uma brevíssima distinção entre duas noções de liberdade, uma na tradição liberal e outra na tradição republicana.

Liberdade é uma noção que está impregnada no pensamento moderno. Ela é parte intrínseca da história do que chamamos modernidade e tem dominado o pensamento ocidental nos últimos dois, três séculos. No mundo bipolar da Guerra Fria, a liberdade serviu como argumento central na batalha ideológica do Ocidente contra o Oriente. A liberdade talvez seja o valor mais invocado do mundo contemporâneo, apesar de entendido das mais variadas maneiras, muitas vezes, contraditórias.

Na perspectiva liberal, prevalece o caráter pré-político e privado da liberdade. Entende-se a liberdade como se ela pudesse ser desvinculada da política e como um direito formado exclusivamente na esfera privada. A versão mais conhecida dessa perspectiva é a que reduz a liberdade somente à ausência de interferência externa na ação do indivíduo, a chamada liberdade negativa.

Já na perspectiva republicana, prevalece a ideia de liberdade associada à vida ativa, ao livre-arbítrio, ao autogoverno, à participação na vida pública, na res publica. É daí que vem o significado original da palavra política, de polis, isto é, tudo que se refere à cidade, civil, público. O poder arbitrário (dominação) é incompatível com a liberdade cidadã, construída politicamente e entendida não como uma possessão privada desfrutada pelo indivíduo isolado, mas como o pertencimento a um mundo onde todos podem revelar a si mesmos, livremente, diante dos outros, sem qualquer medo de punição. Essa liberdade republicana se associa historicamente à democracia clássica Grega, à república romana e ao humanismo cívico do início da idade moderna.

A liberdade liberal tem sua matriz no liberalismo que se constrói na Inglaterra, a partir do século XVII, depois como reação conservadora à Revolução Francesa e se consolida no século XIX em complemento à ideia de mercado livre, isto é, à liberdade privada de produzir, distribuir e vender mercadorias.

São tradições distintas: uma se origina em Atenas, passa por Roma e se filia modernamente a pensadores como Maquiavel, Milton e Paine. A outra a Hobbes, Locke, Benjamin Constant e, mais recentemente, a Isaiah Berlin.

Embora ambas as tradições reconheçam nominalmente a liberdade de expressão como fundamental para a definição da democracia, elas divergem radicalmente sobre o papel que o Estado desempenha em relação a essa liberdade. Na tradição liberal, o Estado deve abster-se totalmente de qualquer interferência em relação à liberdade de expressão dos cidadãos.

Na verdade, a liberdade de expressão é considerada uma proteção do indivíduo em relação ao Estado cuja interferência é entendida como cerceamento da liberdade individual, como uma forma de censura.  Na tradição republicana, ao contrário, a liberdade de expressão é entendida como liberdade de deliberação em nome do interesse público.

A intervenção do Estado é bem-vinda na medida em que são os cidadãos que definem, através de sua participação política, as regras (leis) que serão seguidas para que a liberdade seja desfrutada. A liberdade de expressão é o instrumento básico dessa participação e, embora se realize tanto no espaço público quanto no espaço privado, neste último, ela só é possível por meio da política, isto é, de sua defesa pública. Cabe ao Estado garantir que todos os cidadãos possam exercer igualitária e plenamente a liberdade de expressão.

Liberdade de expressão x liberdade da imprensa

O Artigo 19 se refere a um direito universal do “ser humano” e a Declaração de Windhoek, à “imprensa”. Trata-se, portanto, de instâncias distintas: o direito individual à liberdade de expressão e a defesa da liberdade da pessoa jurídica “imprensa”.

A liberdade de expressão é muito anterior à liberdade da imprensa. Na Grécia antiga, havia pelo menos quatro palavras que designavam o conceito de liberdade de expressão – isegoria, isologia, eleutherostomia e parrhesia – essencial para a realização plena do homem cívico na polis. Ao lado da igualdade perante a Lei (isonomia), ela era considerada um dos dois pilares básicos da democracia e compreendia o direito à voz e também o direito de ser ouvido na ágora.

O direito à liberdade de expressão se fundamenta na necessidade de tod@s expressarem livremente suas opiniões no debate público (ou no “mercado livre de ideias” liberal), o que garantiria a formação de uma opinião pública democrática. Ela é condição para o exercício da cidadania nas democracias liberais: possibilita a realização de eleições livres e a escolha de representantes legitimados pela vontade esclarecida do conjunto da população.

Em relação à liberdade da imprensa, vale lembrar algumas dificuldades com o próprio significado da palavra “imprensa”. Entre nós ela pode significar tanto (a) a máquina de imprimir [impressora, tipografia], como (b) qualquer meio de comunicação de massa ou, ainda, (c) o conjunto deles (mídia). A passagem de um para outro sentido altera radicalmente o locus do sujeito da liberdade de expressão a ele vinculado.

Em inglês existe uma distinção entre speech (expressão, voz, palavra), print (imprimir) e the press (a imprensa) que, na maioria das vezes, não se faz entre nós.  A sempre lembrada Primeira Emenda à Constituição dos EUA, por exemplo, assegura tanto a liberdade de expressão (freedom of speech), como a liberdade da imprensa (freedom of the press). A diferença entre speech e the press é clara.

Para existir, a liberdade da imprensa implica não só a disponibilidade do material impresso – papel, impressora e tinta – mas, também, a capacidade dos indivíduos de lerem, vale dizer, a existência de um público leitor. A passagem da cultura oral para a cultura letrada e a formação, o tamanho e a história dos “públicos leitores” nas diferentes sociedades, contam boa parte da história da própria imprensa e, consequentemente, da liberdade da imprensa.

Há um longo caminho percorrido desde os volantes avulsos anônimos sem periodicidade, aos livros de notícias (booknews), panfletos e pasquins artesanais, passando às gazetas, folhas (newspapers) e periódicos pessoais – onde o redator, o cronista e o editor eram a mesma pessoa – até os jornais populares de massa e os modernos jornais e revistas. A palavra newspaper/jornal só é registrada no idioma inglês no final do século XVII.

O surgimento das empresas que publicam e vendem jornais, fez com que a circulação de informações e o debate público não ocorressem mais apenas de forma direta (face-a-face) mas, passassem a ser majoritariamente mediados pela “imprensa”. Estenderam-se, então, para ela, as responsabilidades já atribuídas à liberdade de expressão. Todavia, como diz a Declaração de Windhoek, é condição necessária que a imprensa seja independente, pluralista e livre.

O que diz a Constituição Federal de 1988

A CF88 trata dessas questões sem mencionar diretamente “liberdade de expressão” ou “liberdade da imprensa”.

O inciso IX do artigo 5º diz: “É livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença”.

Já o artigo 220, reza: “A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição”.

“§ 1º Nenhuma lei conterá dispositivo que possa constituir embaraço à plena liberdade de informação jornalística em qualquer veículo de comunicação social, observado o disposto no art. 5º, IV (é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato); V [é assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem]; X [são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação]; XIII [é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer]; e XIV [é assegurado a todos o acesso à informação e resguardado o sigilo da fonte, quando necessário ao exercício profissional]”.

“§ 2º É vedada toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística. (…)”.

“§ 5º Os meios de comunicação social não podem, direta ou indiretamente, ser objeto de monopólio ou oligopólio”.

“§ 6º A publicação de veículo impresso de comunicação independe de licença de autoridade”.

É, portanto, garantida a liberdade de expressão, observadas algumas qualificações: é vedado o anonimato; assegurado o direito de resposta; declarado invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas; e vedada toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística. Por outro lado, a liberdade de “informação jornalística”, fica sujeita a inexistência, direta ou indiretamente, de monopólio ou oligopólio nos meios de comunicação.

A exceção americana

Setores políticos que se identificam com a extrema direita e o conservadorismo tem criticado o que consideram prática de censura e ausência de liberdade de expressão no Brasil. Bastaria ler atentamente as normas constitucionais acima transcritas para se verificar que essas críticas não procedem. Ademais, o STF firmou jurisprudência no sentido de que “a liberdade de expressão não pode ser usada para a prática de atividades ilícitas ou discursos de ódio, contra a democracia ou contra as instituições” (AP 1.044, 20/4/2022).

Esses mesmos setores políticos evocam, comparativamente, o tratamento que o Judiciário dos EUA dá às questões relativas à liberdade de expressão. É amplamente conhecido aquilo que os constitucionalistas (inclusive os norte-americanos) chamam de “American exceptionalism”. Desde 1964, a partir do famoso caso New York Times x Sullivan, a Corte Suprema, embora reconheça a existência de limites, passou a tratar a liberdade de expressão – em prejuízo de outros direitos como igualdade, privacidade, reputação e dignidade – com uma amplitude que não encontra paralelo em nenhum outro país do mundo.

O comportamento da Corte Suprema, aliado à flexibilização crescente das regras legais relativas à propriedade cruzada dos meios de comunicação, tem provocado consequências negativas para a sociedade americana, sobretudo em relação à crescente radicalização da chamada “guerra cultural” e das questões raciais. Decorre daí o acirramento do debate interno que questiona a jurisprudência prevalente.

Registre-se que o “American exceptionalism” não impediu, contraditoriamente, que o governo de Joe Biden promulgasse uma lei (no último dia 24 de abril) que inviabiliza a TikTok (chinesa) de continuar operando no país, sob a alegação de que a plataforma pode trazer riscos à segurança nacional dos Estados Unidos.

Em tempos de BigTechs, Inteligência artificial, redes digitais, “influencers” e notícias falsas, parece incontornável que se enfrente o desafio de repensar a liberdade de expressão e a liberdade da imprensa, exatamente para garantir que elas – e a democracia – sobrevivam.

*Venício A. de Lima é Professor Emérito da Universidade de Brasília (UnB). Autor, entre outros livros, de Liberdade de expressão versus liberdade da imprensa – direito à comunicação e democracia (Publisher Brasil).


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